sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Aparição



Antonio Contente

Dez horas da manhã, luminosa manhã, na calçada em frente ao bar Giovannetti, no Largo do Rosário. De repente, não se sabe vinda de onde, a aparição. Vinte, vinte e dois anos, no máximo. Sobre o corpo um leve, quase diria diáfano vestido de seda azul feito para a carícia do corpo ante as sutilezas da brisa matinal. Alta, bem alta para mulher, 1,75, talvez 1,78. E ela, além de tudo, se move.

Anda, com os cabelos castanhos claros iluminando o tempo. Por instantes senti que deles vinha um perfume, e um perfume só é realmente bom quando temos a impressão que emerge de nossas melhores recordações de um passado remoto. Channel. Número Cinco...

Agora não eram só meus olhos, parcos olhos, que a viam. Movimentava as pernas esguias, galgas, com elegância de bailarina necessariamente russa. Isso para ressaltar o contorno calipígio nas ancas bifurcado; após, a barriguinha doce em seios maliciosamente verticais, pêras quase fartas. Setas para o céu, caminhos para o infinito, certezas para o azul, simplificação para todas as linhas que os artistas buscam em vigílias e lamentos. Grito desdobrado, subitamente, em canção.

Vai ela, no rumo da Francisco Glicério. Perseguida pelos ventos que disputavam a carícia dos seus contornos, e já meia dúzia de pessoas, que, como eu, passaram da hipnose à condição de autômatos.

Abre o sinal e ela passa em direção à Praça Guilherme de Almeida. Uma esquadrilha de pombos, talvez saída dos escaninhos dos antigos prédios da Barão de Jaguara, a acompanha em formação de alvoroço e enleio.

Fecha o sinal da Conceição, a moça para ante o devoto silêncio da já pequena multidão. Vemos que seus ombros são tostados, um bronzeado de pintura de antigas cintilações de madonas. Perfeitos no contorno da severa precisão, com charme de duas pintas num deles, talvez a assinatura de algum deus que também deu seu toque na clave de sol da singularíssima pessoa. 

Vamos todos, ela à frente, para a calçada que passa em frente ao Itaú. Os passos da aparição não se alteram, fazendo sulcos dourados num prosaico cimento que, de repente, vira Calçada da Fama. Dos olhos da criatura passo a ter apenas uma desejada certeza. Azuis. Irremediavelmente azuis, como o gesto do encanto e a canção primeva. Azul como o primeiro suspiro de Deus após ter feito a mulher, certo de que chegara à sua obra máxima. E ela estava ali, no passeio, entrando na praça em frente à Catedral. Víamos a Eva que fora depositada sobre o Paraíso. 

Não minto, do velho templo esvoaçaram anjos. Não eram mais os pombos da Barão de Jaguara e sim anjos, dos altares e dos púlpitos saídos, em formação de auréola e respeito à beleza. Luz a luz, louro sol sobre trigal em festa. 

Os cabelos bons são aqueles que se ajeitam ao desalinho. Vento dos arcanjos, sopro dos santos, os fios beijavam a testa da aparição acariciando não só a ela, porém à manhã inteira. Diria que os que agora acompanhavam a criatura eram centenas. Não um exército de famintos, sim um exército de alimentados.  

Caíra sobre nós o manjar dos céus, se abrira o mar ente o gesto de Moisés pasmo pela beleza e pelo seu melhor fruto, antecipação de um decálogo das perfeições mais que perfeitas. E em todos nós se consubstanciava um silêncio posto na sua versão de absoluto.  

Em tal instante, no centro mais movimentado da cidade, nenhuma buzina, nenhum motor roncando, nenhum alarido de vozes ou contidos suplícios. Só os passos dela, da aparição, ecoando na calçada. Sandália dourada, apenas duas ou três tiras contendo os pés de Cinderela às vésperas do casamento com o príncipe.  

E então nós, os hipnotizados, éramos milhares.

Raio absurdo do céu, catástrofe apocalíptica mandada do infinito, de repente um dragão a absorveu. Revelado na sisudez de um velho prédio quase na esquina da Ferreira Penteado, a boca transformada em porta a levou. O suspiro da multidão se ergueu com pasmo e desesperança. Campinas, dez e meia da manhã. Uma manhã que, afinal, até hoje não consigo saber se realmente existiu. Apesar do perfume que ficou, para sempre, no ar... no ar...

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Uakti em Bê Agá



Edmilson Siqueira

Zezé e eu estamos indo amanhã, sexta-feira, 16 de novembro, para BH. Não, não conhecemos BH e vamos conhecer só um pouco, já que a gente volta no sábado, começo da noite. No meio dessa correria, um show do grupo Uakti interpretando Beatles. Pra quem conhece o Uakti já pode ir imaginando o que eles fizeram com as canções dos Fab Four. Não, não pode não, é melhor ouvir alguma coisa antes. Tem na rede, no Youtube, um making of muito bom. É coisa de arrepiar quem, como eu, foi amante dos Beatles e dos Rolling Stones e hoje também curte boa música instrumental, jazz principalmente.
O Uakti é um desses fenômenos que, acho eu, poucos países no mundo podem produzir. Um grupo de 4 em que só três tocam. O outro compõe e cria instrumentos. Sim, isso mesmo: cria instrumentos. Não sei os nomes deles todos (dos instrumentos, aliás, nem dos músicos) mas Zezé foi amiga do criador, Marco Antonio Guimarães, e me contou alguma coisa a respeito dessa figura. Ele via música em qualquer lugar. Olhava para um desenho de ladrilhos na parede e cantarolava internamente o som que eles estavam exprimindo. Um dos instrumentos é feito com tubos de PVC de vários tamanhos para dar notas diferentes. Usavam um chinelo havaiano para bater na boca dos tubos - e o som saía grave e bonito. Hoje já não usam mais o prosaico chinelo e sim um treco próprio, eu vi no making of, e o som continua magnífico.

Tenho alguns CDs do grupo e já fui a um show deles no tempo em que o Centro de Convivência existia. Emocionante é o mínimo que se pode dizer do som e da música que eles fazem a partir daqueles estranhos instrumentos. Claro que tem flauta, violão, contrabaixo, convidados e sei lá o que mais, afinal os instrumentos criados não estão ali por puro exotismo e sim porque eles fazem um som diferente que combinam com os sons tradicionais e o resultado é de deixar qualquer um pasmo.
Antes de iniciar esse parágrafo fui dar uma olhada novamente no Youtube. Tem bastante coisa deles lá, inclusive Here Comes the Sun inteirinha. E, claro, o making of que citei no início. Há uma mulher no grupo nessa música que, quando assisti em Campinas não estava lá. Mas os outros são os mesmos. Aliás, há 30 anos. E os instrumentos usados nessa música - você pode conferir no fim do clip - são os seguintes: marimba de vidro, marimba d’angelin, grande pan e darbuka. Estranho né? Mas o som sai limpo, bonito, dando uma vida nova a uma música que deve ter tido centenas de gravações por aí. Quer ouvir? É só clicar no link: http://www.youtube.com/watch?v=8mPnIEVis88. E na página que abre tem mais Uakti, gravações mais antigas, inclusive uma sublime da Bachiana Brasileira nº 5, que tive a felicidade de ouvir no show aqui em Campinas e tenho em CD. Vale a pena.

Então fica assim: amanhã de manhã embarcamos na Azul em Viracopos, descemos no Confins e vamos prá Bê Agá, curiosos por conhecer um pouco da capital mineira e excitados pelo show que une o talento indiscutível de um grupo que não tem paralelo no mundo com a música que mudou o mundo pra melhor. Sábado a gente tá de volta, com o CD novo na mala e lembranças formidáveis na cabeça.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O primeiro jornal a gente não esquece

Edmilson Siqueira

Acabei de escrever um post sobre o Jornal da Tarde que nos deixou nesta semana e já tenho assunto para outro post na mesma linha: no próximo domingo chega às bancas a última edição impressa do Diário do Povo, o jornal que mais tempo viveu em Campinas. Justamente nesse 2012 ele faria – ou já fez – 100 anos. Um século no qual passou por todas as fases possíveis da imprensa, do velho chumbão à era da informática.
Eu entrei nele em 1977, pelas mãos do advogado Antonio Augusto Chagas, amigo de Romeu Santini que era diretor de Redação à época. A sede – redação, oficina, tudo – ficava ali na César Bierrembach, entre a Dr. Quirino e a Luzitana, ao lado do Sindicato da Fepasa. A redação tinha 3 telefones, mais um exclusivo do diretor. Ficavam numa bancada e a gente pegava o que estivesse livre. Quando tocavam, quem estivesse mais perto atendia. De terça a domingo ele era feito no chumbão mesmo. De segunda havia uma edição extra em offset.  
Não era jornalista, quer dizer, não tinha diploma, mas me virei bem. Tanto que um mês depois de entrar, comecei a cobrir política que, naqueles anos de “abertura” – o general de plantão, Ernesto Geisel dizia que havia uma distensão política, lenta e gradual, no seu governo – era a principal editoria, depois da de Esportes, claro.
Entrava por volta das 13h, pegava a pauta que haviam deixado na minha máquina de escrever e ia pra Prefeitura. Voltava no começo da noite e, duas vezes por semana, escrevia até às 20h e voltava à Anchieta 200, só que agora no espaço da Câmara de Vereadores para cobrir a sessão. Tivesse ou não sessão, eu era ó último repórter a sair, onze e meia, meia-noite, por aí. Dia seguinte tinha curso de Sociologia na Unicamp, quarto semestre. Durou um mês a aventura de ir dormir à uma da manhã e chegar na Unicamp às oito. Como precisava trabalhar, deixei o curso de lado. Entrei na PUCC só em 81 e aí conclui o curso de Jornalismo.
Essa minha primeira passagem no Diário durou pouco também. Uma revista nova, de Jundiaí, sobre economia, queria se expandir para a região de Campinas e me contratou. Fiquei quase dois anos por lá. Mas o Diário foi o início de tudo. Conheci Zaiman, Gilberto Prato (Betoca), Flávio Lamas, Cidinha,  Saviani, Contente, Graça Caldas, Neldo, Nerivelton, Marciano, Nelson Chinaglia, Teresa (nem todos do Diário) e outros que não me lembro, nesses poucos meses que passei por lá em 1977. Foi minha escola real inicial, eu que nunca havia sequer entrado numa redação. Foi ali que tomei contato com laudas, pautas, negativos, fotos, matérias, retranca, reportagem, coletiva, exclusiva, em off, em on, chumbão, offset, abre, lead e toda a linguagem atinente à profissão.
Ao Diário, que se vai centenário, devo as primeiras lições, as primeiras matérias assinadas, os primeiros cacoetes, as primeiras responsabilidades de derrubar uma autoridade apenas com uma reportagem bem feita.
Mas devo muito mais. Em novembro 1982 deixei a reportagem da Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes) e voltei para o Diário do Povo, então já instalado no prédio do falecido Jornal de Hoje, ali no Trevo da Anhanguera. Fui contratado como editor. Fazia Nacional e Economia até por volta das 20h e depois ia pra “mesa de fechamento” ajudar na edição local. Cesinha, Marcos Vinicius, Serginho e eu pegávamos a produção diária dos repórteres para enfiar nas páginas locais. Além disso, eu passei a assinar uma coluna que revezava com Zeza Amaral – três dias da semana ele, três dias eu.
Essa segunda passagem foi muito gratificante. Além de aprender a editar – nós mesmos diagramávamos, o jornal vivia numa pindaíba de dar dó e nem tinha diagramador – ter uma coluna tri-semanal foi do cacete. Ali eu podia escrever o que quisesse, a censura era só a do regime militar que estava nos estertores. Em 1984 houve a campanha das Diretas Já, com o Brasil inteiro se mobilizando para que uma emenda que determinava eleições diretas para presidente na sucessão do último general (João Figueiredo) fosse aprovada no Congresso. Escrevi várias colunas sobre o assunto e a última foi convocando todo mundo para o Largo do Rosário, para um ato de vigília no dia da votação da emenda em Brasília.
Mas a ditadura ainda estava forte. Fecharam Brasília e ninguém podia noticiar, por rádio ou televisão, o que estava ocorrendo por lá. E Largo do Rosário lotado para comemorar a volta das eleições diretas,  sem saber o que estava acontecendo na capital do país. Só que as agências de notícias – Estado, Folha, JB – estavam abastecendo os jornais normalmente. As rádios locais estavam proibidas de noticiar qualquer coisa referente à votação, mas os jornais – que só iam sair no dia seguinte – estavam recebendo tudo. Foi aí que alguém teve a ideia de fazer uma ligação direta entre a redação do Diário do Povo e o equipamento de som armado no palanque do Largo do Rosário. Botaram um rádio e um microfone ao lado das máquinas que recebiam as notícias e aí surgiu outro problema: quem iria falar no microfone da Redação para o povo do Largo do Rosário? Naquele momento eu era o único ali que tinha trabalhado em rádio. Sobrou prá mim, claro. E fomos à luta: separávamos as notícias que chegava das agências e as transmitíamos para o Largo. No retorno do som do largo eu percebia a reação de aplauso ou vaia às notícias transmitidas. A cada novo deputado ou senador que chegava e anunciava voto a favor das diretas, todo mundo aplaudia. Quando a notícia era contra a emenda dava para ouvir não só a vaia, mas alguns palavrões também.
Até que anunciei, por volta das 22h, o resultado da votação: a emenda Dante de Oliveira, das Diretas Já, havia sido derrotada pelo plenário e seria arquivada. Eu frequentei muito campo de futebol na vida, mas jamais tinha ouvido, de uma só vez, tanto palavrão quanto no momento em que dei a notícia.

No dia seguinte o jornal fez uma reportagem sobre o “furo” que demos na censura e até eu fui entrevistado sobre o papel de locutor que acabei exercendo e, por força das circunstâncias, dando a notícia triste do fim do sonho das diretas já.  Mas a política é fogo: a oposição conseguiu eleger Tancredo Neves e, assim, adentrávamos, solenemente, na era democrática, dando um pontapé no traseiro da ditadura. Pena que Tancredo morreu antes de assumir e tivemos que engolir Sarney por cinco anos. Mas democracia é assim mesmo: só melhora se for constantemente praticada.
Fica aqui esse pequeno depoimento – há muito mais a contar – sobre o Diário do Povo que sairá às ruas pela última vez nesse domingo. Vai sobreviver virtualmente na rede. Para a nossa geração não  é a mesma coisa, mas eu aprendi, há muito tempo, a não brigar com o progresso.