sábado, 21 de setembro de 2013

Chove. Chega a Primavera



Antonio Contente  

       Há doces magias nas chuvas desta época do ano. A que agora cai começou há pouco e desaba sobre a Chácara da Barra trazida por ventos que sopravam, até há pouco, dos lados da D. Pedro, via tantas vezes percorrida quando busco o mar. É inevitável falar que vem, do quintal, o bom cheiro da terra molhada. Também é inevitável lembrar que o tronco da grande sibipiruna que se ergue suprema em frente da casa, uma vez umedecido deixa que escorra, entre seus nódulos e cascas, uma forma de alegria a conduzir, consigo, as seivas da vida. Sou, por todas as formas, um homem marcado pelas águas. Desde o elemento do meu próprio signo que me foi revelado pelo bruxo Geraldo Garcia, íntimo de astros e estrelas, até o lugar em que nasci, no âmago da Amazônia, uma beira de rio que adormece e acorda entre marés, correntezas e claridades.

       Mas esta chuva que cai, eu dizia, traz consigo as canções de sentimentos e histórias. Poucas coisas são tão simples, porém tão estimulantes, como ver a água transformada em gotas brilhantemente dilaceradas a escorrer dos beirais antigos. Há, nas casas velhas, o húmus da síntese dos sonhos. E elas se tornam eternas em tardes como esta, em que a grande chuva que o mar nos mandou cai das telhas debruçadas sobre o corredor posto entre o muro de heras e as paredes do aconchego. Os beirais, saibam, guardam, em suas entranhas, os cantos dos bem-te-vis e o benfazejo das auroras. Os beirais, por onde resvalam brisas e poeira de estrelas, retêm a filosofia das idades. Benfazejos são os pingos que ficam caindo quando a chuva se torna menos que chuvisco. E é ali que os passarinhos deste simpático bairro campineiro vêm beber sabendo, muito melhor do que eu, que o verdadeiro tempo de beleza é deles e da síntese de seus voos.

      A chuva é a canção que o tempo compõe no pentagrama das horas que comovem. Aqui estou, de ouvidos atentos, sentindo no ar os bemóis e sustenidos de certa modinha antiga, muito, muito antiga. Coloco a mão para fora da janela aberta, e sinto na pele o frescor da sonata e o moderato do compasso inesperado. Ah, em que tempos ficaram os meninos que vinham se banhar nas águas que caíam dos beirais? Em que tempo estão as buganvílias escandalosamente vermelhas, que mais vermelhas ficam com o despejar de céus que se liquefazem como este exatamente agora?

       Quando a última gota se desprender deste beiral, chegará a hora de colher as belezas que ficam após os aguaceiros. Andaremos, então, sobre as calçadas molhadas. Colheremos, sem sobre elas colocar os dedos, a umidade que resiste nas folhas dos jardins, e que logo mais à noite se tornarão pedras preciosas no sentimento do orvalho. Somos, assim, tocados pelas canções desta chuva de setembro, poucos dias antes da chegada da Primavera. E ali na praça, quando a brisa do anoitecer bater, as luzes dos postes, refletidas nos galhos, serão as pepitas de ouro deste tesouro que eu, pirata de tantos mares, esconderei na ilha aonde cheguei levado pelas linhas da vida de tuas lindas mãos.