segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A rifa


 

Edmilson Siqueira
Meu amigo Antonio Contente, que divide essas bissextas crônicas comigo, vai gostar da história que relato a seguir. História genuinamente verdadeira, apenas com nomes trocados porque os personagens ainda podem estar por aí e, como diria Contente, caldo de galinha e precaução são bons até em Belém do Pará. Pensando bem, acho que ele não diria isso, pois costuma colocar o nome dos amigos nas crônicas e inventar as histórias. Ele inverte o processo e o nomeado que se vire...

Bom, foi numa conversa dessas que a gente costuma dizer que joga fora, que conheci a história seguinte. Aconteceu entre os amigos de um velho ponto de táxi num antigo bairro da cidade. Naquela época, como não havia os serviços de chamar táxis a partir de uma central telefônica, havia menos corridas e os motoristas passavam mais tempo no ponto, jogando um baralhinho e, claro, se conhecendo muito mais. Assim, fiquei sabendo que Jairo, o coordenador do ponto, era mulherengo que só vendo. Bom de papo, quando uma passageira mais ou menos ajeitadinha entrava no seu táxi, os amigos já se olhavam como cúmplices. Ao virar a esquina, as apostas surgiam e era difícil achar alguém que apostasse contra o Jairo e sua fina lábia.  
Osmar, o amigo que me contou a história, informou também que a mulher de Jairo – sim, ele era casado há vários anos – era ciumenta demais. “E com razão”, acrescentou. “Jairo não perdia corrida, se é que você me entende”.

Pois não é que um dia o telefone do ponto tocou, Jairo atendeu e, assim que desligou, disse para os colegas: “Não volto mais hoje”. Como ainda eram duas da tarde, todos pensaram a mesma coisa: “Aí tem...” E tinha mesmo. Dia seguinte Jairo contou a novidade: “A mulher que ligou ontem é uma ricaça que eu peguei um dia lá no Tênis Clube. Não é viúva, mas o marido estava junto e no maior caco. Foram brigando no táxi, em voz baixa, mas eu ouvi tudo. O cara não dá mais no coro de tanto que bebe. Quando eles chegaram, ali na Nova Campinas, fiz questão de descer, abrir a porta pra ela e admirar aquelas belas pernas. Ela percebeu e mostrou mais ainda. O marido estava descendo do outro lado, quase caindo e eu aproveitei e lhe dei um cartão meio escondido. Ontem a Maria Helena – é esse o nome dela - ligou”.
“E aí?”, perguntaram os quatro atentos ouvintes.

“Aí”, respondeu Jairo, peito meio estufado, se esforçando um pouco para esconder a barriga, “ela saiu de casa sozinha, com um vestido mais generoso que o da primeira corrida, sentou no banco traseiro sem se importar com as pernas à mostra e disse que o marido estava viajando a negócios, São Paulo, Rio, por aí e só voltava em dois dias”.
Os amigos taxistas esfregaram as mãos: “E aí?”

Jairo fez cara de vencedor: “Aí fomos para um motel e passamos a tarde toda lá”.

O caso já durava um mês quando Jairo chegou ao ponto de manhã e saiu do carro com uma caixa na mão. Mostrou aos amigos: “Olha só o que ela me deu”. Era uma camisa importada, de pura seda, coisa de ser comprada com muitos dólares naqueles anos de inflação louca. Não era pra taxistas como eles que ficaram de boca aberta admirando o presente. Mas Jairo estava triste: “Como vou chegar com isso em casa? A patroa me mata, não vai acreditar se disser que comprei, vai querer ver a nota, vai querer saber o preço e vai descobrir que é coisa fina demais pro meu bico”.
Foi então que Osmar, que já abandonou a carreira de taxista há mais de 20 anos e vive de próspero comércio no Centro de Campinas, me disse que deu uma sugestão genial pro preocupado Jairo: “Faz uma rifa”.

“Como assim, vou rifar a camisa?”
“Não. Você compra uma cartela dessas com nome de mulheres na frente e atrás, aquelas do Heitor dos Prazeres, de Jandira, abre o lacre, vê o nome vencedor e assina nele. Daí a gente preenche o resto como se tivesse comprado a rifa. Aí você chega em casa com a cartela e diz que ganhou a camisa na rifa”.

“Você é um gênio, Osmar! Salvou minha vida!”
Na volta da corrida seguinte, Jairo já chegou com a cartela na mão, com o lacre rompido e com seu nome no quadradinho da Marcela, era esse o nome vencedor. Os outros 99 quadradinhos da cartela foram preenchidos pelos colegas, que, além dos próprios nomes, inventaram mais um monte deles. Ao sair para a última corrida do dia, Jairo agradeceu a todos eles, “vocês são amigos de verdade”.

Dia seguinte, de manhã, Jairo foi o último a chegar no ponto. Os amigos o cercaram: “E aí?”
“Aí que deu merda!”

Ouviu-se um “por quê?” uníssono.

Jairo sentou no banco e começou a falar, voz baixa, mas firme: “Vocês sabem que minha mulher é ciumenta, né? Pois quando lhe mostrei a rifa dizendo que ganhei, ela me perguntou por que eu não assinei Madalena, que é o nome dela. Eu não sabia o que dizer. Aí ela me perguntou quem é essa tal de Marcela. Eu disse que era ninguém, foi só um palpite. ‘Cês acham que ela acreditou? Já desconfiada, pediu pra ver a camisa. Pô, vocês sabem que eu sou grande, tenho quase dois metros e estou meio gordo, meu número é 'Extra GG' e a camisa da rifa era exatamente o meu número! Aí foi demais! A camisa virou picadinho e eu acabei dormindo num hotel. Sozinho. E tem mais: quando a Maria Helena me deu a camisa, marcamos pra hoje à tarde, que o marido foi viajar de novo. E ela falou: não me apareça se não estiver com a camisa!”

sábado, 21 de setembro de 2013

Chove. Chega a Primavera



Antonio Contente  

       Há doces magias nas chuvas desta época do ano. A que agora cai começou há pouco e desaba sobre a Chácara da Barra trazida por ventos que sopravam, até há pouco, dos lados da D. Pedro, via tantas vezes percorrida quando busco o mar. É inevitável falar que vem, do quintal, o bom cheiro da terra molhada. Também é inevitável lembrar que o tronco da grande sibipiruna que se ergue suprema em frente da casa, uma vez umedecido deixa que escorra, entre seus nódulos e cascas, uma forma de alegria a conduzir, consigo, as seivas da vida. Sou, por todas as formas, um homem marcado pelas águas. Desde o elemento do meu próprio signo que me foi revelado pelo bruxo Geraldo Garcia, íntimo de astros e estrelas, até o lugar em que nasci, no âmago da Amazônia, uma beira de rio que adormece e acorda entre marés, correntezas e claridades.

       Mas esta chuva que cai, eu dizia, traz consigo as canções de sentimentos e histórias. Poucas coisas são tão simples, porém tão estimulantes, como ver a água transformada em gotas brilhantemente dilaceradas a escorrer dos beirais antigos. Há, nas casas velhas, o húmus da síntese dos sonhos. E elas se tornam eternas em tardes como esta, em que a grande chuva que o mar nos mandou cai das telhas debruçadas sobre o corredor posto entre o muro de heras e as paredes do aconchego. Os beirais, saibam, guardam, em suas entranhas, os cantos dos bem-te-vis e o benfazejo das auroras. Os beirais, por onde resvalam brisas e poeira de estrelas, retêm a filosofia das idades. Benfazejos são os pingos que ficam caindo quando a chuva se torna menos que chuvisco. E é ali que os passarinhos deste simpático bairro campineiro vêm beber sabendo, muito melhor do que eu, que o verdadeiro tempo de beleza é deles e da síntese de seus voos.

      A chuva é a canção que o tempo compõe no pentagrama das horas que comovem. Aqui estou, de ouvidos atentos, sentindo no ar os bemóis e sustenidos de certa modinha antiga, muito, muito antiga. Coloco a mão para fora da janela aberta, e sinto na pele o frescor da sonata e o moderato do compasso inesperado. Ah, em que tempos ficaram os meninos que vinham se banhar nas águas que caíam dos beirais? Em que tempo estão as buganvílias escandalosamente vermelhas, que mais vermelhas ficam com o despejar de céus que se liquefazem como este exatamente agora?

       Quando a última gota se desprender deste beiral, chegará a hora de colher as belezas que ficam após os aguaceiros. Andaremos, então, sobre as calçadas molhadas. Colheremos, sem sobre elas colocar os dedos, a umidade que resiste nas folhas dos jardins, e que logo mais à noite se tornarão pedras preciosas no sentimento do orvalho. Somos, assim, tocados pelas canções desta chuva de setembro, poucos dias antes da chegada da Primavera. E ali na praça, quando a brisa do anoitecer bater, as luzes dos postes, refletidas nos galhos, serão as pepitas de ouro deste tesouro que eu, pirata de tantos mares, esconderei na ilha aonde cheguei levado pelas linhas da vida de tuas lindas mãos. 

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Uma grande fria


Edmilson Siqueira

O portal do Estadão, através da Eldorado FM, está realizando uma enquete para que seus leitores votem na música que eles consideram o maior clássico brasileiro de todos os tempos. E para facilitar o trabalho de todos – do leitor e do jornal – expõe uma lista com 50 músicas adrede escolhidas.
Elaborar uma lista de cinco, dez, vinte, cinquenta, cem ou mesmo mil melhores de qualquer coisa já é um problema. Isso porque a lista é elaborada a partir de opiniões e, mesmo sendo opinião de gente que entende do assunto, a lista nunca satisfará todo mundo. Em segundo lugar, há que se ter um critério. No caso, me parece que houve algum – as músicas mais conhecidas dos autores mais conhecidos, ou algo parecido. Mas aí surge mais um problema: todos os grandes compositores brasileiros têm umas dez ou vinte músicas que muita gente julga clássicas, definitivas, perfeitas – e com razão. E há muitos outros problemas, como o do compositor de uma música só, um clássico, claro, mas só aquele. Eu poderia citar, de cabeça, uns quatro ou cinco autores que só são conhecidos por uma música. Por exemplo: Niltinho Tristeza, que tem esse nome exatamente por causa do clássico “Tristeza”, (pareceria com Haroldo Lobo) sucesso na voz de Jair Rodrigues. Pois desafio o leitor a dizer, sem olhar no Google, outra música dele. Mas ele não está na lista. E os parceiros de Aldir Blanc no mais que clássico “Amigo é pra essas coisas”? Essa música também ficou de fora... Mas quem está, e com justiça por sinal, é Silvio Rochael Cassiano. Sabe quem é? Agora vai saber: foi ele quem compôs aquela beleza chamada “Primavera” que Tim Maia eternizou.

Há alguns anos a Rede Globo se arvorou a fazer um programa classificando as melhores músicas brasileiras, numa lista que ela também julgava definitiva. Ganhou “Carinhoso” (que é, realmente, uma unanimidade, mas ser a melhor de todas é altamente discutível). Pois nesse programa com “as melhores músicas brasileiras de todos os tempos”, Adoniran Barbosa ficou de fora e quase que João Bosco e Aldir Blanc também ficam. A dupla foi encaixada no fim do programa, mas a ausência do Poeta do Bixiga só foi descoberta depois de o programa ter ido ao ar. Parece que houve uma homenagem posterior, mas a emenda piorou o soneto.
Adoniran, por sinal, nessa lista aparece com “Trem das Onze”, que, claro, merece estar em qualquer lista das melhores de todos os tempos. Mas e “Saudosa Maloca”? E “Vila Esperança”?

Por essas e por outras, muitas outras por sinal, é que elaborar listas para tentar descobrir qual é a melhor música, mesmo que se elenque 50 delas, é fria. Se valer a popularidade ou a vendagem de discos, por exemplo, periga a dupla Roberto/Erasmo, que comparece com duas músicas na lista, ganhar de Jobim, Cartola, Chico e outros cujas obras estão anos luz à frente dos heróis da jovem guarda no quesito qualidade, mas que venderam muito menos e tiveram muito menos públicos em seus shows.
Na época dos festivais da Record, a briga já era grande. Os programas mobilizavam a moçada do Brasil inteiro e, por um mês, não se falava nas escolas. No dia seguinte ao da final, no velho Culto à Ciência de Campinas, onde eu estudava, até aulas foram interrompidas para se discutir qual era melhor: Banda ou Disparada.

A lista da Eldorado é boa, não há dúvida, mas passando por ela atentamente, senti falta, assim, de cara, de uma dez ou vinte músicas tão clássicas para a MPB quanto qualquer uma das listadas. Jobim comparece com seis, uma sozinho e as outras cinco com seus parceiros – Newton Mendonça, Vinicius e Chico. É o que mais tem músicas na lista, mas “Insensatez” – sucesso mundial até hoje, com dezenas de gravações pelo mundo afora, não consta da lista. E da parceria com Chico, está “Eu Tem Amo”, sem dúvida um clássico. Mas e “Retrato em Branco e Preto”, cuja gravação só com orquestra (sem a letra do Chico), com Jobim ao piano, numa catedral em Nova York, recebeu, ao fim, aplausos em pé de toda a orquestra, comovida pela beleza da melodia?
Realmente, fazer listas para escolher melhores músicas, filmes, livros, quadros, qualquer coisa que dependa do gosto de uma pessoa ou de um grupo é uma grande fria.

domingo, 23 de junho de 2013

Ah, o tempo...


 
Antonio Contente

Ao ler a bem bolada entrevista do cronista Edmilson com o cantor e compositor, constatei mais uma vez: de fato há certos acontecimentos que, levados para o lado da fofoca, adquirem certa aura filosófica. Pensando nisso, me larguei a navegar sobre o episódio que na época ganhou inúmeras manchetes. E tornou a dançar em minha mente o ocorrido entre as ondas da praia do Leblon, no Rio, na manhã em que fotografaram o compositor Chico Buarque de Holanda atracado, aos beijos e abraços, com a bela mulher. No entreato, minha reflexão transitou muito menos sobre o mexerico em si e mais sobre o efêmero das coisas, de como a juventude, este doce pássaro que já virou filme e peça de teatro, graças ao talento de Tennessee Williams, voa rápido para éteres incertos e não sabidos. O flagrante do compositor e da guria quase ofuscou totalmente as notícias que falavam então de Severino, o formidável presidente da Câmara Federal – lembram? --- extraordinário presente que, junto com Lula, Pernambuco deu ao Brasil. O que se disse na ocasião foi que a moça flagrada com o autor de “Carolina” seria casada e que o marido, apontado como criatura violentíssima, estaria azeitando o tresoitão para alvejar o maduro e charmoso Don Juan.

No passado remoto as pessoas costumavam garantir que o tempo é o senhor da razão. Bastou, assim, que a ampulheta vazasse um pouco mais de areia para que novas nuances do rumoroso caso viessem à tona. A melhor acho que foi a entrevista que o marido corneado, inicialmente apontado como fera, deu para a colunista Mônica Bergamo, da “Folha de S. Paulo”. Certamente uma desfrutável matéria. Pela simples e boa razão que o tal esposo, no papo que manteve com a jornalista, revelou ser dono de mansidão de cambaxirra. A demonstrar que jamais seria capaz de alvejar uma simples formiga, quanto mais o estrelado compositor.

O ponto da entrevista que prendeu minha atenção, e que veio ratificar o quanto o tempo passa rápido, acabou sendo o fato de o rapaz reconhecer que Chico, subitamente travestido de Ricardão, poderia, de fato, estar apaixonado pela mulher dele. E que seria, como se dizia antigamente, de bom alvitre que fosse procurar parceira condizente com sua idade. Criatura facilmente achável em alguma clínica geriátrica, segundo garantiu o elástico traído.

Santo Deus, amigos, aí descobri o quanto o tempo passa! Pois no começo dos anos sessenta, setenta, Chico Buarque era, para a turma da minha geração, o símbolo acabado da juventude, a força maior capaz de abalar os alicerces da ditadura que nos asfixiava. Todavia, de repente, o garoto que arrastava multidões aos auditórios, agora entrado no rol dos quase septuagenários, foi aconselhado, ironicamente por um cara que devia ter, na manhã da corneação, a idade que o encanecido rufião tinha na época em que compôs “Sabiá”, a procurar um asilo a fim de capturar alguém para preencher seus dias e conceder calor às suas inspirações. O que, em última instância, me deixou em desconfortável situação, pois sou pouco mais velho do que Chico Buarque.  Será que devo, também, catar eventual parceira em algum retiro para membros da quinta idade? Tudo bem, até vou. Só se puder, claro, levar pra casa alguém com a estampa da Vera Fisher ou, em última instância, da Sophia Loren. Isso porque a primeira já passou dos sessenta, não é mesmo? E a segunda, a trafegar pelos setenta e lá vai fumaça, poderia até me demonstrar, na prática, se é realmente nas panelas velhas que se faz comida boa. Como fundo musical, “Anos Dourados”...

PS – Gostaria muito de saber, e se alguém puder matar minha curiosidade, por favor, pode fazê-lo por aqui: o marido corneado por Chico, após perdoar a traidora, permanece até hoje com ela?

sábado, 1 de junho de 2013

Há uns seis ou sete anos



Edmilson Siqueira

Acho que foi em 2006 ou 2007 que Chico Buarque foi flagrado no Leblon tomando um banho de mar com uma bela morena e trocando alguns calientes beijos com ela. Um paparazzo de plantão fez as fotos - e boas fotos como se vê acima -, botou na imprensa e deu-se um pequeno escândalo porque a mulher era casada. O marido até foi entrevistado e, magoado, disse que Chico deveria procurar alguém da idade dele. Chico, que já gosta de uma privacidade mesmo quando não acontece nada, sumiu de vez. À época eu trabalhava no Correio e mantinha, na revista Metrópole encartada na edição de domingo, uma coluna de meia página chamada Farol. E, ao pensar em escrever a coluna, tive a ideia de “entrevistar” o Chico sobre o ocorrido. Claro que não seria uma entrevista normal com jornalista e entrevistado frente a frente, nem pelo telefone, nem por e-mail, mesmo porque não sou amigo dele, não tinha seu número de telefone e nem imaginava qual seria seu e-mail.

A ideia que tive passava pela extensa obra do compositor e cantor. Ali estavam todas as respostas que eu necessitaria para botar na “entrevista”. Chico foi o autor da trilha sonora da minha geração. Desde A Banda, no meio dos anos 60, até o fim da ditadura, tínhamos no repertório do Carioca (apelido dele na FAU em Sampa), nosso consolo perante a censura, nossa vingança perante os brutamontes do governo, nossos gritos que não podíamos soltar. E as mais perfeitas cantadas para nossas possíveis namoradas. Então fui elaborando algumas perguntas e procurando nas letras das canções todas as respostas. E, cá entre nós, foi mais difícil fazer as perguntas do que achar as respostas, já que sei – ou sabia, faz tempo que não tento lembrar as músicas dele – muitas letras inteiras, inclusive as mais longas. Que eu me lembre, busquei no site oficial apenas uma resposta, de uma música mais recente à época. O resto saiu automaticamente. E reclamei baixinho (êpa!) do fato da coluna ser tão pequena, porque havia ainda muito material que se encaixava na "entrevista". Até pensei (êpa de novo!) nessa republicação, em continuar com as perguntas e as "respostas", mas achei que está de bom tamanho. Se alguém quiser continuar a brincadeira fique à vontade.
        As razões do Chico

            Depois do bafafá todo em que resultou a aparição de Chico Buarque com aquela morena na praia do Leblon, o grande artista se fechou em copas, talvez aprontando mais uma das suas, mas, tímido como ele só, estava se recusando a comentar o affaire. Só com muito custo e num verdadeiro esforço de reportagem, consegui que ele falasse.

        - Por que você decidiu ir para a praia com ela?

        - Estava à toa na vida...

        - Não dava pra ir bem cedinho quando tem menos gente?

        - Eu faço samba e amor até mais tarde e tenho muito sono de manhã.

        - O que te levou a dar uns beijos nela em público?

        - Meu sangue errou de veia e se perdeu.

        - O que ela lhe disse na hora?

        - Vem, meu menino vadio...

        - E você não hesitou?

        - Tinha cá pra mim que agora sim eu vivia enfim um grande amor.

        - Não era apenas uma aventura?

        - Fui muito fiel, comprei até anel, botei no papel o grande amor.

        - Você não pensou na repercussão...?

        - Já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada.

        -Você acha que a imprensa exagerou?

        -E do amor gritou-se o escândalo.

        - Você sabia que ela era casada?

        - Eu andava pobre, tão pobre de carinho que, de tolo, até pensei que fosse minha.

        - Você vai se recolher depois dessas notícias todas?

        - Eu vou sair por aí atrás da aurora mais serena.

        - Pode acontecer de novo?

        - Ninguém vai me surpreender na noite da solidão.

        - Por que ela ficou com você?

        - Se você quer mesmo saber por que ela ficou comigo, eu digo que não sei.

        - Você já desistiu dela?

        - Amei daquela vez como se fosse a última.

        - Então não há esperança?

        - Aquela esperança de tudo se ajeitar, pode esquecer.

        - Algum recado pra ela?

        - Sim, vai e diz, diz assim que eu chorei, que eu morri de arrependimento, viu, o meu desalento já não tem mais fim.      

        - Então você está magoado?

        -Vai passar.

        - Algum recado pra ele?

        - Apesar de você, amanhã há de ser outro dia.

        - E agora, depois dessa história toda, o que você vai fazer?

        - Vou colecionar mais um soneto, outro retrato em branco e preto a maltratar meu coração.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Coincidências acontecem

Edmilson Siqueira

Antonio Contente, com quem divido essas bissextas crônicas, já foi cronista de outros jornais. Em suas histórias, onde ele revelava um universo que beirava o rodriguiniano, mas com uma dose de humor que o aproximava mais da, digamos, galera, costumava colocar nos personagens nomes de amigos em situações as mais incríveis. Claro que era ficção, mas sempre dava alguma gostosa encrenca que o dono do nome sublevava, talvez motivado pela fama repentina no círculo de amigos ou mesmo pela façanha que o xará praticou nos enredos mirabolantes que o cronista criava.
Claro que essa introdução é para contar a história de uma crônica que tem como personagem principal um tal de Edmilson, casado com uma tal de Eurídice - nome da minha mulher à época. Não vou repetir aqui a crônica toda, mas só seu miolo: na história do Contente, meu xará abandona a mulher oficial para fugir com a empregada, uma mulata pra quatrocentos talheres, como diria Stanislaw Ponte Preta, o grande Sérgio Porto, outro ídolo meu e do Contente.

Na época Contente publicava suas crônicas na Folha da Tarde, vespertino que tentava competir com o Jornal da Tarde. E tanto um como outro, embora tivesse a palavra “tarde” no nome, estavam nas bancas cedinho, junto com outros matutinos.
Quando a crônica aportou nas páginas do jornal, minha então sogra realizava um trabalho de cooperação entre o Brasil e Angola, ela que era engenheira de alimentos e havia se prontificado a ensinar técnicas de panificação e outras para a incipiente república popular angolana, recém-libertada do colonialismo português e mergulhada num caos que só os regimes de esquerda conseguem construir, mas isso é outra história.

Pois minha sogra pediu, por telefone, ao seu irmão que morava em São Paulo, que lhe enviasse umas panelas, artigo raro por lá. Ele prontamente atendeu. Comprou as ditas cujas e resolveu embrulhá-las melhor, para enfrentar o longo voo da Varig entre Sampa e Luanda, sem que chegassem amassadas na capital angolana. E, para tanto, comprou, na banca de jornal mais próxima e já dentro do aeroporto, o primeiro exemplar que suas mãos alcançaram. Era uma Folha da Tarde. Usou-a inteira para embrulhar cuidadosamente cada panela dentro da caixa.
Devidamente seguras, as panelas seguiram para Luanda. Dia seguinte, minha sogra pegou o pacote no aeroporto de Luanda e levou para casa. Lá chegando, ao abrir a caixa, se deparou com uma edição inteira de um jornal brasileiro o que, naquela ocasião, era um tesouro! Cabe aqui explicar que estamos no início dos anos 1980, quando um telefonema entre Luanda e Campinas demorava horas para se concretizar, pois a ligação era feita para Portugal via cabo marítimo e, de lá, até Luanda via rádio. Internet, se já existia, era restrita ainda às universidades europeias e norte-americanas.  Como o regime de lá era uma ditadura de esquerda, não havia imprensa livre e notícias, além das oficiais, não chegavam a ninguém.  Daí que uma Folha da Tarde inteirinha para uma brasileira perdida na África era realmente um tesouro.

Pois ela esqueceu-se das panelas e passou a devorar o jornal. Leu tudo, das manchetes à penúltima página. Penúltima? Pois é. Na penúltima página é que estava publicada exatamente a crônica do Contente, onde o tarado do Edmilson foge com a fogosa empregada mulata de 400 talheres. Ali ela parou a sequência de páginas. E leu de novo pra se certificar dos nomes e fatos. Em seguida pegou o telefone e rapidamente pediu uma ligação para o Brasil, mais precisamente para Campinas.
Eu me lembro que quem atendeu foi a filha dela que, depois de responder duas ou três vezes que estava tudo bem, me perguntou sobre uma história que saiu num jornal, escrita por um tal de Antonio Contente, sobre um tal de Edmilson casado com Eurídice que havia fugido com a empregada. Eu nem tinha lido a crônica, nem ele tinha me avisado que usara nossos nomes. Aliás, nem empregada tínhamos.

Desfeito o engano, demos boas risadas. Mas, pensando bem, qual é a chance de uma crônica publicada num jornal de São Paulo ir parar nas mãos de uma mulher no meio da África e ela ter uma filha e um genro com os nomes usados pelo cronista numa história que ele inventou? Deve ser mais fácil acertar na Mega-Sena fazendo só um joguinho de seis dezenas.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Os que sabiam cantar



Antonio Contente
                                                                                
Numa longa entrevista que deu à Folha de S. Paulo já faz algum tempo, o compositor Chico Buarque garantiu que a canção, do jeito que a conhecemos, está com os dias contados. Claro que, em termos de música popular brasileira não tenho vastos conhecimentos, não sou nenhum Ruy Castro ou Edmilson Siqueira, mas, humildemente, confesso que adoro uma canção antiga. Nem diria que, cronologicamente, sejam músicas do meu tempo. Até porque essas coisas, afinal, não podem ser delimitadas assim. Entendo que um cara que esteja nascendo hoje poderá muito bem, daqui a trinta anos, se daqui a trinta anos ainda existir mundo, o que eu duvido, curtir um velho Lupicínio. 

Nem vou falar do que se compõe (ou decompõe) atualmente porque, francamente, faço ouvidos moucos para tais claves. E quando vejo, por exemplo, nas TVs, as multidões de jovens delirando nos shows de rock ou axé, em geral opto por guardar minha boca para comer minha farinha.

Tarde dessas lembrei de uma canção antiga em que o cantor celebrava “aquele olhar tristonho da cor do luar”. Ora, amigos, vamos falar a verdade, dizer que um simples olhar tem essas características não apenas enriquece o gesto como santifica pálpebras e retinas. E sou imediatamente remetido para a noção de que os compositores atuais deixaram de saber dizer as coisas, até porque se referir às zonas do meretrício apenas como zonas do meretrício, conforme ocorre em muitas letras, não tem a força de apontar tais locais como “ruas de amor e de pecado”. Que é como faziam antigamente.

Os morros do Rio... Bem, os morros do Rio viraram objeto de polícia e sociologia. Todavia, o que de fato faz bem às minhas tardes de chuva é saber que ali, para alguém, aquilo já foi apenas palco iluminado onde, vestido de dourado, o camarada se descobriu a cantar suas parcas ilusões “entre as palmas febris dos corações”. Para depois ver a amada, distraidamente, pisar nos astros... 

Olha, não consigo me acostumar com a realidade de que um apaixonado não possa mais pegar um violão para dizer que sonhou que a mulher idolatrada estava tão linda numa festa de raro esplendor. Ou que “adeus” são cinco letras que choram num soluço de amor, isso sem falar como deve ser duro um sujeito não mais saber berrar que tem o companheiro inseparável na voz do seu plangente violão. Poucas coisas são tão lindas, na música popular brasileira, como esse jeito simples, maravilhoso, de se referir ao instrumento de cordas como “plangente violão”...

Se você quer um sinal das pioras do mundo, concentre-se na realidade do quanto seria apedrejado alguém que escrevesse hoje que em sua rua mora uma deusa possuidora de olhos onde a lua costuma se embriagar. E que em tais olhos o sol, num dourado sonho, vai claridades buscar...

Mas, para focar melhor a que levam as contradições das épocas, o jornalista Milton Frungilo me contou que um conhecido seu que curte velhas canções e mora numa bela casinha na Vila Industrial, domingo desses nela entrou, depois de umas e outras. Feliz disse para a mulher, bem mais nova, chamada Maria, que o nome dela principiaria na palma das mãos dele. Arrematando com um “vem, querida, quero descansar na serpente de seda dos teus braços”. Ao que ela retrucou:

- Eu, hein, sai pra lá. Detesto cobras...

E quando o camarada foi dormir ela colocou, no som, um rap de angustiante atualidade...

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Espalhando alegria





Edmilson Siqueira

Em 1985, no Bar do Zincão, alguém teve a ideia de fazer um bloco de Carnaval. Não sei dizer se eu estava presente nesse dia, mas nos almoços beneficentes que se seguiram eu estive no primeiro e no segundo (foram três) inclusive assinando o “Livro de Ata” da fundação da gloriosa Toma na Banda. O nome era assim, sem acento na palavra “Toma”. Com o tempo virou “Tomá”, mas isso é outra história.
O fato é que, no Carnaval daquele ano, com uma bandinha no chão e tocando marchinhas antigas, o bloco desceu a Benjamin Constant em direção ao Centro, entrou na Glicério, fez uma graça no Largo do Rosário e pegou a General Osório iniciando o caminho – e subida – de volta ao Bar do Zincão, passando, claro, pelo City Bar para tomar a saideira.

Uns 300 foliões, se tanto, se atreveram.  O bloco vingou, continuou saindo no sábado de Carnaval por vários anos (está aí até hoje, claro), mas em 1994, por problemas que prefiro deixar pra lá, não havia saído. Já era setembro ou outubro do ano da graça de 1994 e o Carnaval de 95 corria sério risco, pois perigava da Tomá na Banda não sair de novo. Foi então que cinco amigos, reunidos no City Bar, mais precisamente na mesa 10 (que está lá até hoje, não sei se com esse número, mas que ficou conhecida como Mesa da Diretoria) na iminência de não ter o bloco, resolveram fundar outro. Esse humilde escriba estava entre os cinco e só não abro mão de ser o autor do nome da dita cuja: sugeri City Banda e todo mundo topou na hora.
A história da City Banda, hoje disparada a maior banda de Carnaval de Campinas – o desfile de sábado passado tinha mais de dez mil pessoas – acho que já é por demais conhecida e não pretendo contá-la de novo, até porque saí da diretoria há um bom tempo e não saberia descrever o que tem ocorrido de lá pra cá. Só sei que os diretores continuam segurando a peteca dignamente e, faça chuva ou faça sol (quase sempre faz chuva...) a City desbrava as ruas do Cambuí arrastando considerável multidão.

Esse papo aqui é mais pra dizer que a intenção, quando fundamos a City Banda, se era suprir uma lacuna, era também um incentivo para que outros bairros da cidade formassem suas próprias bandas. Dei várias entrevistas onde fiz questão de dizer que não havia rivalidade alguma com a Tomá a Banda, muito pelo contrário, ela nos apoiou e nós a apoiamos sempre. Éramos, praticamente, as duas únicas bandas de Carnaval de rua de Campinas. Logo depois surgiu a simpática Banda do Candinho e, por um bom tempo, as três foram as únicas a oferecer uma alternativa de folia para a cidade.
Mas, a forte presença de universitários em Campinas fez com que, em Barão Geraldo, começassem a pipocar novas manifestações carnavalescas traduzidas em festa na rua, em desfile com percussão, enfim, na mais completa tradução dos velhos carnavais, o que a City e a Tomá na Banda sempre quiseram promover.

Por isso, hoje, vejo com grande alegria que o que plantamos deu frutos. Enquanto o Carnaval oficial de Campinas virava uma festa violenta (mais de 30 ônibus depredados a cada ano), com trios elétricos que fugiam totalmente a   qualquer característica local e com escolas de samba tentando imitar as cariocas e paulistas, mas sem qualquer condição financeira e estrutural para tanto, os blocos de ruas foram tomando conta de várias regiões da cidade.
Claro que ainda não chegamos nem perto do Rio de Janeiro, onde cerca de 450 blocos (corrigi o número depois da postagem, é maior do que eu pensava) saem todos os anos pelas ruas cariocas, levando um Carnaval e a folia para muito mais gente do que aboleta no Sambódromo. Mas chegaremos lá, pois hoje há nada menos que 33 blocos em Campinas (ou 32, o Berra Vaca sai duas vezes) realizando um Carnaval espontâneo, carregando multidões em seus desfiles e revivendo a origem dessa festa, quando, antes de começar a Quaresma, o povo cometia os “pecados” todos, brincando na rua, jogando água e farinha nos outros, enfim, se encharcando de alegria para enfrentar os quarenta dias seguintes que a Igreja Católica mandava serem de resguardo.

As sementes do Tomá na Banda e da City Banda germinaram e hoje se espalham em frondosas árvores pela cidade. É esse o Carnaval do povo, onde entra quem quer e brinca à vontade. Paulinho Lima, Tadeu Costa, Geraldo Jorge, Zé de Oliveira e esse blogueiro acho podem dormir tranquilos: o Carnaval das bandas de Campinas – do qual fomos pioneiros – é uma realidade que veio pra ficar.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Ágata

                           
Antonio Contente

Ágata me contou que veio para esta cidadezinha da Ilha do Marajó faz algumas semanas, e que ainda vai ficar alguns meses. Ela trabalha numa repartição do governo que tem escritório aqui, e está cobrindo o período de licença de uma colega. Despacha pequenos papéis, carimba coisinhas, tudo numa sala apertada, numa casa de madeira com telhado de zinco, próxima à praça principal que é o centro da movimentação dos que vivem na área. Ocupa uma mesa baixa, com ventilador de teto sempre a girar. Talvez você já tenha visto cena semelhante em velhos filmes americanos que contavam histórias passadas nas Ilhas dos Mares do Sul.

Ágata aparenta 50, diz que tem 40, porém talvez ande pelos 47. O clima meio áspero quase na linha do Equador certamente não fez nenhum bem à sua beleza, contudo não a devastou totalmente. Os olhos de Ágata, pôr exemplo, são absolutamente luminosos. E quando sorri, mostrando dentes surpreendentemente alvos, exibe duas covinhas bastante charmosas nas bochechas.

– Na realidade – ela me disse – a solidão aqui na ilha não pesa o tempo todo. Agora, no fim da tarde, começo da noite, sai de baixo...

Foi neste ponto que ela acabou detalhando a parte que achei mais pungente da sua vida recente. A repartição a mandou para cá sem alternativas, e não lhe deu nada além das passagens em um barco atulhado. Nos primeiros dias ela ficou num quarto que alugou na casa de uma senhora nativa. Quartos, afinal, sempre se alugam de “uma senhora”.

– Mas era muito quente – Ágata suspira – e com verdadeiras nuvens de carapanãs.

– E o que você fez?

– Arranjei uma casinha. É de fundos, perto do mercado, porém tenho a companhia da dona do imóvel, na frente.

– E os carapanãs?

– Comprei um ventiladorzinho. Você sabia que qualquer ventinho espanta os mosquitos?

– E a sua família, Ágata?

– Mora em Belém.

– Marido? Filhos?

– Não. Mãe, irmãs...

– Bom, enfrentar essa barra mais alguns meses não vai ser nada mole, não é?

– Não vai. Principalmente depois que eu pensei ter achado um meio de driblar a solidão.

Lembrou então que, não muito tempo depois de ter chegado à ilha, apareceu na repartição alguém que ela considerou “um moço muito simpático”. Mais novo do que ela, é certo, porém bem falante, comunicativo, alegre.

– Todo dia de tarde vinha me buscar. Comíamos alguma coisa perto do mercado, e íamos assistir à novela das oito na farmácia.

– E depois?

– Passeávamos na praia.

– E depois?

– Foi o melhor tempo na casinha de fundos que aluguei. Aposentei a rede de solteira, comprei uma grande, com varanda, de casal.

– Bom –observo – como você acentuou que “foi”, só posso dizer que lamento que nada tivesse dado certo.

– Pois é, um dia ele chegou pra mim e pediu que lhe trocasse um cheque. Sabe o que eu fiz?

– Trocou.

– Não, eu disse que não precisava. Se ele necessitava de algum dinheiro eu emprestava, não precisava nenhum cheque.

– E ele? Aceitou?

– Não. Fez questão de me dar o tal cheque. Era uma sexta-feira, disse que ia a Belém resolver uns troços e que na segunda voltaria.

– Lamento que não tenha voltado.

– E eu muito mais. Na segunda, quando sai da repartição fui para a casinha, não consegui dormir.

Ficou acordada a noite toda?

– Não, peguei a rede e fui para o meu local de trabalho, tenho a chave de lá.

Nessa altura do papo eu estava com uma pergunta engatilhada; sobre o cheque, naturalmente. Talvez me preparando para fazê-la busquei uma frase óbvia de consolo:

– Ora, vai ver que ele ainda aparecerá. Depois, se te deu um cheque sem fundos...

– Pois aí é que está – Ágata corta e me olha nos óculos.

– O que? –Levanto as sobrancelhas.

– Também pensei que o cheque não tivesse fundo, quase não fui recebê-lo na única agência de banco que tem aqui, ali na pracinha. Tinha fundos, sim.

– Ora, menos mal – dou um sorriso.

– Poderia ser – ela suspira – só que eu nem fazia questão dos vinte reais. O que eu queria, te juro por Nossa Senhora de Nazaré, é que ele voltasse...

domingo, 6 de janeiro de 2013

Dezessete anos


Edmilson Siqueira

Hoje, 6 de janeiro, está fazendo 17 anos que Zezé e eu nos conhecemos. Era um sábado chuvoso como esse domingo, como foi ontem e como é o verão de modo geral desse lado debaixo do Equador.  Eu morava na Guilherme da Silva, num apartamento cujo maior atrativo era estar a uns 500 metros do City Bar. Com a vantagem de que para ir até lá era uma subidinha pela Júlio Mesquita e para voltar era descida só. Acho que alguns leitores desse blog sabem da importância desse aspecto geográfico.

A sexta-feira anterior tinha sido calma – devo ter ficado com alguns amigos no City até por volta da uma ou duas da manhã e descido pra casa. Ou chegado mais cedo, alugado um filme numa das três locadoras que funcionavam a menos de 100 metros do apê, para assistir antes de dormir. Sinceramente não me lembro.

Mas me lembro que cheguei no boteco por volta das 11 da manhã, dei um passeio, antes, pela feirinha de artesanato, não comprei nada, claro, e me aboletei numa mesa para a primeira cerveja. Tadeu já estava lá, como sempre. A mesa, me lembro muito bem, era a 10, a chamada “da Diretoria” (por causa da fundação da City Banda que cometemos nela) que nem sei se ainda guarda esse número, pois à época o City tinha apenas dez mesas, ainda não existia o largo em frente que triplicou o número de mesas do bar.

Como disse, chovia e nada revelava que dali a alguns instantes, dois seres completamente diferentes (bem, nem tanto) iriam se conhecer e passar a escrever suas histórias a quatro mãos. A chuva dava tréguas, saía o sol e, todas as vezes em que ameacei ir embora, ela voltava e me impedia de sair (não era bem assim, eu só falava em ir embora quando estava chovendo, mas tudo bem). Almoço foi um sanduíche – o José ainda não tinha se esmerado nas bacalhoadas da vida – feito ainda pelo grande Nilson e a mesa, que começou só com Tadeu e eu, ali pelas duas das tarde já não comportava mais as outras cinco ou seis pessoas que chegaram e se sentiram em casa. Já eram duas ou três mesas juntadas, sobre as quais bailavam garrafas de Brahmas e pratinhos de sanduíches.

Já era tardinha, tipo quatro da tarde, quando Zezé chegou, a pé, pela General Osório. Eu não vi, pois estava de costas para a rua, mas Tadeu, sentado à minha frente, viu e convidou-a pra sentar ao seu lado, claro, pois eram velhos amigos.

Papo vai papo vem, descobri que ela era professora de inglês, tinha morado um ano em Londres, morava sozinha num apartamento próprio perto do Mercadão, tinha 39 anos e ganhava mil e duzentos reais por mês. 

De mim ela soube que estava com 45 anos, era jornalista, trabalhava na Sanasa, ganhava um pouco mais que ela, já tinha sido casado e tinha uma filha que iria fazer 14 anos dali quatro meses que morava com a mãe. 

A mãe da minha filha, por incrível que pareça, causou o primeiro interesse da Zezé em mim. É que, no papo que rolou, acabei falando dela e falei bem, mesmo porque não havia motivo pra falar mal. Zezé achou interessante um ex-marido que não amaldiçoa a ex-mulher.

Eu também me interessei por ela e quando a noite chegou, já éramos velhos conhecidos descobrindo que tinham muitas coisas em comum. Por exemplo: ajudamos a fundar a Tomá na Banda no Bar do Zincão (eu tenho as atas da fundação e nossas assinaturas estão próximas, o que quer dizer que estávamos quase na mesma, comendo a feijoada “beneficente”) e apesar da proximidade – nessa e em outras ocasiões que fomos descobrindo depois – nunca nos conhecemos.

Ali pela meia-noite resolvemos ir embora. A chuva era só uma garoa, mas eu me prontifiquei a dar carona pra ela. Detalhe: eu não tinha carro. Acabamos descendo a Júlio de Mesquita a pé até meu apartamento e o resto é essa história que hoje faz 17 anos. E está pronta para outros 17 ou quantos essa vida louca – cada vez menos louca com o correr do tempo – nos deixar viver.