segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A rifa


 

Edmilson Siqueira
Meu amigo Antonio Contente, que divide essas bissextas crônicas comigo, vai gostar da história que relato a seguir. História genuinamente verdadeira, apenas com nomes trocados porque os personagens ainda podem estar por aí e, como diria Contente, caldo de galinha e precaução são bons até em Belém do Pará. Pensando bem, acho que ele não diria isso, pois costuma colocar o nome dos amigos nas crônicas e inventar as histórias. Ele inverte o processo e o nomeado que se vire...

Bom, foi numa conversa dessas que a gente costuma dizer que joga fora, que conheci a história seguinte. Aconteceu entre os amigos de um velho ponto de táxi num antigo bairro da cidade. Naquela época, como não havia os serviços de chamar táxis a partir de uma central telefônica, havia menos corridas e os motoristas passavam mais tempo no ponto, jogando um baralhinho e, claro, se conhecendo muito mais. Assim, fiquei sabendo que Jairo, o coordenador do ponto, era mulherengo que só vendo. Bom de papo, quando uma passageira mais ou menos ajeitadinha entrava no seu táxi, os amigos já se olhavam como cúmplices. Ao virar a esquina, as apostas surgiam e era difícil achar alguém que apostasse contra o Jairo e sua fina lábia.  
Osmar, o amigo que me contou a história, informou também que a mulher de Jairo – sim, ele era casado há vários anos – era ciumenta demais. “E com razão”, acrescentou. “Jairo não perdia corrida, se é que você me entende”.

Pois não é que um dia o telefone do ponto tocou, Jairo atendeu e, assim que desligou, disse para os colegas: “Não volto mais hoje”. Como ainda eram duas da tarde, todos pensaram a mesma coisa: “Aí tem...” E tinha mesmo. Dia seguinte Jairo contou a novidade: “A mulher que ligou ontem é uma ricaça que eu peguei um dia lá no Tênis Clube. Não é viúva, mas o marido estava junto e no maior caco. Foram brigando no táxi, em voz baixa, mas eu ouvi tudo. O cara não dá mais no coro de tanto que bebe. Quando eles chegaram, ali na Nova Campinas, fiz questão de descer, abrir a porta pra ela e admirar aquelas belas pernas. Ela percebeu e mostrou mais ainda. O marido estava descendo do outro lado, quase caindo e eu aproveitei e lhe dei um cartão meio escondido. Ontem a Maria Helena – é esse o nome dela - ligou”.
“E aí?”, perguntaram os quatro atentos ouvintes.

“Aí”, respondeu Jairo, peito meio estufado, se esforçando um pouco para esconder a barriga, “ela saiu de casa sozinha, com um vestido mais generoso que o da primeira corrida, sentou no banco traseiro sem se importar com as pernas à mostra e disse que o marido estava viajando a negócios, São Paulo, Rio, por aí e só voltava em dois dias”.
Os amigos taxistas esfregaram as mãos: “E aí?”

Jairo fez cara de vencedor: “Aí fomos para um motel e passamos a tarde toda lá”.

O caso já durava um mês quando Jairo chegou ao ponto de manhã e saiu do carro com uma caixa na mão. Mostrou aos amigos: “Olha só o que ela me deu”. Era uma camisa importada, de pura seda, coisa de ser comprada com muitos dólares naqueles anos de inflação louca. Não era pra taxistas como eles que ficaram de boca aberta admirando o presente. Mas Jairo estava triste: “Como vou chegar com isso em casa? A patroa me mata, não vai acreditar se disser que comprei, vai querer ver a nota, vai querer saber o preço e vai descobrir que é coisa fina demais pro meu bico”.
Foi então que Osmar, que já abandonou a carreira de taxista há mais de 20 anos e vive de próspero comércio no Centro de Campinas, me disse que deu uma sugestão genial pro preocupado Jairo: “Faz uma rifa”.

“Como assim, vou rifar a camisa?”
“Não. Você compra uma cartela dessas com nome de mulheres na frente e atrás, aquelas do Heitor dos Prazeres, de Jandira, abre o lacre, vê o nome vencedor e assina nele. Daí a gente preenche o resto como se tivesse comprado a rifa. Aí você chega em casa com a cartela e diz que ganhou a camisa na rifa”.

“Você é um gênio, Osmar! Salvou minha vida!”
Na volta da corrida seguinte, Jairo já chegou com a cartela na mão, com o lacre rompido e com seu nome no quadradinho da Marcela, era esse o nome vencedor. Os outros 99 quadradinhos da cartela foram preenchidos pelos colegas, que, além dos próprios nomes, inventaram mais um monte deles. Ao sair para a última corrida do dia, Jairo agradeceu a todos eles, “vocês são amigos de verdade”.

Dia seguinte, de manhã, Jairo foi o último a chegar no ponto. Os amigos o cercaram: “E aí?”
“Aí que deu merda!”

Ouviu-se um “por quê?” uníssono.

Jairo sentou no banco e começou a falar, voz baixa, mas firme: “Vocês sabem que minha mulher é ciumenta, né? Pois quando lhe mostrei a rifa dizendo que ganhei, ela me perguntou por que eu não assinei Madalena, que é o nome dela. Eu não sabia o que dizer. Aí ela me perguntou quem é essa tal de Marcela. Eu disse que era ninguém, foi só um palpite. ‘Cês acham que ela acreditou? Já desconfiada, pediu pra ver a camisa. Pô, vocês sabem que eu sou grande, tenho quase dois metros e estou meio gordo, meu número é 'Extra GG' e a camisa da rifa era exatamente o meu número! Aí foi demais! A camisa virou picadinho e eu acabei dormindo num hotel. Sozinho. E tem mais: quando a Maria Helena me deu a camisa, marcamos pra hoje à tarde, que o marido foi viajar de novo. E ela falou: não me apareça se não estiver com a camisa!”