A Vila - 1
Cheguei em Campinas com quase três aninhos, gordinho e a alegria da
família. Alegria que não ia durar muito tempo, mas, embora não tenha conseguido
atingir o status de "ovelha negra", cheguei perto em algumas ocasiões. Fomos morar na Vila Industrial que era, para mim, naquele momento, uma rua de terra de uns cem metros que acabava em outra
rua de terra. Do que me lembro desses dias? Nada. Lembranças mesmo começam a
clarear ali por volta do início de 1957, com minha mãe me ensinando a escrever
o “a, e, i, o, u” porque eu ia pra escola no dia seguinte. “Escola Paroquial
São José” foram as primeiras palavras que aprendi, copiando da lousa. Era uma
subversão à ordem da “Caminho Suave” nossa inesquecível cartilha, que começa no
“A” de abelha e prossegue (sim, verbo no presente, que ela está por aí até
hoje) no “B” de barriga do bebê e no “C” de cachorro. No caderno de caligrafia, aquele de
3 linhas, com uma mais acima das outras duas para determinar o limite da “letra
grande” (“maiúscula” era difícil de falar nos meus 6 anos, acho que só aprendi
com 7...) e a altura do “l”, do “t” e do “f”, ensaiei os primeiros rabiscos que
jamais iriam se transformar no orgulho de toda mãe, que é o filho ter uma letra
bonita. Não deu, dona Maria, mas tentei e, hoje, sei, tinha mais habilidade em
fazer casquinhas com a bola nos pés do que fazer um S maiúsculo (em letra de
mão, lembram?) digno desse nome. Era muito novo e nunca tive qualquer talento
para desenho. Aliás, entrei um pouco antes da maioria no primeiro ano do primário (sei lá
como se chama hoje, parece que cada vez que o ensino piora, eles mudam os nomes)
por insistência da minha mãe. Ia fazer seis anos, a idade mínima, só em agosto,
queriam me botar no pré-primário, mas dona Maria insistiu: ou no primeiro ano
ou nada. Sei lá por quê aceitaram.
1957 é um ano emblemático também futebolisticamente falando. Pelé já andava aparecendo, “um crioulinho que parece o capeta com a bola nos pés” dizia meu pai, mas ele torcia pro São Paulo. E, nesse ano, a final do Campeonato Paulista foi 3 a 1 pro Tricolor sobre o “Coringão”, o que deixou meu pai feliz da vida. O filho aqui, do alto dos seis anos, decidiu torcer pelo Tricolor, decisão que carrego até hoje, com maior ou menor paixão, afinal futebol é, ou deveria ser, diversão.
A Escola Paroquial São José, como o nome já revela, era ligada à
igreja católica. A gente tinha de ir à missa todos os domingos. Eu que gostava
de acordar tarde, não tinha um dia sequer pra ficar até as 10h na cama. Nem
domingo, dia da missa, com presença comprovada no cartão que, ao fim dos
trabalhos, era carimbado. Fim de ano tinha um prêmio para os mais assíduos. Num
dos três anos que passei lá, fui à missa em todos (todos!) os domingos. Os
prêmios eram distribuídos numa festa no fim do ano. Colocavam todos eles sobre
uma grande mesa e iam chamando por ordem de assiduidade. Os primeiros pegavam
os melhores, claro. Fui um dos primeiros e, se bem me lembro, peguei um pente
Flamengo.
Mas a Vila começou a aumentar suas fronteiras para mim mais ou menos nesse ano. A Rua Adão Hoffman, que começava onde terminava a minha rua, já não era mais um mistério para o garoto de quase 6 anos que vivia livre pelo bairro, ou melhor, por três ou quatro ruas do bairro, que mais longe ainda não dava pra ir. Rua Coronel Antonio Lemos e, no máximo, a Carlos de Campos no seu início. No fim da Adão, quando terminava a descida e ele ficava plana, “construímos” um campinho de futebol nos terrenos baldios. Era tudo mato e o terreno, com pouca inclinação, facilitava a empreitada. Memoráveis partidas ao final da tarde e históricos duelos com o time do São Bernardo quando ele descia para mais um desafio. Descia sem avisar, diga-se. Sentíamos (eu sentia, pelo menos) um enorme medo daquele bando descendo em direção ao nosso campinho. Mas, depois de acertadas algumas regras, o jogo começava e todo mundo se igualava. Não me lembro de uma briga sequer o que, para quem viveu aqueles tempos, era algo perto de um milagre, já que Vila e São Bernardo, pelo menos no nosso pedaço, era uma espécie de derby descalço.
Assim a Vila foi entrando na minha vida conforme eu a penetrava em suas ruas e calçadas. A rua onde eu morava era chamada oficialmente de Primeira Travessa da Coronel Antonio Lemos. Hoje se chama Caçapava, está muito maior, pois abriram caminho por um terreno que era fechado e ela segue em frente e só vai terminar numa rua chamada Cerqueira, que nunca tinha ouvido falar.
Ano seguinte já tinha gazetinha e matinê no Cine Rex, mas o cinema da minha infância merece uma crônica ao léu só dele.