terça-feira, 31 de julho de 2012

O estorvo e o carinho

Quartier Latin


Edmilson Siqueira

Fim de verão por aqui, as águas de março já cessaram e começa aquela mudança de tempo anunciando o outono e já não dá mais pra dormir sem pelo menos uma colcha. O terracinho que Zezé e eu tanto freqüentamos nas “happy hours”, ajudados pela hora atrasada no relógio que faz o pôr do sol acontecer lá pelas sete e meia, já começa a ficar mais distante. Nem a hora atrasada existe mais. Um vento frio – moramos no 12º andar de um prédio construído quase no topo de uma colina que liga o Cambuí ao Taquaral – já começa a dar o ar de sua graça sem graça, provocando o fechamento da janela para que apenas o sol entre na sala.

Tem gente que gosta mais do frio que do calor. Nós não e nisso combinamos bem. Para um casal em que a mulher é vegetariana e o homem é carnívoro, ambos gostarmos do calor e não do frio é um grande avanço para a cordialidade das relações. Mas claro que a gente se ama. E como a comprovar esse amor, o outono nos provoca sentimentos semelhantes.

Dia desses, um domingo de manhã, Zezé achou que deveria comprar roupas para o Yoga que ela tanto curte. E tinha de ser na Decathlon. Um domingo lindo, sem aquele calorão delicioso, mas lindo assim mesmo, e lá fomos nós até lá pelas bandas do Leroy Merlin. Ao descer no estacionamento, olhei para o céu azul, sem nuvens, e vi um avião, um jato grande, voando alto de não se escutar suas turbinas, com o nariz apontado para o Nordeste. Falei pra Zezé apontando o avião: “Tá com jeito de que vai atravessar o Atlântico”. Zezé respondeu antes que eu sugerisse o destino: “Paris”.

Era, claro, o que eu ia falar. Não que ambos soubéssemos para onde o jato ia. Não sabíamos sequer com precisão para onde o nariz do bicho apontava, nem se era de passageiros ou de carga. Mas, para nós, era Paris que esperava, generosa como sempre, do outro lado do Atlântico.

La Maison de La Radio às margens do Sena


Na verdade, eu acho que Paris me espera desde aquele início de setembro de 2002, quando a olhei do alto pela última vez, a bordo de um jato da Air France com destino a Cumbica. Daqui a poucos meses serão dez anos. Parece que foi ontem. Parece que foi há um século. Quando revejo as fotos – há dois álbuns enormes, pois o mundo virtual ainda não nos tinha alcançado  – folheando aquele tempo, tenho a impressão de que nada mudou, que está tudo em ordem, tudo certo e que rapidinho a gente estará aprontando as malas.

Já o avião no céu em direção a Paris, visto do estacionamento, provoca um banzo de uma terra que nunca foi minha, de uma cidade que conheço pouco, onde sou mais um estranho turista a ficar de boca aberta com aquelas paisagens, aquelas pontes, aqueles cafés todos, aquelas telas todas, todos aqueles parisienses que nem desconfiam que moram onde eu queria morar, que nasceram onde eu queria ter nascido e que vão morrer onde eu gostaria de respirar pela última vez.

Um amigo do Norte (Norte do Brasil, Belém do Pará, mais precisamente) me mandou um e-mail de uma mulher (não sei se amiga dele, ele tem tantas) que confessava seu amor por Budapeste num PPS enorme, cheio de fotos panorâmicas da capital húngara, paisagens deslumbrantes com música clássica ao fundo. No texto, ela declara que a viagem fez mudar seu ranking de cidades favoritas e, agora, Budapeste ocupa o topo.

Em 2007, estivemos em Lisboa. Linda, clara, limpa e preservada, um povo falando a mesma língua que a gente (bem, às vezes parecia outra língua), vida bem mais barata que Paris, Londres, Roma ou Campinas. Temos umas mil fotos de lá e juramos de pé junto que, assim que der, a gente volta. E até ficaríamos por lá mesmo, numa aposentadoria de sonhos. Mas meu ranking, não mudou. Nem o da Zezé. Paris é o topo e assim será para todo o sempre.  Lisboa tem tudo, mas falta algo que talvez eu nem saiba precisar. Talvez Lisboa nos inspire o passado, a ancestralidade que carregamos, o Gil da Zezé e o meu Siqueira que vêm lá da terrinha e a gente a vê como um quintal iluminado do Brasil, ou talvez seu terraço mostrando o que poderíamos ainda ser, tivéssemos preservado nossas cidades. Lisboa é nossa, nos sentimos em casa como jamais nos sentiremos em Paris. Porque Paris é o amor impossível que incomoda e encanta. Paris é praia e o deserto, é a música e o silêncio, é a poesia e o grafite. Paris é o estorvo e o carinho. 

Lisboa é sim um encanto, Budapeste deve ser também. Mas a magia, onde está a magia?

Não, não é a magia da Tour Eiffel, das pontes do Sena, do Louvre ou da Notre Dame. É a magia daquele beco que não dá em nada, daquele café sob a chuva, daquela Shakespeare And Company onde não entrei, da Allée da Rue Oudinot que, não fosse a amiga do Du que publicou as fotos dela no Viver Paris eu talvez jamais conhecesse (e, por enquanto, só por fotos), daquela casa de jazz chamada Le Petit Journal, das ruas de Montmartre onde ainda não andei, da meia-noite que Woody Allen descobriu que enfeitiça. Enfim, a magia de Paris está solta no ar e quem a absorve está condenado a amá-la sobre todas as coisas, por todos e quaisquer motivos.

A livraria símbolo de Paris


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Explicação necessária (acho eu): essa crônica que você acabou de ler eu havia escrito em março deste ano para o blog Viver Paris, com o qual andei colaborando e acho que vou colaborar ainda. Por motivos que devem ser mais que justificados, meu amigo Jackson Martins, o Du, que cito na crônica, não está conseguindo postar com a frequência que costumava fazê-lo. Então resolvi publicar essa minha declaração de amor (mais uma) a Paris aqui mesmo, quebrando uma promessa que fiz ao iniciar o blog – a de não escrever aqui sobre Paris. Mas quem pode brigar com uma paixão?

domingo, 29 de julho de 2012

No tempo do JH



                                                           Redação do JH em 1979

Edmilson Siqueira

Foi um tempo curto de vida, mas o jornal tinha tudo para dar certo. Bem, nem tudo. Criado por um político, o Jornal de Hoje surgia em Campinas para se intrometer entre o Correio Popular e o Diário do Povo, roubar um pouco dos leitores deles e, claro, formar novos leitores. Um prédio novinho em folha na entrada de Campinas (o Trevo da Anhanguera), uma redação cheirando a tinta, máquinas de escrever Remington de última geração (he, he) e papel carbono que, acreditem, não sujava as mãos. Corria o glorioso ano de 1979, pairava um ar de fim de ditadura, quase a certeza de que o general Figueiredo seria o último militar a governar o Brasil e nós todos sonhando com a democracia. Bem, nem todos. A gente esfregava as mãos.
Mas o jornal era de um político e, para dirigir a gráfica, o político “nomeou” um velho cabo eleitoral. Como alguma coisa não foi explicada direito, o diretor da gráfica comprou um velho maquinário para imprimir o jornal, daqueles a chumbo, talvez por uma pechincha e na certeza de que ia agradar o patrão. Não agradou, mas como era um “velho companheiro de lutas”, não foi demitido pela burrada. O patrão entrou na jogada, soube que o Senado ia se leiloar sua enorme impressora – que funcionava perfeitamente ainda, mas havia uma mais moderna e, já que o dinheiro não era deles mesmo, por que não trocar? 
O dono do Jornal de Hoje deve ter entrado sozinho no leilão e arrebatado a máquina pelo preço mínimo. Alguns dias depois ela era instalada no andar de baixo do prédio lá no trevo da Anhanguera pra começar os testes. Fizemos várias edições “zero” que, no jargão jornalístico, são os testes que valem pra tudo: texto, edição, diagramação, fluxo e, naquele tempo, past up (pestape mesmo), fotolito e impressão. Ia quase tudo bem, com exceção da impressão. Um dia saía clara demais, outro dia escurecia tudo e nada de achar o ponto. Eu me lembro de um dia pregar no quadro de avisos uma foto do Pantera, uma crioulo de quase dois metros de altura e de largura, excelente trombone da Sinfônica, e escrever que, para o povo da impressão, era o prefeito Chico Amaral.  
O problema da impressão estava num treco importado, uma tal chapa de nylon que precisava de gente que a conhecesse bem para que ela surtisse o efeito desejado. Demorou uns dez ou vinte dias pra se chegar ao ponto, a equipe se afinar e o jornal começar a sair. E demorou uns dois ou três meses para a grana minguar e a chapa importada ser trocada pela nacional, bem mais barata, mas de péssima qualidade. O resultado era uma impressão que perdia para a do Diário do Povo que ainda feito em chumbão.
Mas não foi apenas na estética que o JH pecou. A equipe era boa, mas andou se equivocando. Primeiro que, ao invés de tentar chegar a um público novo, quis tirar leitor do Diário do Povo, que, à época, era o jornal mais influente da cidade. Não era o maior – o Correio sempre vendeu mais, muito mais, aliás – mas tinha mais opinião, ouvia mais gente da oposição e empregava alguns macacos velhos da imprensa duros de bater. O JH ficava no meio termo, nem lá nem cá, às vezes se parecia com o Correio, às vezes queria ser mais que o Diário e não conseguia se firmar. Daí o fracasso financeiro que obrigou a reduzir custos, diminuir sensivelmente o quadro e se fundir com o Diário decretando sua própria morte.
A gota d’água do JH foi um escândalo na PUCC. Descobriram que o irmão do reitor era “aluno” do curso de comunicação. Já estava ano segundo ou terceiro ano, nunca tinha aparecido numa aula sequer, mas tinha presença em todas elas e, claro, altas notas sempre nas provas, mesmo sem fazê-las. De repente, os alunos da PUCC faziam rodinha em torno de um jornal para saber das novidades do caso. Era a grande chance de o JH alcançar um público que nem pensava em ler jornal (alguns pensavam, claro, mas eram minoria). Mas, não sei por qual motivo, o JH resolveu defender os Barreto Fonseca (o reitor e o irmão). O Diário, percebendo a brecha, agiu com um jornal deveria agir e quando o nome do falso aluno foi retirado do curso, comemorou. E o JH perdeu a chance de atacar uma sacanagem e ainda ganhar novos leitores.  

Eu saí antes do jornal fechar. Já não me entendia com os chefes e seus equívocos jornalísticos. A abertura política que se avizinhava requeria novas posturas. Havia um público novo a se conquistar e a oposição já era grande o suficiente no Estado e em Campinas para eleger governador e prefeito e a imprensa precisava fazer parte dessa história do lado certo, não só por uma questão de democracia, era também uma questão de sobrevivência.  E, pra completar, meus amigos Jary Mércio e Caio Blinder (esse mesmo, do Manhattan Connection) - nós três editores de Nacional/Internacional – já tinham saído do jornal.
Assisti ao fim do JH não me lembro de onde. A fusão com o Diário foi um último suspiro do próprio Diário que nunca mais foi o mesmo, até ser vendido para o Correio Popular. Na fusão, o JH sumiu. Hoje em dia, como mais uma publicação do Grupo RAC, o Diário vive longa agonia em praça pública, talvez carregando em suas tintas a praga do JH.
(Na foto do post, eu estou de perfil, de barba e calça azul, à esquerda. Na outra mesa, conversando com a moça, está Caio Blinder)

A mulher do Errol Flynn


Antonio Contente

Recebo e-mail do jornalista José Leal Paes, hoje morando em Belém após trabalhar durante bons anos no “Estadão”. Sua mensagem não poderia ser mais sucinta, apesar do enorme significado. Dizia, apenas: “Morreu aqui ontem, no bairro do Guamá, a mulher do Errol Flynn”.

Devo contar que fui, imediatamente, coberto pelo diáfano manto da saudade. Pois tal figura, a “mulher do Errol Flynn”, marcou de alguma forma a vida de todos nós que fomos jovens na Capital do Pará ali pelos anos cinqüenta.

Raimunda Bastos, esse era o nome dela. Morena bonita, francamente bonita, sósia da bela Teresa Collor. Mas a nossa beldade não era nenhuma socialite, antes pelo contrário. Exercia, com eficiência e alta competência, aquela que chamam de “a mais antiga das profissões”. E, afinal, mesmo sendo a gracinha que era não teria entrado para a história se não tivesse se transformado na “mulher do Errol Flynn”.

Vamos voltar um pouco no tempo, para a época da Segunda Guerra Mundial. Naqueles duros anos, os americanos instalaram duas bases no Brasil, uma em Natal outra justamente em Belém. E ambas eram, de vez em quando, visitadas por grandes astros e estrelas de Hollywood, que ajudavam a levantar o moral das tropas. Foi assim que passaram pelo país figuras como Lana Turner, Humphrey Bogart, Kirk Douglas, Gary Cooper, Bob Hope e, claro, Errol Flynn, entre muitos outros.

Pois muito bem, o ator do “Robin Hood” dirigido por Michael Curtiz, acho que em l938, chegou a Belém a bordo do seu iate particular. Vinha acompanhado de certo staff, e até algumas gurias, só que, ancorado ao largo do porto da cidade, o ator resolveu, certa noite, visitar a zona do meretrício. Mandou para a melhor pensão do chamado “quadrilátero do pecado” um grupo precursor, a fim de organizar tudo. Tanto que, quando chegou, de porre, todas as garotas da casa, fechada especialmente, permaneciam colocadas de costas para a parede da sala, a fim de que o grande astro apontasse aquela com quem ficaria. Dito e feito, a escolhida foi Raimunda Bastos, que ele levou para o quarto e lá ficou até a noite do dia seguinte.



A grande verdade é que as muitas horas de amor com o famoso galã transformaram completamente a vida da moça. Tanto que quando a conheci, muito tempo depois, já nos anos cinqüenta, ela permanecia na mesma pensão, e fora batizada como “a mulher do Errol Flynn”. Por causa disso só atendia a seleta freguesia. Muitos vinham dos Estados vizinhos para, digamos, merecer seus favores.

Pintando, afinal, a decadência, os tempos ficaram mais duros, porém a moça não perdeu a classe. Tanto que certa noite, já nos anos 60, vi a reação dela diante de um marinheiro bêbado que queria arrastá-la para a cama:

-Tá pensando o quê, idiota? Tu achas que essa bainha aqui, onde o Robin Hood enfiou a espada, vai se passar para um tipo da tua laia?

Grande Raimundinha, “a mulher do Errol Flynn”. Morreu rondando os 90 e lá vai fumaça, na casa comprada com os dólares que o ator lhe deu, na lendária noite. Saudades eternas.

sábado, 21 de julho de 2012

Depois da banda passar


Zezé entrou no Facebook e viu lá um samba antigo do Chico postado pela amiga Sandra, que trocou o frio de Curitiba pelo frio de Campinas e está morando em Barão Geraldo com as filhas. Ouviu o samba e engatou um bate papo com a amiga. Acabaram marcando um encontro, regado a chazinhos e talvez algum vinho, na Padaria Alemã. Mas o samba do Chico deve ter causado algum banzo na Zezé que, com as facilidades do Youtube, botou o laptop na cozinha e, enquanto fazia uma divina macarronada, buscava e ouvia antigos sambas do velho compositor.

Chico já foi muito mais para mim e para Zezé. Gosto de ver, de vez em quando, ele cantando A Banda, ao vivo, naquele festival da Record no longínquo outubro de 1966. Ou Roda Viva num festival posterior. Não que eu tenha saudade dele, talvez tenha saudade de mim. Chico foi bom – e muito bom – enquanto durou a ditadura e os governos Sarney e Collor. Depois, quando um governo que não era da esquerda que ele admirava fez as reformas necessárias e acabou com a inflação, ele entrou numa espécie de ócio mental e não fez mais nada de bom. E mesmo quando seu candidato foi eleito e manteve as reformas todas impedindo uma “esquerdização” à la cubana ou algo parecido no Brasil, Chico não fez mais nada. Escreveu um livro que, por ser premiado por uma corriola, mais pelo nome do autor que pelo conteúdo, acabou afastando-o mais ainda das luzes da ribalta.

Mas foi bom ouvir de novo Apesar de Você, música que diziam, à época de seu lançamento e proibição pela censura da ditadura, que o título tinha mais um pedaço que era justamente o nome do general presidente. Lenda, claro, mas corria de boca em boca no meio da estudantada universitária. Ou então o opressivo samba Cotidiano, em que Chico usa e abusa do direito de não evoluir uma melodia, tornando-a massacrante, como se fosse de propósito para repetir, ad infinitum, a rotina sem esperança de um casal quase mecânico.
Construção, a música que veio a seguir na seleção da Zezé, já tem outras histórias. Enorme para os padrões da época, fez tanto sucesso que as paradas musicais das rádios (os “top ten” da época )tiveram que adaptar horários para que ela coubesse na programação. E pior ainda para os que insistiam em tocar Deus Lhe Pague, que vinha em seguida no LP, totalmente emendada, sem qualquer separação, como se fosse a continuação da anterior. O sucesso foi tanto, repito, que até prêmio do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Belo Horizonte (se não me engano) Chico recebeu. Sindicato ligado ao então Partidão, lembram?
Mas Chico foi um herói pra muita gente, inclusive para mim. Não nego mesmo hoje, quando minhas convicções ideológicas há muito me afastaram do discurso da esquerda, que algumas músicas que ele escreveu, sozinho ou com Jobim, ou com Francis Hime ou com Edu Lobo ou com outros ainda, são obras primas que jamais serão relegadas a um plano inferior na história da MPB. Mesmo as mais, digamos, de protesto, tiradas de seu contexto político, têm força suficiente para sobreviver por séculos. E as românticas são coisa de gente grande.
Há uns cinco ou sei anos Zezé me deu a caixa completa de DVDs do Chico (são 13 ao todo), uma coleção magnífica, feita com profissionalismo, coisa de cinema, filmada no Rio, Roma e Paris, se não me engano. Já tínhamos assistido a uns dois ou três DVDs na TV e havíamos gostado, principalmente de todas as lembranças que aquelas músicas – há clips da época – nos trouxeram. Mas a caixa chegou e foi para o local reservado no rack da TV para DVDs e ali ficou. Zezé entendeu por que eu não assisti até hoje e eu entendi por que ela não quis assistir também. Ou não entendemos nada.
O que sei é que o pequeno momento na manhã de hoje, ouvindo sucessos antigos do Chico, trouxe instantes de prazer que talvez imaginássemos esquecidos, perdidos, relegados a um tempo que não volta mais – e talvez seja bom que não volte.  Mas não sei se é bom que Chico não tenha mais o que dizer – seu último disco foi pífio – sei apenas que os tempos são outros e a música de hoje já não nos acerta em cheio, não nos leva àquele estado que os mais velhos não entendiam, não nos deixa certos de que amanhã há de ser outro dia. 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Neblinas




Antonio Contente

O melhor, dos barcos à vela, é que a bordo deles pode-se respirar o silêncio. A embarcação desliza mansa, criando seu rastro de espumas e você escuta a paz como se descesse do céu uma intimidade, uma oferenda de alento. Estamos navegando há dias pelo rio, o Tocantins, largo, enorme, mar neste trecho entre Mocajuba e Cametá, no Pará. Dizem, e talvez até provem, que ele é o curso d’água mais bonito do mundo; para quem está sobre e sob a sua aura, é impossível desmentir isso. A noção de beleza, afinal, é uma percepção muito fina. Como a pele dos lábios, ou a tênue ilusão dos sentimentos.

Quinta-feira amanhece. Saindo do meu pequeno catre, vejo a superfície coberta de neblinas. Neblinas sim, como as que você topa nas estradas do Sul e Sudeste nos meses de inverno, mas que, aqui, são diferentes em tudo. Exatamente porque, sobre o rio, ela é absolutamente um manto, um tapete de uns poucos metros de altura sobre o espelho das águas, algodão do infinito pronto para a ceifa, esconderijo de mitos prontos para o encantamento.

Neblina acima da superfície de um rio como o Tocantins, eu vos digo, é algo muito sério. Até porque dela, no nosso olhar ao redor, emerge a mata de copas perfeitas no despontar da quase manhã. Ah, as quase manhãs são tão importantes como os quase amores, pela carga de ânsia extenuada, o que as torna paradoxalmente doces.  

O amanhecer sobre a selva e suas águas é um rito de repetição litúrgica do próprio princípio da vida. Ali está recomeçando o que já foi começado e recomeçado; contudo, por mágica, é como se nunca tivesse existido. A neblina fala muito particularmente da vida porque, em todas as manhãs, espera a morte para que se faça a luz. Que vem com o sol, com os cantos dos pássaros, com as cores que rebrotam e fazem o opaco sumir. Os deuses, na sua sabedoria, fizeram as manhãs para a celebração da vida, para a ressurreição, do mesmo jeito que fizeram o anoitecer para que não esqueçamos da nossa finitude. 

Não há vento, o barco está, literalmente, parado. A névoa se esgarça e, de repente, de dentro dela emergem duas garças. Acho que nasceram ali, naquele exato momento, dádiva à minha santa perplexidade. Maior ainda ao perceber que as aves voam na direção em que o céu começa a ficar vermelho. Da margem, vem um canto de pássaro. Mais do que uma saudação à luz, é a certeza de que o sol não tarda. E a neblina, então estática, começa a se mover. Se enreda em desenhos de formas sutis, mãos em aceno de adeus, rostos femininos de traços finos, cabelos em cascatas indesmentíveis, trazendo a sensação de que pairamos num pedaço de céu. Sim, sim, vagamos sobre nuvens, cortamos o infinito com a simplicidade de um gesto; e a luminosidade total, na repetição incansável do milagre, se faz. 

O primeiro raio de sol vem como uma flecha rasgando o tempo. Farrapos de anos-luz, mensagem certa da claridade síntese, deflagrar de certezas nas sístoles e diástoles do nosso pulsar inalienável. E ao primeiro impacto a neblina até então alva se tinge de laranja, de vermelho, e se desfaz. Mas antes passou por ser hibisco, foi rosa rubra em jardins nunca ceifados, foi soluço de alegria ante o abraço daquilo tão simples, mas tão belo.



E na primeira fenda que o sol abriu no grande manto, cintila a superfície do rio. Na leve correnteza da maré acariciada por leve brisa, meigos reflexos de ouro e prata. Mais do que isso, diamantes e esmeraldas, topázios e rubis de lampejos macios na cor tão viva. O rio, o meu rio onde nasci, o nosso rio, vai sendo mais uma vez descoberto. As lâminas da luz do sol fracionam o branco, e, na margem, o verde fica mais verde, tanto que posso ver, nos primeiros galhos que se desenham, as orquídeas alvas em que a Amazônia é tão fértil, tão pródiga. Talvez nesgas de neblina que se depositam ali, para antes do amanhecer virem se banhar no líquido caminho, tão bom neste momento porque é um caminho sem a necessidade de destino. Por São Judas Tadeu e por Santa Rita do Passa Quatro, há poucas coisas na vida tão boas como não ter destino. Ser simples passageiro de névoas e orquídeas que se refugiam em galhos a cada manhã. Ser maestro a reger os sons que vêm da floresta, sinfonia fantástica a cada romper de dia, e melhor ainda porque a música vem com cheiro de verde, de vida e de fé na beleza. 

O rio agora está livre e começa, vagarosamente, o soprar do vento. A vela se tufa, a bujarrona se compõe e o barco vai. A claridade, com nuances de louro trigal, é festa. Numa ilha ao longe o risco de uma praia deserta com areia cor de maravilha. Começo a rezar, com a fé dos ímpios que é muito mais verdadeira, para que este lindo planeta não se acabe antes de mim.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Nós e Shakespeare



Edmilson Siqueira

Miss Fobê chegou falando em português mesmo, embora aquela fosse uma aula de inglês. Inglês do clássico que iria formar a última turma – acho que no Brasil – nesse curso. As que terminaram o ginásio no ano seguinte já não poderiam escolher entre o clássico e o científico: iriam todos para o colegial. Era assim o ensino brasileiro nos anos 60. E funcionava. Depois, quando o ensino público começou a perder verbas e mais verbas, o ensino particular ficou melhor. Não que o particular tivesse feito um grande esforço para se igualar ao público. Foi o público que piorando ano a ano, se igualou ao péssimo ensino particular que havia no Brasil à época. Estou me referindo aos oito primeiros anos de vida escolar que hoje nem sei como se chamam. Nas universidades parece que as coisas estão mais parecidas com os anos 60: as boas são as públicas.

Mas Miss Fobê, que encontrei há cerca de dois anos no Deck Sousas, almoçando com uma turma de ex-alunos, chegou e logo de cara disse que iria dar um trabalho de literatura inglesa para ser feito durante todo o ano e entregue apenas no fim do ano. E valia nota. Literatura inglesa, para um punhado de meninas e alguns poucos meninos – éramos quatro ou cinco entre mais de 35 meninas – só podia ser Shakespeare. E era mesmo. Ela escolheu umas oito peças do bardo da velha Albion e distribuiu entre grupos formados ali na hora. Não me lembro se o grupo que me escolheu foi o mesmo do Amadeu Tilli, mas me lembro muito bem que ele reuniu o grupo dele e mais outro e combinou de que ambos ficariam com a mesma peça: Otelo. A união dos dois grupos era porque o elenco da peça era grande.

Elenco? Como assim? Tilli era artista de teatro, havia participado do TEC ou TECA, sei lá, algo como Teatro Estudantil de Campinas e, ó glória! havia participado de uma novela da TV Tupi que havia sido exibida no início da tarde durante uns tempos. Ou seja, era um artista completo, pronto para ensaiar um bando de gente que jamais havia pisado um palco. E com nada menos que Willian Shakespeare, um autor que até hoje desafia os maiores atores ingleses.

Bom, estávamos no Brasil, 1969, um ano depois daquele ano que não terminou e, claro, depois do AI-5 baixado em dezembro de 1968, tudo podia acontecer. Ou não acontecer (quem viveu aquele tempo sabe do que estou falando).

Mas, com ou sem regime fechado, pra chegar lá, tivemos que aprender o bê-á-bá do teatro. Para tanto compramos uma edição de bolso de Otelo. É esse que está aí na foto que ilustra esse post. Edição de bolso que Tilli reduziu drasticamente, cortando enormes trechos para adaptar o texto – sim, mudamos Shakespeare! –às nossas, digamos, condições teatrais. Esperto, nosso diretor fez a gente ler o livrinho muitas vezes. E ia corrigindo as leituras, tentando dar aos nossos recursos vocais alguma semelhança com um fala teatral. O tempo foi passando e, de repente, eu já sabia falas inteiras do Brabâncio, pai da Desdêmona, a infeliz heroína da tragédia, traída pelo invejoso Iago que induz o mouro Otelo, marido dela, a pensar que ela era infiel.

Quando começaram os ensaios com marcação de palco e tudo o mais, Tilli arrumou um pedaço da loja de flores da família (sim, Tilli Flores) para o “elenco”, ali na Thomaz Alves, perto da Avenida Anchieta. Claro que durante o ano inteiro havia outras sete ou oito matérias que não tinham nada a ver com o inglês, mas para aquela turminha, o ano era do Otelo, o que não impediu que todos fossem aprovados em todas elas. Éramos bons alunos também.

Como Tilli era amigo da classe teatral local, não foi difícil arranjar indumentárias que foram adaptadas para parecer le dernier cri de la mode em Veneza no século 15. E como tinha muito discos clássicos, arranjou alguns para ser a trilha sonora. Faltava o palco da apresentação, pois uma peça dessas não caberia na sala nove do Culto a Ciência, a que mais se parecia com um teatro.

Sei lá quem arrumou – talvez o próprio Tilli – o teatro da Secretaria de Cultura. À época Campinas não tinha um teatro digno (alguma novidade?). O Municipal já havia sido derrubado e o Centro de Convivência acho que nem tinha começado a ser construído. E o Castro Mendes acho que ainda era o Cine Casablanca. O único teatro era um espaço para uns 400 lugares, com palco e plateia, onde hoje é a sede da Câmara de Vereadores, lá na Avenida da Saudade. Era ali que funcionava também a Secretaria de Cultura.

E lá fomos nós para alguns ensaios antes da grande apresentação. É bom que se diga que, no segundo semestre não se falava outra coisa ali no círculo do velho Culto mais chegado às letras. A classe inteira convidou familiares e amigos, a notícia correu e o resultado foi que os 400 lugares do teatrinho foram ocupados numa noite no meio da semana. Ou seja, o grupinho de alunos do primeiro clássico do Culto à Ciência tinha lotado o teatro para a única e exclusiva apresentação de um trabalho de classe. Data? 14 de outubro de 1969.

Foi a glória para todos nós. Mas a minha, em particular, quase vai por água abaixo. Eu começava a peça falando da coxia, era um pai acordado pelo barulho. Eu perguntava dos meus “aposentos” qual era o motivo do barulho lá fora. Apesar dos meus 17 anos, já tinha uma voz meio grossa e, no silêncio do teatro, ela soava mais grossa ainda. Pois aquela voz deu à platéia a perfeita noção de que entraria em cena um homem já feito, alto, bravo e bem vestido. E eis que surge esta figura, baixinho, de barba branca e vestindo uma enorme camisola que Amadeu Tilli jurava ser a veste com que dormiam os pais das heroínas no século 15. O teatro veio abaixo numa sonora gargalhada que nós jamais pensávamos fosse acontecer naquele momento. Aguentei firme nos segundo seguintes, os mais longos segundos que já vivi na vida, tentando não esquecer o texto e dar à cena a dramaticidade que Shakespeare sonhou (ele já deve ter nos perdoado).

O fato é que conseguimos ir até o fim, com todo o “elenco”se comportando como gente grande. A morte de Otelo foi assistida num silêncio sepulcral. Quando as cortinas se fecharam, a plateia irrompeu num aplauso que, sinceramente, não esperávamos. Para nós, era um trabalho de classe. Quando o “elenco” entrou todo no palco para agradecer, todos passaram a aplaudir de pé e assim permaneceram por uns dois minutos. Faz 44 anos, mas parece que foi na semana passada. Quando eu lembro ainda me dá um nó na garganta.

Há uns quatro ou cinco anos, mais ou menos, Zezé – que foi aluna de Miss Fobê no curso de letras da PUCC – assistiu a uma palestra dela no Royal Palm Plaza. No meio da palestra, ao citar exemplos de dedicação, superação e crença na possibilidade de cada um e de todos, ela citou seus alunos de 1969 que, do nada, do nada, levaram uma peça de Shakespeare no teatro e foram aplaudidos de pé. É mole?

domingo, 8 de julho de 2012

Nostalgias domingueiras



Edmilson Siqueira


Dia desses vi Felão andando no Centro de Campinas. Tem o meu tamanho (1,65m mais ou menos), mas uma barriga enorme. Os cabelos já estão brancos nas laterais e ele anda devagar, talvez pelo peso da barriga, talvez pelo peso dos pensamentos. Felão - Félix Benedito Himalaia - é advogado, mas sem gravata ou paletó. Anda de camisa pólo e calça jeans e a última vez que soube de sua profissão, estava trabalhando para um sindicato. Nunca conheci cliente seu ou mesmo algum caso. Um dia, quando eu ainda trabalhava no jornal, me ligou dizendo que estava fazendo aniversário – acho que 54 anos – perguntando se eu não podia botar na coluna. Não podia. Felão nem era político ou algum advogado famoso, desses que ganham milhões a cada escândalo em Brasília. Fiquei devendo. Mas compensei com uma crônica no Farol que eu escrevia na Metrópole e onde revelei que ele era sãopaulino até cinco ou seis anos e depois sucumbiu aos encantos e à magia – como tantos outros – de um timaço comandando por ninguém menos que Pelé. Eu mesmo torci muito para o Santos nas competições internacionais. Aquele 4 a 2 contra o Milan, no Maracanã, de virada (estava dois a zero no primeiro tempo), acho que em 1962, eu ouvi inteirinho no rádio. E Pelé nem jogou. Só não gostava quando a vítima era o meu São Paulo. 

Felão era bom de bola. Não era rápido, mas tinha domínio soberbo. Tipo Coutinho, pra quem viu jogar. Pra quem não viu: Pelé dominava no meio do campo, driblava o primeiro, o segundo, o terceiro e na entrada da área passava para Coutinho. A bola sumia debaixo do pé e daquele corpanzil e aparecia limpa, já à frente de Pelé que, àquela altura já estava ali na marca do pênalti, e os adversários caídos pelo caminho. Chamavam de “tabelinha” (chamam até hoje, aliás) e parecia mágica. Aqui em Campinas vi uma dessas. Foi naquele cinco a um que o Guarani aplicou no Santos nos anos 60. Joãozinho tinha feito o primeiro do Guarani. Driblou uns três do Santos pela direita, invadiu a área, Gilmar saiu e ele tocou no canto. Lembrei com ele, há uns meses, esse jogo, lá no 16º andar da Prefeitura. Contei detalhes que nem ele se lembrava. 

Mas falava dos mágicos do Santos. Depois do gol de Joãozinho, Pelé e Coutinho deram a saída e foram tabelando até dentro do gol do Guarani. Nenhum jogador do Guarani tocou na bola, a não ser para pegá-la no fundo do gol. Eu estava sentado na chamada “geralzinha” do estádio, aquela parte que fica hoje embaixo do tobogã que não existia à época. Era o ingresso mais barato e nem dava pra sentar direito, já que os degraus eram pequenos. Ao meu lado, Nelson Boccato Júnior que é médico em Sorocaba. Santista, pelezista como o Felão. Naquele tempo, torcedores de times diferentes podiam sentar lado a lado durante um jogo, o país ainda tinha um pouco da civilidade e da educação que viria perder logo mais.

Nelson, ou o Nê, como eu o chamava, morava na mesma rua que eu, quando comecei no Culto à Ciência, em 1963. Rua Francisco de Assis Pupo, na Vila Industrial. Íamos juntos para o colégio. Isso depois que ele sarou de um problema cardíaco que o fez ficar em repouso acho que os 40 primeiros dias de aula. Todo dia, depois da aula, eu chegava em casa, almoçava, pegava os cadernos e ia à casa dele. Lá passava as aulas, ou melhor, as “lições de casa” e ele ia estudando. Quando começou a frequentar as aulas estava por dentro de quase tudo. E passou com melhores notas que eu.

Encontrei o Nê há uns 12 anos, naquela festa do Culto à Ciência no Ginásio da Unicamp, a maior que conseguiram fazer até agora. Estão preparando outra, mas acho que essa será no próprio colégio, que é o lugar certo. Nê estava estranho, pensei que seria mais efusivo ao me encontrar, mas foi meio frio pro meu gosto, a gente não se via há décadas. Perguntei onde ele andava e ele disse “Sorocaba, aparece por lá um dia” e sumiu. Contei esse fato a uma amiga dos botecos da vida que encontrei naquela festa e ela me disse: “Virou médico, né?”

Discordei dela, não na hora, mas depois, quando me lembrei do Plínio Amaral. Tricolor de coração, Plinião era um desenhista enorme. Nos dois sentidos, pois sempre foi gordinho, o que o atrapalhava enormemente nas aulas do seu Stuchi, de educação física e no futebol, que a gente sempre jogava depois da aula, às vezes até escurecer, no campo que havia onde hoje está o anfiteatro do Culto à Ciência. Mas ele desenhava com uma facilidade tão grande que eu morria de inveja. Plinião se formou médico e a gente se reencontrou no City Bar, séculos depois, ele casado com a Suzana, que trabalhava na Prefeitura à época e era colega de trabalho e amiga da minha então mulher. Ficamos amigos então, de novo, em meio a grandes noitadas regadas a cerveja e muito papo. Tenho até hoje, completamente amarelado pelo tempo, um retrato meu que ele desenhou num pedaço de papel na mesa do bar. Colei num papelão, plastifiquei, mas que nada, o tempo está comendo o coitado como um retrato de Dorian Gray sem o efeito mágico de manter o original sempre jovem.

Há um comentário na poesia que Contente escreveu em forma de crônica para o blog. A autora é Marisa Lage. Na verdade ela me mandou um e-mail que eu transformei em comentário do blog. Marisa parece que mora em Porto Velho (RO) e eu a descobri há alguns anos, ou ela me descobriu, já que andei exposto por aí quando escrevia a coluna de política no Correio. Marisa eu conheci já no clássico do Culto à Ciência. Morena de cabelos pintados de loiro, alisados acho eu, era bonita e se sentava ao meu lado na classe. E eu ficava admirando suas pernas em quase todas as aulas, ela que vestia sempre uma mini-saia das mais generosas em 1968, quando essa moda estava no auge. Fizemos Otelo de Shakespeare, mas isso é outra história que pode render várias crônicas. Ela era Desdêmona, a amada do herói mouro e eu Brabâncio, seu pai (dela, não do mouro). Foi um carreira artística curta, mas repleta de emoções, como vocês saberão quando essa nostalgia toda voltar a me encontrar ao lado de uma garrafa de Baron d’Arignac, vinho francês barato, mas muito bom, como quase todos os vinhos daquele pedaço da Europa.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Novidades no Crônicas ao Léu

A partir de hoje, o Crônicas ao Léu muda um pouco. E, com certeza, melhora. Além das minhas mal-traçadas, convidei dois amigos para também atacar o teclado e publicar aqui seu sonhos, devaneios, suas verdades e suas versões, já que cronista não mente, apenas adapta a realidade às suas histórias.

E a estreia é com os dois logo de cara. A primeira crônica é de Alberto Dini, jornalista calejado – calos adquiridos nas Remingtons e Olivettis da vida, bem antes do teclado macio e silencioso dos micros dominar as redações – e amigo novo, que conheci na Prefeitura e, com a geração dos anos 50 nos unindo, fomos logo papeando e descobrindo histórias deliciosas que vivemos à mesma época.

A segunda crônica é de Antonio Contente e, para quem é de Campinas, acho que o moço dispensa comentários. Mas para quem não é ou não conhece, vou logo dizendo que ele escreve semanalmente no Correio Popular, já escreveu na Folha e hoje vive os prazeres de uma aposentadoria dividida entre Belém do Pará e Campinas. Aposentadoria que não impede sua produção de histórias, para deleite de seus leitores.

Bom, chega de papo furado e vamos dar início ao espetáculo. De hoje em diante, eles estarão aqui, no intervalo de tempo que quiserem e que meus novos afazeres na vida lá fora permitirem atualizar o blog.

Edmilson Siqueira

Dona Mazinha, o gavião e o bem-te-vi aleijadinho




Alberto Dini

Vi no portal da Prefeitura a bonita e bem escrita matéria que o Carlãozinho Lemes fez em cima das não menos bem feitas fotos que o Carlos Bassan fez do casal de gaviões que resolveu ninhar nas árvores do Palácio dos Jequitibás.

Pra falar a verdade, esse casal deve ser o mesmo que morava em um flamboyant muito bonito que havia em um estacionamento defronte à minha janela de quinto andar, perto da PUCC Letras. Há uns dois anos, o flamboyant foi vil e covardemente cortado pelo dono do estacionamento, que aproveitou o feriado prolongado do carnaval para cometer o crime.

Claro que todos os moradores do prédio ficaram putos com toda a razão do mundo com o cara que cortou a árvore. Todos menos uma: a dona Mazinha, que à época era minha vizinha do 42. Ela festejou sem pudor a derrubada do lindo flamboyant que servia de morada ao casal de gaviões que o Bassan agora flagrou construindo um novo ninho na Prefeitura.

Num destempero verbal meio incompatível para quem não perdia uma novena na Igreja do Carmo, Dona Mazinha fulminou para quem quisesse ouvir: “Já vão tarde esses filhos da puta”. A frase foi repetida várias vezes em alto e bom som nos corredores, nos elevadores e até na portaria do prédio, quando ela ia todas as tardes levar café com leite e pão com manteiga para o porteiro que estava em serviço. Mas ninguém ficou chateado com Dona Mazinha não, e vocês vão saber porque.

Há uns três ou quatro anos, resolvi tirar uma rede que enfeitava a minúscula sacada de meu apartamento e a substituí por alguns vasos com plantas ornamentais. Para minha surpresa, constatei que alguns passarinhos começaram a rondar a sacada. Aí comprei dois bebedouros para colibris e comecei a colocar bananas e mamões junto com algumas vasilhas de água fresca. Resultado: minha sacada passou a ser frequentada por beija-flores, corruíras, sanhaços, sabiás e até um passarinho amarelo escuro das asas rajadas do qual não sei o nome até hoje, e olha que já fui passarinheiro.

Resultado: minha vizinha do 43 resolveu, no mês seguinte, fazer a mesma coisa e enfeitou a sacada com plantas e comida para atrair os passarinhos. Outros dois vizinhos fizeram a mesma coisa e passamos a ser os felizes moradores que têm o privilégio de criar passarinhos soltos. Aí começou a juntar passarinho adoidado no nosso prédio, o que deixou o ambiente mais bonito, apesar do incremento na quantidade de cocô de passarinho nos apartamentos do primeiro andar, que contam com uma sacada maior. Mas, para falar a verdade, ninguém reclamou, até porque poder apreciar de perto a boniteza dos bichinhos compensa qualquer dano. Depois, vamos combinar que limpar titica de passarinho não dá trabalho algum. Se fosse de galinha, vá lá. Mas de passarinho, não.

Eu só percebi a existência do casal de gaviões num sábado cedo, quando fui trocar a água das vasilhas e um sanhaço não arredou asa da sacada mesmo com minha chegada. Para trocar a água tive que chegar a menos de um metro do sanhaço e nada do bicho ir embora, e olha que sanhaço é passarinho arisco e assustado.

Foi quando vi a sombra de um dos gaviões passando a uns dez metros da minha sacada. Certamente estava caçando, para desespero dos nossos hóspedes. Confesso que não me agradou a ideia dos “meus” passarinhos virarem janta de gavião, mas relevei: afinal, gavião não chega a ser gente (como o cachorro do ex-ministro Magri, do governo Collor), mas tem todo o direito de sobreviver. Se a cadeia alimentar determinou que sua comida preferida na cidade fossem sanhaços, corruíras e sabiás, paciência. Mais tarde, com o auxílio de uma luneta, pude localizar o ninho dos gaviões no flamboyant.

Bom, foi bem aí que Dona Mazinha entrou na história. Quem entende um pouco de passarinho sabe que bem-te-vi adora fazer ninho em transformadores de energia, de preferência naquelas abraçadeiras que prendem o equipamento nos postes, a uns seis ou sete metros de altura.

Pois bem: um casal de bem-te-vi resolveu fazer ninho no transformador que dava bem de frente para a janela do apartamento da Dona Mazinha. Porém, por infelicidade, um dos filhotes caiu do ninho e se arrebentou todo, tendo quebrado uma das asas, sendo resgatado por Dona Mazinha e o Zezé, empregado do estacionamento.

Cuidadosa, Dona Mazinha levou o filhote de bem-te-vi ao veterinário e ficou sabendo, consternada, que o pobre animalzinho jamais poderia voar. Quando o filhote ficou bom, o Laércio porteiro, que é jeitoso com madeira e ferramentas, fez uma espécie de caixinha coberta, muito bonita, inclusive com um poleirinho para facilitar a entrada e saída do bentevi aleijadinho de seu novo lar.

A caixinha foi colocada num cantinho estratégico no telhado do estacionamento, ao abrigo do vento e da chuva. E era a coisa mais bonita ver como, todas as manhãs, por volta das sete horas, depois do café, Dona Mazinha levava as frutas que o Zezé colocava em cima do telhado para o aleijadinho comer. Assim se passaram semanas, o bem-te-vi cada vez mais bonito e bem alimentado, e Dona Mazinha e o Zezé do estacionamento cada vez mais orgulhosos do passarinho que salvaram da morte depois da queda do ninho.

Até que um belo domingo de manhã, quando o bem-te-vi aleijadinho traçava uma banana na porta da casinha, foi capturado por um dos gaviões. Ali mesmo foi devorado vivo, enquanto piava desesperadamente para desespero ainda maior da Dona Mazinha que gritava da janela enquanto o Zezé procurava uma escada para subir no telhado e espantar o gavião. Quando o Zezé conseguiu subir, o gavião simplesmente saiu voando com o bem-te-vi aleijadinho preso nas garras e foi terminar a refeição em uma viçosa sibipiruna do jardim da PUCC Letras.

Zezé percebeu que não havia mais nada o que fazer. Mas Dona Mazinha não se conformou. Desceu e queria porque queria pular o muro da PUCC para resgatar seu animalzinho de estimação. Não conseguiu, pois para uma senhora de 65 anos pular muro é muito difícil. Ainda tentou convencer o Zezé e o Laércio, mas eles ponderaram que àquela altura o bem-te-vi já estava sendo digerido.

Dona Mazinha ficou inconsolável. Segundo o Zezé do estacionamento, ela teve até febre de tanta tristeza. Mais tarde, rolou uma conversa no prédio que Dona Mazinha havia sido vista em uma loja tentando comprar uma espingardinha de pressão (houve uma outra versão, segundo a qual não era espingarda de pressão, mas sim um estilingue e um saco de bolinhas de gude).

Há cerca de seis meses, Dona Mazinha mudou-se para Ribeirão Preto, para ir morar com a filha, que acabara de enviuvar. Com toda solidariedade pelo passamento do genro, acho que foi melhor assim. Se a Dona Mazinha ainda estivesse morando em Campinas e visse essas fotos do Bassan e o texto do Carlãozinho, acho que os gaviões não estariam seguros no jardim do Paço. Ainda mais com Dona Mazinha armada com uma espingardinha de pressão. Ou, pior ainda, com um estilingue e um saco de bolinhas de gude.

Receita para uma bela tarde




Antonio Contente

Primeiro, amigo, pegue um tempo absolutamente não sujeito a chuvas ou trovoadas. Delimite-o, então, entre quinze e dezoito horas, justo no instante em que o trinar de um sabiá-laranjeira seja o som perfeito para acariciar a brisa e modular o balanço dos galhos. Que podem, e até devem, roçar pela sua janela. Para dar a impressão que regem os primeiros acordes de uma sinfonia que comece a ser composta naquele momento.

Cace, com o melhor dos seus olhares, uns brancos tufos de nuvens que naveguem pelo azul. Adivinhe, no rastro deles, o caminho dos sonhos e o destino das quimeras. Perpasse, pelas trilhas que foram das estrelas na véspera e o serão dos astros do logo mais, o aceno a ser benzido para que fique pronto no instante da entrega. É nas tardes que se devem fecundar as predisposições às oferendas. É nas tardes que se podem formular os amores gratos. Pois se as manhãs cintilam para as explosões da luz, é no pós-meio-dia que se cria o ninho do aconchego nas tênues claridades namoradas do íntimo do lusco-fusco.

Não se esqueça de bem cuidar do significado das claves. Burile-as, de sol ou de fá, para que, sem precisar de traços em pentagramas, seja escrita a melodia da impressão e do gesto. Que será espargida sobre o silêncio da chegada, no instante em que a porta se abrir para que passos breves circulem em sua sala. Que aos poucos será tomada pelo perpassar da carícia, pelo significado do olhar ternamente azul, pelo intraduzível do beijo, pelo perfume da pequena aurora concentrada no derramar de certos cabelos claros como sois muito, muito matinais.

Nenhum outro horário é melhor para as chegadas do que as tardes. Elas são o invólucro mágico que contém, nas dobras do silêncio, o sentido alarido da satisfação. Tardes foram feitas para a entrega da mesma forma que as manhãs o foram para o preparo e as noites para o descanso do amor cumprido.

Olhe pela sua janela, e, ao detectá-los, ponha as mãos, balançando-as no ar, para a contenção dos suspiros da luz. Nada é tão bom, nas horas que cingem a véspera do crepúsculo, como singrar as nuances meigamente criativas do envolvimento. Note, perceba como, a partir da árvore próxima, ele começa a compor a paisagem que se amplia dentro de nós. Aqui, um toque do amarelo que só Van Gogh conseguiu maturar; ali, um róseo de Manet, um azul de Picasso, um gris com tudo de Lautrec, ou um pequeno turbilhão de rubros hibiscos saídos de uma lúcida alucinação de Gauguin.

Para, amigo, coroar sua tarde, pegue o grande universo possível de ser percorrido no exíguo daquelas horas. Concentre-se na insofismável verdade de que o eterno é apenas a beleza que foi captada num segundo. Sinta, a entrar pelas suas narinas, a revelação de que os instantes têm perfumes, o meigo é palpável, e que é o coração que nos dá o melhor tique-taque para percebermos que logo será noite. 

Quando, afinal, ela vier, busque a janela na qual roçou o galho de árvore que regeu a sinfonia do seu navegar. Recorde, imediatamente, da velha lenda de como deve ser o encontro, a cada escurecer, com a primeira estrela. Rápido, faça o pedido. Se for realizado, tanto melhor. Se não, seja apenas condescendente com esta bem intencionada receita para uma tarde feliz.   

segunda-feira, 2 de julho de 2012

2001 e 2 e 3...


A gente nem percebe. Chego em casa do trabalho, perto das oito da noite, e Zezé está dando aula para um aluno na sala. Nem ligo para a cena que, durante a maior parte da minha vida, nem imaginei que fosse presenciar. Zezé conversa em inglês com o aluno que responde e, em seguida, a aula é interrompida pela chegada de uma criança, com menos de dois anos. É a filha dele. Ele a pega no colo, aponta para a Zezé e diz o nome dela, a criança olha, sorri, Zezé diz, carinhosa, “she’s so beautiful” e, depois, “she’s so big”, a menina acena, vai embora e a aula continua. Enquanto o diálogo acontecia, eu estava trocando de roupa no quarto, trocando, não, tirando a roupa para ir para um gostoso banho depois de uma segunda-feira normal, ou seja, estafante. Passei pela aula só de cueca, entrei no banheiro e, quando saí, eles já estavam nas despedidas, bye, bye, see you next week, thank you.
O aluno e a filha estavam a vários quilômetros dali, a aula é dada através de um desses programas de computador que juntam voz e imagem e transmitem, feito uma televisão ao vivo, para qualquer ponto do planeta onde haja sinal disponível. Não, ninguém que está lendo essas mal traçadas está surpreso, claro. Falar daqui com alguém olhando nos seus olhos via internet, no Japão ou na Austrália, é corriqueiro para quem tem um micro ligado na rede mundial. Mas não era assim.

No meio da década de 1970 eu trabalhava na Unicamp. Almoxarifado Central. Além de estocar mercadorias – o que todo bom almoxarifado faz – éramos encarregados de recebê-las e, antes, de cobrar a entrega aos fornecedores. Alguns desses fornecedores eram de São Paulo. E eu era encarregado de cobrá-los. Durante alguns dias, eu juntava as cobranças e quando já tinha umas três ou quatro, ligava, logo que chegava ao trabalho, para a telefonista e lhe passava todos os números dos locais onde precisava falar em São Paulo. Se tivesse sorte, até lá pelas 16h, ela me retornava com uma das ligações pedidas. As outras, só no outro dia.

Havia outra solução, arranjada com o sofisticado setor de importações da Unicamp. Sofisticado porque eles tinham um telefone que tinha linha direta com São Paulo!!! E era fácil: você pegava o bruto, discava (sim discava) o número 7 e esperava o sinal. Se fosse sinal de linha e não de ocupado, parabéns, você tinha conseguido. Aí era só discar rapidamente o número de São Paulo. Com sorte, a ligação saía audível e você fazia a cobrança da mercadoria que a universidade tinha comprado e cuja entrega já estava atrasada. Isso quando a linha não caía no meio da ligação.

Antes ainda, eu morava na Vila e, ali por 1960, meu pai apareceu em casa com um radinho portátil Sharp. Japonês, num estojinho de couro que brilhava e que meu pai mantinha sobre uma cômoda no quarto dele, coberto por uma flanela amarela. Eu nunca tinha visto um treco daquele. Na sala havia um Zilomag, rádio-vitrola, 3 rotações, 3 faixas de onda, elétrico. Claro, a som vinha pelo fio e estava tudo explicado. Mas e o radinho que não tinha fio? Não lembro de ninguém me explicando como se dava o “milagre”.
Lembro-me, sim, de, em algumas raras vezes, alguém chamar meu pai ou minha mãe para atender ao telefone lá no bar do Reinaldo, que ficava na esquina da Carlos de Campos com a Coronel Antonio Lemos, a dois quarteirões de casa. Era o único do pedaço e servia a todo mundo.

Mais recentemente, anos 1980, ainda no primeiro casamento, a então sogra foi trabalhar em Angola. Pra conversar com ela, ligávamos para Portugal que, de lá, fazia a ligação, via rádio, com Angola, recém-saída do colonialismo. Era como falar no Nextel de agora, só que sem aquele botãozinho pra apertar: um de cada vez, sem interromper o que o outro estava falando, senão embaralhava tudo e a ligação bau-bau. E custava uma nota.
Agora a gente nem percebe: a mulher dando uma aula na sala em frente a um laptop. Do outro lado, a quilômetros de distância (e poderia ser a milhares de quilômetros que nada mudaria) o aluno, também em frente a um laptop, falando em inglês e ambos se olhando como se estivessem sentados à mesa. Eu não me espanto, claro, mas para quem pedia ligações para São Paulo que demoravam um dia inteiro para se completar, para quem achava um mistério o radinho de pilha não ter fio e assim mesmo ter som, para quem viu a “modernidade” de um telefone – e apenas um na Unicamp inteira – liberar uma linha direta pra São Paulo, para quem viu o telefone de um bar servir a uns dois ou três quarteirões quadrados de casas lá na Vila, a aula à distância da Zezé me levou diretamente àquela cena inicial de 2001, quando um osso, jogado por uma macaco que o havia descoberto como arma, sobe pela tela em slow motion e, ao som dos acordes iniciais de Danúbio Azul, se transforma numa nave viajando pelo espaço.