domingo, 17 de junho de 2012


A Vila - 1



Cheguei em Campinas com quase três aninhos, gordinho e a alegria da família. Alegria que não ia durar muito tempo, mas, embora não tenha conseguido atingir o status de "ovelha negra", cheguei perto em algumas ocasiões. Fomos morar na Vila Industrial que era, para mim, naquele momento, uma rua de terra de uns cem metros que acabava em outra rua de terra. Do que me lembro desses dias? Nada. Lembranças mesmo começam a clarear ali por volta do início de 1957, com minha mãe me ensinando a escrever o “a, e, i, o, u” porque eu ia pra escola no dia seguinte. “Escola Paroquial São José” foram as primeiras palavras que aprendi, copiando da lousa. Era uma subversão à ordem da “Caminho Suave” nossa inesquecível cartilha, que começa no “A” de abelha e prossegue (sim, verbo no presente, que ela está por aí até hoje) no “B” de barriga do bebê e no “C” de cachorro. No caderno de caligrafia, aquele de 3 linhas, com uma mais acima das outras duas para determinar o limite da “letra grande” (“maiúscula” era difícil de falar nos meus 6 anos, acho que só aprendi com 7...) e a altura do “l”, do “t” e do “f”, ensaiei os primeiros rabiscos que jamais iriam se transformar no orgulho de toda mãe, que é o filho ter uma letra bonita. Não deu, dona Maria, mas tentei e, hoje, sei, tinha mais habilidade em fazer casquinhas com a bola nos pés do que fazer um S maiúsculo (em letra de mão, lembram?) digno desse nome. Era muito novo e nunca tive qualquer talento para desenho. Aliás, entrei um pouco antes da maioria no primeiro ano do primário (sei lá como se chama hoje, parece que cada vez que o ensino piora, eles mudam os nomes) por insistência da minha mãe. Ia fazer seis anos, a idade mínima, só em agosto, queriam me botar no pré-primário, mas dona Maria insistiu: ou no primeiro ano ou nada. Sei lá por quê aceitaram.  

1957 é um ano emblemático também futebolisticamente falando. Pelé já andava aparecendo, “um crioulinho que parece o capeta com a bola nos pés” dizia meu pai, mas ele torcia pro São Paulo. E, nesse ano, a final do Campeonato Paulista foi 3 a 1 pro Tricolor sobre o “Coringão”, o que deixou  meu pai feliz da vida. O filho aqui, do alto dos seis anos, decidiu torcer pelo Tricolor, decisão que carrego até hoje, com maior ou menor paixão, afinal futebol é, ou deveria ser, diversão.    

A Escola Paroquial São José, como o nome já revela, era ligada à igreja católica. A gente tinha de ir à missa todos os domingos. Eu que gostava de acordar tarde, não tinha um dia sequer pra ficar até as 10h na cama. Nem domingo, dia da missa, com presença comprovada no cartão que, ao fim dos trabalhos, era carimbado. Fim de ano tinha um prêmio para os mais assíduos. Num dos três anos que passei lá, fui à missa em todos (todos!) os domingos. Os prêmios eram distribuídos numa festa no fim do ano. Colocavam todos eles sobre uma grande mesa e iam chamando por ordem de assiduidade. Os primeiros pegavam os melhores, claro. Fui um dos primeiros e, se bem me lembro, peguei um pente Flamengo.

Mas a Vila começou a aumentar suas fronteiras para mim mais ou menos nesse ano. A Rua Adão Hoffman, que começava onde terminava a minha rua, já não era mais um mistério para o garoto de quase 6 anos que vivia livre pelo bairro, ou melhor, por três ou quatro ruas do bairro, que mais longe ainda não dava pra ir. Rua Coronel Antonio Lemos e, no máximo, a Carlos de Campos no seu início. No fim da Adão, quando terminava a descida e ele ficava plana, “construímos” um campinho de futebol nos terrenos baldios. Era tudo mato e o terreno, com pouca inclinação, facilitava a empreitada. Memoráveis partidas ao final da tarde e históricos duelos com o time do São Bernardo quando ele descia para mais um desafio. Descia sem avisar, diga-se. Sentíamos (eu sentia, pelo menos) um enorme medo daquele bando descendo em direção ao nosso campinho. Mas, depois de acertadas algumas regras, o jogo começava e todo mundo se igualava. Não me lembro de uma briga sequer o que, para quem viveu aqueles tempos, era algo perto de um milagre, já que Vila e São Bernardo, pelo menos no nosso pedaço, era uma espécie de derby descalço.

Assim a Vila foi entrando na minha vida conforme eu a penetrava em suas ruas e calçadas. A rua onde eu morava era chamada oficialmente de Primeira Travessa da Coronel Antonio Lemos. Hoje se chama Caçapava, está muito maior, pois abriram caminho por um terreno que era fechado e ela segue em frente e só vai terminar numa rua chamada Cerqueira, que nunca tinha ouvido falar.

Ano seguinte já tinha gazetinha e matinê no Cine Rex, mas o cinema da minha infância merece uma crônica ao léu só dele.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O Jackson do Bosque



O urubu aí da foto é o Jackson. Não sei onde anda o Michael, pois a Lili me falou e eu acabei esquecendo se ele sumiu ou morreu, se é que urubus morrem. Eu nunca vi um morto. Consegui tirar a foto porque ele havia pousado ali por perto e não estava nem aí com a nossa presença. Antes um pouco, a Lili me disse, apontando para o céu, “olha lá o Jackson”. Quem? perguntei. Ela me explicou: "O Jackson é um urubu que ficou meu amigo. Ele aparece quase todas as manhãs quando saio do escritório e venho aqui fora. Antes eram dois, tinha o Michael também..." e contou o que houve com o outro, justamente a parte que esqueci.
Antes que vocês fiquem imaginando um montão de coisas, vou contando tudo de modo mais claro. Lili é a coordenadora do Bosque dos Jequitibás, zoóloga, uma figura simpaticíssima que ama todos os animais, principalmente os do Bosque, que ela cuida com muito carinho, dedicação e competência. Chama todos eles pelo nome – nome que ela deu ou o nome com o qual ali chegaram – e eles atendem, fazem festa ao vê-la. Bem, nem tanto: o hipopótamo olhava apenas de esgueio enquanto tomava sol na manhã de segunda-feira passada. Foi quando o Jackson apareceu por lá, em vôos rasantes.
Sei de tudo isso porque, por conta do trabalho na Prefeitura, tenho ido amiúde ao Bosque, que passa por uma boa reforma no lago. Mas conheço o Bosque há muito, muito tempo.
Na década de 60, num dos anos em que estudei no Culto à Ciência, relaxei de vez. Ao invés de aulas, passeios pela cidade, matinê no Ouro Verde para ver Help dos Beatles, namoro na Lojas Americanas (sim era legal ir na lanchonete da Americanas à tarde) ou fuga para o Bosque, ao lado de um grande amigo à época, o Edu. A gente saía do colégio no Botafogo e ia até o Bosque, que fica, veja você, no Bosque, a pé.
Numa dessas caminhadas, alguma coisa num buraco no tronco de uma árvore nos chamou a atenção. Era um pacote meio amassado, vermelho, que pegamos meio assustados. Reconhecemos de cara: era um pacote de cigarros Marlboro, com sete maços intactos.
Não, você não pode imaginar nossa euforia. Naquele tempo a gente já fumava e comprava, quando o dinheiro dava, um maço de Minister, que repartíamos em dois ou três, dependendo de quantos tinham colaborado na vaquinha. Minister era um dos cigarros brasileiros mais caros. Mas o charme mesmo, o grande tchan, era fumar cigarro importado, tivesse o gosto que tivesse... De vez em quando, alguém aparecia no colégio com um maço importado e todos os fumantes – e acho que os não fumantes também - ficavam sabendo.
Naquela época, importar qualquer coisa – mesmo sem similar no Brasil – era permitido apenas para os mais ricos. Na alfândega, o produto importado já ganhava uma taxa adicional de uns 400% sobre seu valor em dólar. Depois tinha o dólar subindo todo dia, o lucro do intermediário, a propina para o agente do governo e o preço ia às nuvens. Por causa dessa “política” o Brasil construiu carroças no lugar de automóveis por décadas e por causa dela também, entre muitas outras coisas, até 1997, 98, por aí, uma linha telefônica custava até cinco mil dólares. Alguns ficaram milionários com essa “política” e o Brasil se atrasou por séculos. Por isso, ter um maço de cigarros importados no bolso era sinal de status. Repartimos os maços do pacote encontrado na rua: três para cada um e o que sobrou, fomos fumando a caminho do Bosque.
Lá chegando, descemos a rua principal e entramos no restaurante chinês. Ou era japonês? Bom, eu sei que tinha um belo restaurante por lá e o dono tinha os olhos orientais. Uma Coca-Cola pra cada um, um descanso num dos bancos e uma lenta caminhada pelas alamedas sombreadas, admirando os bichos, contando histórias e fazendo planos para o futuro. Futuro que ia ter de esperar um pouco mais: naquele ano, por conta de tantas faltas, levei uma sonora bomba e tive de fazer de novo a quarta série. Mas acho que foi bom, pois foi na 4ª E do Culto à Ciência, em 1967, que tomei gosto de vez pelos estudos.

domingo, 3 de junho de 2012

Esplendor e sepultura


Depois de algum tempo parado, decidi voltar a escrever alguma coisa num blog só meu. Andei colaborando com o Viver Paris onde, em algumas crônicas, derramei minha paixão pela capital francesa. Mas o autor do blog, meu amigo Jackson Martins, anda ocupado demais e tem deixado o blog meio esquecido. Quando ele voltar a postar, eu volto a colaborar, pois escrever sobre Paris, para mim, é como visitar mais uma vez a cidade e isso eu faço com o maior prazer. E com uma vontade louca de visitar de verdade.

Mas Paris estará longe desse blog que ora inicio, se é que isso é possível para um apaixonado pela cidade como eu. Mas, do mesmo modo que prometi a Zezé que esse blog não ia desandar a falar de política, eu prometo evitar Paris, mas não para evitar discussões muitas vezes inúteis, mas por puro receio de enfadar os - já prevejo - poucos leitores que terão a paciência de acompanhar essas mal traçadas.

Dia desses, conversando com uma amiga, lembrei de uma professora de português lá do Culto à Ciência, no tempo em que aprendíamos a nossa inculta e bela com uma gramática do Paschoal Cegalla e a literatura no Flor do Lácio de Cleófano de Oliveira. Não, não era colegial ainda, era o ginásio, o quinto ou sexto ano na escala atual.

Quem não conhece o Flor do Lácio não sabe o que perdeu ao não viver aquele mundo estranho, nebuloso, fantástico e surpreendente dos primeiros passos na literatura. Quantos anos tínhamos? 12, 13 por aí. E aprendíamos, logo de cara, que nossa língua "última flor do Lácio inculta e bela" era "a um tempo esplendor e sepultura". Lácio - e eu nunca mais esqueci - era a região primeva dos romanos (Lazio, hoje) e ali o latim ganhou forma e, depois, pariu as derivações. E o português foi a última delas. Inculta e bela. Esplendor e sepultura. É mole? Pois era desvendando sonetos como essa obra prima de Olavo Bilac que iniciávamos a caminhada, cheios de temores, pelos infindáveis túneis da literatura luso/brasileira.

Não me lembro de como o assunto surgiu - estávamos almoçando num delicioso restaurante em Joaquim Egídio, com mesas no quintal - mas sei que a amiga, jornalista como eu, meio que babou de inveja por eu me recordar, com tanto carinho e, claro, com um orgulho danado, do meu tempo de ginasiano no Culto à Ciência. E declamar os primeiros seis versos do soneto. Depois fiz o curso Clássico (fui da última turma, depois juntaram o Clássico e o Científico no tal do Colegial) ali mesmo e saí de lá certo que minha vida profissional estaria ligada, de alguma forma, à língua. Claro que pensei em ser professor de literatura, mas os caminhos que percorremos, as escolhas que fazemos no percurso acabam nos levando a um destino que, sim, escolhemos, mas que, mesmo assim, nos surpreendem.

Eu que passei a adolescência e a juventude sob uma ditadura militar, de repente estava num jornal escrevendo reportagens sobre a vida política de Campinas. Isso em 1977, quando já se vislumbrava uma tênue luz no fim do túnel ditatorial e havia um pouco mais de liberdade para se escrever. De lá pra cá, foram muitas redações e toneladas de letras, linhas, parágrafos, vírgulas e pontos finais.

Agora, os 60 anos, ainda na ativa, animado por uns papos com amigos e incentivado pela Zezé, resolvi cometer um blog em que a memória vai ser exigida ao máximo. Serão histórias que vivi, que não vivi, que gostaria de viver, que odiaria ter de viver, que odiei ter vivido e que amei ter vivido. A crônica, penso eu, é a literatura possível nas páginas de um jornal, uma espécie de literatura metida à besta. Mas, por caber nela doses de realidade cotidiana misturadas a imaginações possíveis e impossíveis, é que nela me encaixo. Tudo que estará escrito por aqui terá como base a verdade, mas ela pode se misturar à imaginação e aos desejos e se impregnar de dúvidas, de sobressaltos, de surpresas e contradições. Afinal, nenhuma vida passa incólume pela Terra.