segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Réveillon numa vitrine azul


Antônio Contente

Sempre, em qualquer coisa que se faça ou que nos cerca, dorme a possibilidade de uma história. O simples tropeçar numa pedra, por exemplo, pode render romance de muitas páginas; bastando, para isso, que, após a topada, se caia sobre uma linda mulher. Assim foi que, naquela manhã na rua Augusta, em São Paulo, Claudinha fazia hora para almoçar, parando diante de algumas bem arrumadas vitrines. De repente, numa delas, o que chamou sua atenção foi o azul a preponderar na decoração. Tratava-se de famosa joalheria onde, num dos escaninhos por trás do vidro, repousava, sobre pequeno tufo de cetim cor do céu, um lindo colar. Absolutamente encantada ela cravou o olhar sobre a joia e, quase em transe, permanecia como que hipnotizada pela peça, onde cintilavam algumas pedras, prováveis diamantes. Então escutou, como se viesse do infinito, a voz de homem, a dizer:

— É seu.

Como se acordasse de transe a moça, lindíssima no esplendor de seus vinte anos, olha para trás onde estava um senhor elegantíssimo, de terno, cabelos grisalhos nas têmporas. Cinquentão.

— É seu — ele repete, com um meio sorriso de Rhett Butler, aquele de ...E O Vento Levou, no canto dos lábios.

Recomposta, Claudinha pergunta, com luminosos olhos de verdor intenso:

— O que é meu?

— O colar, naturalmente. Você não o estava admirando? — aponta — Pois é seu.

— Ora, eu...

— Por favor, não diga nada — o coroa levanta as mãos — sejamos objetivos.

Daí murmurou, com voz calma e pausada, que, como o Natal havia passado, mas ainda estavam no dia 28, gostaria de oferecer a ela, como presente de Ano-Novo, a linda joia que luzia na vitrine azul.

— E você quer fazer isso por que? — Havia certo tom de desafio na voz da moça.

— Por causa dos seus lindos olhos verdes. Exatamente iguais aos da minha filha que, por estar morando na Inglaterra, não passará o Réveillon comigo.

Então aponta a entrada da joalheria e Claudinha, como que hipnotizada, vai com ele. Para, logo depois, ter colocado no seu colo, pelo vendedor, diante de um espelho de cristal, o colar. Em seguida acondicionado numa finíssima caixinha devidamente embrulhada para presente. Saindo, a jovem fala ao presenteador:

— Mas eu nem sei o que dizer. Isso parece coisa de conto da Carochinha.

Sempre com o sorrisinho de canto de lábios, ele enfia a mão no bolso do terno finíssimo, certamente feito sob medida, retira e entrega um cartão. No qual estava somente um nome, “doutor Porto”; e um número de telefone. Nada mais.

— Feliz Ano-Novo — ele estica a mão.

Foi embora, deixando a moça ali de pé, estática, como se estivesse em transe.

Pois bem, tal história Claudinha, hoje uma senhora com mais de 70 anos, me contou tarde dessas quando a encontrei num café, no Cambuí. Naturalmente achei o caso incrível, tanto que pedi detalhes.

— Pois é — ela então seguiu — na época, anos 50, eu era estudante em São Paulo e dividia apartamento com uma colega.

Detalha que ao chegar em casa, excitadíssima, contou para a amiga o que acabara de ocorrer. Ouviu então o conselho, sem meias palavras:

— Ora, pelo amor de Deus, o que você tem mais que fazer é ligar pro homem. Sabe-se lá se não é um dos donos das Indústrias Reunidas F. Matarazzo...

Feito o telefonema, ela recebeu convite para passar o Réveillon na festa que, todos os anos, ocorria num dos mais luxuosos hotéis de São Paulo. Marcaram encontro na porta e, quando o fulano, elegantíssimo, chegou, lá estava Claudinha, até meio trêmula, tendo, no pescoço, a reluzir, o belo colar que ganhara. Nesse ponto eu interrompo com um “pelo visto foi uma história com final feliz, não é mesmo”? Ao que ela respondeu: “Bom, depende”.

Detalhou então que o Réveillon foi maravilhoso, com muito champanhe, o que costuma levar às maiores loucuras. Porém a surpresa maior ocorreu ao despertar, manhã alta, num dos apartamentos do hotel. É que o cinquentão de têmporas grisalhas, simplesmente, havia sumido, não estava mais lá.

— Bom — eu dou um suspiro — mesmo assim as coisas não terminaram mal.

— Sim, não terminaram mal; porém o colar, que o galã pedira que eu fosse à festa usando, foi embora junto com ele...

Ali no café do Cambuí, eletrizado com o que ouvira, eu não sabia o que dizer. Até que Claudinha, afinal, suspirou:

— Olhe, da joia não senti falta nenhuma; afinal, não significava mesmo nada. O que, até hoje, não esqueci, foi a noite de amor. A mais maravilhosa de toda a minha vida...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Conto de Natal


Antônio Contente

Por uma dessas insondáveis circunstâncias do amor ele foi morar, pouco antes do último Natal do século passado, num agradável recanto longe deste insensato mundo, num então agradabilíssimo subúrbio do Rio de Janeiro.

É que no distante bairro, com a palavra Vila antes do nome, a namorada possuía imóvel, abrigo certo para o sentimento nascente, em solidificação. Durante alguns meses lá ficaram ao sabor dos bons instantes.

E o pedaço no qual se instalaram tinha belo verde por perto, além de pequena baixada pela qual corria cristalino filete d’água; que se não era suficiente para atrair garças, dele vinha, nas noites de Verão, o coaxar de rãs que serviam de fundo musical para o cenário de campos do interior, como os de antigamente.

Por ali os pequenos instantes que levam à felicidade brotavam das coisas simples. Ele gostava, por exemplo, nas manhãs frescas dos sábados, de colar barriga à pia da cozinha para lavar folhas de rúcula.

Isso enquanto, no som, um velho elepê de Nat King Cole espalhava a suave melodia do The Very Tought of You, a dizer: “Pensando em ti/ Me esqueço de fazer/As pequenas coisas normais/ Que cada um deve fazer./ Estou num sonho/ Estou feliz como um rei”...

E então lá vinha Sílvia, cabelos curtos e riso alvo. Para, subitamente, aos espantos de ninguém, saírem a dançar pela sala.

Que se alongava em pequena sacada sobre a qual as pétalas das margaridas batiam na grade térrea.
Convite a que Narieldo, soltando a moça, pulasse para fora; colhido o raminho, entregava a afirmar que continha, também, essências dos cantos dos passarinhos que moravam no bairro sem nunca dele sair.

Em muitas manhãs Narieldo entregava-se a um barroco gesto. Ao acordar, lusco fusco no quarto, Sílvia a ressonar, ele se ajoelhava no chão, ao lado dela. Na primeira vez em que percebeu, a moça soltou um espantado “o que é isso”?

— Rezo — ouviu a resposta.

— Reza?

— Para agradecer aos deuses a glória de ter acordado ao teu lado...

Já na morada fazia quase um mês, certa madrugada Narieldo escutou som que parecia chegar de muito longe. Era um apito, prolongado. Que, ao concluir o rapaz vir de algum trem, passou a acreditar ser pranto das velhas estradas de ferro sendo destruídas. E tal gemido, lamentoso, se repetiu em outras madrugadas.

Até que na véspera do Natal, noite de chuva e até algum frio no verão carioca, o moço despertou com o som.

Como sabia que os trilhos da estrada de ferro que tivera dias de glória não passavam muito longe, deixou a cama com jeito, agasalhou-se e, silenciosamente, saiu. Queria, a todo custo, ver, com os próprios olhos, o trem moribundo.

Só que, pouco depois, Sílvia também acorda, não vê o marido e o chama. Sem resposta, levantou; apavorada, descobriu que o fulano não estava no apartamento. Enrolada em agasalhos, sentou na sala. 
O coração pulsava forte enquanto, apesar do dezembro, a sensação de frio aumentava.

Faltava pouco para amanhecer, alguém enfia chave na porta. Vendo Narieldo entrar, ensopado, ela salta:

— O que foi? Onde você estava?

Antes de responder, ele puxa cadeira e senta. Arfa, a voz cansada:

— Escutei, no nosso quarto, o apito do trem que passa quase toda madrugada naquela linha lá embaixo. Como isso sempre chegou aos meus ouvidos como um suspiro de lamento das locomotivas que estão morrendo, saí; queria ver a composição passar.

— E viu?

— Sim, claro, vi.

— Mas, Narieldo, você não pode ter visto. Não passa um trem por aquela linha faz mais de dois anos!

— Impossível. Pois ele chispou ao meu lado, senti até o vento de sua carreira bater no meu rosto...
Ficaram calados. Súbito, o rapaz levanta:

— Espera, acho que você tem razão, pois o trem correu diante de mim sem fazer barulho; parecia flutuar no espaço... Vai ver tudo isso é apenas efeito do nosso primeiro Natal aqui...
Novo silêncio; Narieldo senta, a dizer:

— Mas, na hora em que virei as costas para voltar pra casa ouvi, nitidamente, o apito; como um lamento... Sem dúvida, é coisa de Papai Noel...
Naquela mesma manhã o assunto entre os dois esgotou-se, nele não falaram mais. E tempos depois, com o caso d’amor terminado, nosso herói contou a história para um amigo. Que indagou:

— E o som da ferrovia? Depois que você saiu daquele bairro morreu para sempre?

— Não, às vezes eu o escuto, aqui mesmo à beira mar, em Ipanema.
Pegou a taça de vinho, deu um gole. Para concluir:

— Afinal, meu caro, os amores eternos são os que duram apenas o tempo de um apito de trem; que, contudo, não deixe de soar. Estou a ouvi-lo sempre nesta época de fim de ano quando, em insônias, nas madrugadas, sinto baita saudade daquele Natal; e dos braços de Silvinha...

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

"A Noite do Meu Bem"


Edmilson Siqueira

Comprei hoje o livro “A Noite do Meu Bem – A História e as Histórias do Samba-Canção” de Ruy Castro. Li, enquanto sorvia um café perto da livraria, ali no Shopping Iguatemi, o prólogo com umas 15 páginas que prepara o leitor, de modo magistral, para entrar no clima em que o samba-canção invadiu corações e mentes do Rio de Janeiro e que perduraria por duas décadas mais ou menos.

Ruy Castro sabe contar histórias verdadeiras. Fidelíssimo a tudo que pesquisa, seu texto se incumbe de dar aos fatos um sabor de novidade inesperado, transformando em saborosos quitutes histórias que, mesmo se conhecendo, surpreendem a cada linha.

Entrevistei Ruy Castro em março de 1993, aqui em Campinas, na livraria Letras e Arte, que ficava entre o City Bar e o Paulistinha, para o lançamento de “O Anjo Pornográfico”, magnífica biografia de Nelson Rodrigues. À época ele estava escrevendo a biografia de Mané Garrincha e me falou algumas coisas sobre ele. E já havia escrito “Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova”. Escrevendo sobre a bossa nova e seus geniais criadores, a vida e o teatro de Nelson e a vida e o futebol de Garrincha, Ruy produziu material inestimável para a cultura brasileira. E ele escreveu muitos outros - e ótimos – livros.

A entrevista feita há 22 anos foi manchete do Caderno C do Correio Popular no dia seguinte e Jary Mércio, meu "editor-chefe”, tascou a manchete: “Ruy Castro dorme com seus personagens”. A frase, dita de outra maneira, era do próprio Ruy que havia contado que, após coletar todas as informações possíveis sobre seus personagens, se isolava de tudo e de todos para escrever, só pensando no texto, dia e noite.
A capa interna do livro é recheada de anúncios das casas noturnas 
 cariocas dos anos 40 e 50, quando o samba-canção reinava absoluto
Pois esse livro, cujo personagem principal é o samba-canção, deve ser parecido com o da bossa nova, com pequenas e deliciosas biografias dos compositores e de toda aquela gente que contribuiu, de um modo ou de outro, para a explosão e a permanência do gênero por tanto tempo na produção musical brasileira. A diferença talvez esteja no sucesso que a bossa nova alcançou no mundo (até hoje, por sinal) enquanto que o samba-canção ficou mais restrito ao Brasil, mas deve ter vendido muito mais disco por aqui. Só que ainda não sei. Escrevo esses comentários ao sabor de um prólogo que me encheu de expectativas para ler o resto – e olha que o samba-canção, embora aprecie muitas obras primas do gênero, não está entre os tipos de música que mais admiro.

Mas sei que, além de ficar sabendo de tudo que o samba-canção fez nos corações e mentes de mais de uma geração de cariocas – e brasileiros em geral – terei, no livro, um panorama do Brasil dos anos 1940/50 e parte dos 60 que poucos historiadores poderiam oferecer. Não em detalhes históricos próprios de debates acadêmicos, mas nos fatos que se transformaram em canções, nos cenários que inspiraram os autores, nas fossas todas de onde saíam as letras e nas outras fossas que elas causavam.

Logo de cara, ainda no prólogo, Ruy derruba um mito: o de que o presidente Eurico Gaspar Dutra acabou com os cassinos a pedido de sua mulher, cujo apelido, não por acaso, era Dona Santinha. Dutra foi atrás de popularidade e ouviu conselhos de gente bem próxima dele que, se proibisse, o povo o apoiaria. Os conselhos foram de seu ministro da Justiça, Carlos Luz, que tinha contra os cassinos broncas morais e religiosas. Mas isso é só um exemplo da riqueza histórica que qualquer livro de Ruy Castro nos proporciona.

Por isso, nos próximos dias, apaziguando minh’alma dos tremores políticos, dos incêndios diários em Brasília, dos discursos inflamados de imbecis consagrados pelo voto, terei o bálsamo de viajar por um Brasil que, tenho certeza, era bem melhor que o atual: o Brasil do samba-canção que antecedeu o Brasil da bossa nova, um tempo em que, conforme o próprio Ruy escreveu na dedicatória que me fez no Chega de Saudade, “o Brasil ia para o Primeiro Mundo”. O grifo no verbo foi dele. 

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O irlandês dos lugares incomuns


Antonio Contente

Pelas barbas do profeta!, como não lembrar de McCallum, o irlandês, no já andar deste criativo outubro. Afinal não foi outro, senão o gringo, a me mostrar, pela primeira vez, que é às brisas deste mês que as sibipirunas de Campinas em geral, da Chácara da Barra em particular, espalham pepitas d’ouro pelo ar e pelas calçadas.

Ora, amigos, façamos, antes de mais nada, merecidas louvações àquilo que os cultores dos preciosismos do estilo criticam como sendo “lugares comuns”. Com que prazer me refiro às florinhas amarelas, que as amadas árvores dispersam, como pepitas do mais puro ouro a tornar ruas, vielas, jardins, telhados ou mesmo restritos altos de muros, em repositórios de sagrados tesouros.

Sim, falava de McCallum, o irlandês, velho amigo que por aí segue, correndo mundo, mas foi meu parceiro de copo em tantas tardes nos belos tempos da rua de Cima, caminho de Santiago de Compostela que me levava da casa ao bar da esquina. Sábio homem de português perfeito na sua intimidade com inúmeras línguas. Quantas vezes, da cadeira do buteco com sacada para a noite, onde sentávamos, chamou-me atenção para os luares que se derramavam sobre asfaltos, galhos ou beirais curvados à espera das águas.

— Veja, me disse certa ocasião: — aí temos o céu, neste plenilúnio, cobrindo de prata, de argênteo, a pequena paisagem deste instante que necessitamos para viver.

Ora, amigos, benditos os que seguem chamando luar de plenilúnio, ou que não se importam de denominar, com todas as letras, de argênteas as luzes que as circunstâncias de uma lua que vem da Ásia depositam em mentes e corações.

McCallum agora, pelas notícias que dele recebo sempre, via e-mail, está residindo em Bhaktapur, cidade fundada no século XII no Vale do Katmandu, no Nepal, tornada Patrimônio da Humanidade nos idos dos anos 70 do século passado.

Garantiu-me que já fala com certo desembaraço a língua local, o newari, a ponto de nela fazer orações ao deus Ganesh. Utilizando-se dos maravilhosos lugares comuns que os intelectuais odeiam mas eu adoro, me disse assim, em outra mensagem:

“Meu amigo, a lua, aqui, nasce sempre como um disco de prata. E de prata é o caminho de luz que traça sobre o lago Runishá onde as brisas, perfumadas como os cabelos da amada, chegam sopradas pelos anjos”.

Na Chácara da Barra d’outrora o aventureiro irlandês só se referia aos passarinhos do bairro como “alados príncipes dos céus”. Certa tarde, quando eu percorria o Caminho de Santiago de Compostela ao contrário, ou seja, do bar para casa, eu o vi a gesticular junto dum muro perto da mansarda em que morava. Fui chegando devagar e percebi, sem identificar direito as palavras, que falava em inglês. Não resisti e indaguei: “Falando com alguém ou sozinho”? Ao me olhar, respondeu: “Você não está vendo? Converso com nosso amigo sanhaço”.

— Mas em inglês?, respondi.

— Você é que pensa que ele só entende português. Passarinhos sacam o que queremos pela entonação do que dizemos.

— Bom, retruquei, olhando em volta: — não estou vendo sanhaço nenhum.

— E você acaso acha que, para falar com eles, os bichinhos precisam estar aqui?

Ontem de manhã, na rua Pereira Barreto, observei, entre as muitas sibipirunas, uma absolutamente a explodir em flores. Os tufos que galhos formavam eram simplesmente inusuais. Pois, na parte de baixo, predominava só o verde forte das folhas. Porém, ao subir, elas como que se arredondavam formando espécie de balão, como os que flutuam na Capadócia ou em Porto Feliz. Parando, pálido de espanto, para admirar, vejo que o verdadeiro globo terrestre de florinhas amarelas soltava, em doses certas, pétalas ao vento.

Como diria meu amigo McCallum, pepitas de ouro a se dispersar à luz da manhã não para o nada, sim para formar maravilhoso tapete de pepitas sobre a calçada. Tapete enorme e inconsútil, que bem poderia, de repente, decolar; como o de Aladim e a lâmpada maravilhosa.

Por fim, vale dizer que esta crônica saiu mais por causa da mensagem que troquei com McCallum ontem à noite. De repente pedi que me contasse pelo menos uma das suas grandes saudades dos tempos da Chácara da Barra.

— Ah, meu amigo, senti o suspiro dele na tela do notebook: —não há nada que mais me faça lembrar daí do que as sopas da Lulu.

Rapidamente recordei que se tratava de vizinha nossa, adorável, amante de bons vinhos, que de vez em quando nos convidava para um prato do divino caldo. Tão maravilhoso, que, lá do Nepal, o irlandês assim se lembrou:

— As sopas da Lulu, meu caro, sempre deslizavam para dentro de mim como cálida, inesquecível canção escrita pela linda moça.
Ah, sim, a compositora das iguarias foi o grande amor da vida de McCallum.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Nós e os alienígenas


Antonio Contente

Nos setores que a isso se dedicam mundo afora, as buscas pelos extraterrestres não param, o que significa que, em muitos lugares, técnicos permanecem 24 horas com olhos, ouvidos e cabeças voltadas para o espaço sideral. O que, porém, disto chega ao noticiário, à chamada mídia, vem em ondas. 

Há épocas em que o tema, dependendo de algum procedimento que esteja sendo feito pela Nasa, por exemplo, inunda o noticiário. Em outras ocasiões, se acalma. Fazendo com que só de vez em quando alguma notícia de OVNI desgarrado surja, aqui e ali. Recentemente, com a chegada de equipamento americano às proximidades de Júpiter, veio verdadeira enxurrada de novas informações sobre as tentativas de algum contato imediato do terceiro grau. 

E até aqui em Campinas, faz poucos dias, o alinhamento de corpos celestes fez dezenas de pessoas procurarem o Observatório do Morro das Cabras, em Joaquim Egídio. Não só para ver o que o céu mostrava. Pois sabe-se que a grande ânsia dos que se interessam pelos densos caminhos das estrelas é, na realidade, sacar se estamos ou não sozinhos nas imensidões que pairam além da nossa imaginação.

Livros e cinema têm se esparramado, e muito, sobre o tema. Um dos filmes mais instigantes que vi falando da presença de alienígenas entre nós foi o modesto, porém esplêndido, Vampiro de Almas, dirigido por Don Siegel em 1955. Nele o médico vivido por Kevin McCarthy come um cortado com seres d’outros mundos que invadiam corpos humanos fazendo clones através de sementes implantadas em vegetais ou algo parecido. Filmaço.

Mas, em cima das recentes tomadas de Júpiter feitas com câmeras da Nasa, pensei mais longamente sobre não só a existência de extraterrestres como também nas possibilidades, avaliadas como reais, de que muitos deles já estejam pairando entre nós. 

O que, porém, me intriga, não seria a presença enrustida, clandestina, de tripulantes de OVNIs inclusive nas mesas do Café Regina onde, nas manhãs, derrubo meus chazinhos. Mas sim que, uma vez contatados, os habitantes do recém-descoberto Kepler-452b, distantes de nós 1.400 anos luz, se disponham a enviar, oficialmente, uma grande delegação à Terra. 

Ora, amigos, vamos falar a verdade, levando em conta que para cá chegar os extraterrestres visitantes teriam que dispor de alta tecnologia e inteligência fora do comum, o que a eles poderíamos mostrar? Este combalido corpo celeste totalmente esculhambado onde mal e porcamente vivemos? Francamente, que decepção os habitantes do espaço sideral iriam ter! Afinal, estamos num mundo em ampla decomposição, não só física como moral. 

Em ambos os casos os visitantes constatariam de cara o quanto degradamos o planeta, no qual as guerras localizadas seguem interminavelmente a matar pessoas como no espaço talvez não se matem nem moscas. Veriam os alienígenas, também, hordas de pessoas desnutridas em muitos lugares; e, horrorizados, caso sobrevoassem o Mar Mediterrâneo, talvez até tentassem salvar os negros africanos, doentes, famintos, que vagam e morrem afogados em busca de lugares para viver na velha Europa. E o aquecimento global, que tornou o último mês de junho o de maior canícula desde que medições de temperaturas começaram a ser feitas, no século 19? Horror!

Peguemos o Brasil. Já pensaram se os civilizadíssimos extraterrestres desembarcam nesta Banânia e são, de repente, levados a um diálogo com a presidente Dilma e seu criador Lula da Silva, esta dupla de gênios da raça? E, depois, usando os visitantes máquinas e métodos que os levariam a entender de tudo, com telepatia avançada, o que achariam das minúcias do desenrolar do Petrolão agora e do Mensalão em dias passados? Já imaginaram os computadores das naves espaciais chegadas do civilizadíssimo planeta Kepler-452b decodificando os pensamentos de um Eduardo Cunha, Collor de Mello ou Renan Calheiros?

Algo me diz que um sofisticado equipamento desses, colocado para detalhar aos viajantes do disco voador que o que a atriz Marieta Severo chama de “inclusão social” são os trocados que o governo doa aos miseráveis, certamente explodiria.

Assim, francamente, não dá para entender a ânsia de muitos em busca de contato com habitantes de planetas que estejam a anos luz de nós em termos de civilização. 

E não só porque absolutamente não temos o que mostrar. Como também porque um Lula, Jader Barbalho, Paulo Maluf, Collor de Mello, ministro Lobão, José e Roseana Sarney, Zé Dirceu, Genoíno, Palocci, Mercadante, Rui Falcão, Vacari, Franklin Martins, Delúbio, Jaques Wagner ou Mantega, levados, como personalidades que mandam “nestepaiz” em visita a um disco voador, certamente acabariam batendo as carteiras dos navegantes do espaço...

domingo, 30 de agosto de 2015

O prazer da leitura



Edmilson Siqueira

Comprei um ótimo livro e um problema. O livro é Queria Mais É que Chovesse do português Pedro Mexia, cheio de crônicas publicadas na imprensa lisboeta entre 2003 e 2014. O problema é que, sendo um nato escritor português, Mexia usa inúmeros vocábulos que, embora façam parte – quase todos – do nosso léxico, não são de uso corrente por aqui. Acrescentando-se a esse fato a ignorância desse cronista que jamais sonhou em ser um dicionarista ou filólogo, embora inveje o conhecimento de ambos têm de ter da língua pátria, muitas palavras são do meu total desconhecimento. Daí ter de ler o livro, de tamanho comum, menos de 200 páginas, tendo ao lado a primeira edição (de 2001) do sempre útil Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, um exemplar de vários quilos com suas 2.924 páginas, sem contar capa e contracapa.

Como não costumo ler em apenas um lugar, agora me vejo vagando pelo apartamento carregando o exemplar do Mexia em u’a mão e, na outra, o pesado Houaiss, correndo o risco de deslocar a clavícula num movimento mais rápido. E em quase todas as crônicas (em Portugal é “crónicas”) encontro, no mínimo, uma palavra cujo significa só o Houaiss pode me dar.

A primeira delas me ocorreu logo na segunda crônica do livro. Escreve Mexia: “...designação um pouco pífia que aqui repito com fins puramente facetos”. Facetos? Pois é o mesmo que chistoso, brincalhão me diz o Houaiss. E ainda ali, no mesmo parágrafo, ele tasca uma frase assim: “Numa palavra, a grunhisse abunda”. Tentei adivinhar como sendo falta de respeito ou ignorância e vou ficar sem saber. Não há registro dessa palavra no Houaiss e na rede de computadores encontrei-a em alguns textos portugueses, mas sem o significado. Ou seja, ela existe em Portugal, mas deve ter se afogado no Atlântico quando tentava chegar ao Brasil.

Logo em seguida deparo com “embiocada”. Nessa o Houaiss me salva: quer dizer “discreto” “que se esconde” e cabe certinho no texto: “Essa minoria é essencialmente formada por gente introspectiva e embiocada”. Mas a primeira definição é “envolto em bioco” e aí fui procurar o que é “bioco”, descobrindo que se trata de uma espécie de lenço que as mulheres usam para cobrir o rosto ou parte da cabeça. A palavra acabou sendo usada também para significar “discrição”.

Páginas adiante, na crônica “Nós, os Gordos”, Mexia diz que ficou “banzado” quando um amigo o colocou no rol dos mais pesados. Banzado? Tá lá no dicionário : “pasmo”, “perplexo”, “desagradavelmente surpreso”.

“E o pior é que não lobrigo soluções evidentes”. Lobrigo? Pareceu-me “percebo”, “antevejo”, mas fui lá no Houaiss conferir: o verbo lobrigar quer dizer “enxergar, com dificuldade, na escuridão ou penumbra”. Até que não fiquei muito longe do acerto.

A palavra seguinte foi “escanzelado” e descubro que se trata de alguém magro como um cão que passa fome. Jamais imaginaria.

A descoberta seguinte não teve o socorro do Houaiss e até tive certo prazer ao me deparar com tal expressão. Na minha vida noturna – hoje quase ausente, mas que já foi muito frequente – sempre estranhei o fato de um prato conter um “bife a cavalo” que se trata de um ovo sobre um bife. O nome não estaria errado? A situação não estaria invertida? Pois na crônica “O Senhor Albino”, simpático dono do Snob, o bar-restaurante preferido do autor, está lá: “...infindáveis horas de boémia mansa, de letargia melancólica, de enfado com ovo a cavalo”. Pois é, em Portugal chama-se corretamente um bife a cavalo de ovo a cavalo.

Mas volto ao dicionário para saber do que se trata “chavascal”. A crônica versa sobre tema delicado, que requer cuidados, pois comenta Mexia a vida sexual dos vizinhos do andar de cima, da qual ele é ouvinte assíduo e não por ser “todo ouvidos”. Simplesmente ouve por que as finas o teto que divide os andares não impede a passagem do som. E no meio da noite, quando ainda acordado, acaba ouvindo o que chama de “festividades” do casal vizinho. Pois “chavascal”, entre vários outros significados mais ou menos correlatos, quer dizer “falta de ordem”, “desarrumação”. Diferentemente, diga-se, do que cheguei a pensar.

Ainda estou no primeiro terço do livro e, além das palavras citadas, já encontrei várias outras que me levaram ao Houaiss. E, com certeza, muitas outras ainda estarão no meu caminho até a última crônica. Mas, quer saber? Apesar do peso e do perigo de uma distensão no braço, achei divertido andar pela casa, ao mudar de local de leitura – às vezes é a cama, outras vezes é o sofá da sala, já foi e será de novo, se o tempo ajudar, o terraço – carregando o pequeno exemplar do Pedro Mexia e o robusto e pesado Houaiss. Pois para mim, ignorante dos recônditos da língua pátria, não haveria o prazer da leitura de um sem o outro.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Os suspiros no silêncio


Antonio Contente


Cássia e Leala, ambas lindíssimas, eram duas amigas que moravam juntas dividindo o aluguel de um quarto e sala no Centro. Foi num sábado quando as duas curtiam o fim de semana que Cássia, tendo saído para trocar pernas pelo shopping, à tarde, voltou para casa no começo da noite, excitadíssima. Disse para a companheira de morada, mal entrou:

— Acabo de conhecer o homem da minha vida!

A outra, que estava até meio distraída, levantou a vista do romance Sombras da Primavera, de Keila Gom, que começara a ler:

— Como é que é?

— Acabo de conhecer o homem da minha vida!

Daí detalhou que sentara na Praça da Alimentação para um lanche quando notou que estava sendo observada. O rapaz encontrava-se na mesa ao lado com dois imensos olhos azuis, intensamente azuis, da cor de um total e acabado céu de brigadeiro, cravados nela. E então, completamente tomada pela beleza do sujeito, se viu prestes a concluir que se ele não se manifestasse, ela mesma iria falar-lhe.

— Mas o cara era mesmo bonito? — Leala quer saber.

— Bonito? Você sabe o Brad Pitt ou o Tom Cruise, não sabe? Pois bem, os dois, perto dele, eram o ex-presidente Lula com sua eterna cara de bebum brega.

Cássia segue contando que a troca de olhares se tornou algo, pelo menos para ela, quase insuportável. Até que, de repente, o camarada levanta e aponta a cadeira vaga na mesa que a fulaninha ocupava.

— Bom — Leala interrompe — apontou a cadeira para perguntar se podia sentar, certo?

— Certo. Só que não perguntou nada. Sentou, retirou do bolso interno do paletó um caderninho de notas e escreveu: “Desculpe, mas eu sou mudo”.

— Meu Deus! — A outra arregala os olhos.

Cássia então prossegue contando que, na base das mensagens escritas, conversaram horas. E que sentia estar começando a viver um grande, um imenso amor.

Bom, nos dias que seguiram ela e Moura — este era o nome do galã — de fato continuaram a se encontrar, sempre a “falar” com os bilhetes trocados cara a cara ou mensagens que a internet possibilitava. E se passam vários dias. Por fim naquela tarde em que saíram do discreto motel na estrada, após impecáveis instantes d’amor, foram comer alguma coisa num restaurante perto.

Ali, de repente, movida sabe-se lá por qual tipo de impulso, Cássia pega o bloco através do qual se comunicavam e indaga, com todas as letras: “Você, por acaso, não é casado?”. Perguntou e, ao mesmo tempo, se arrependeu, pois o bonitão ficou pálido. Tentou escrever alguma coisa, só que as mãos tremiam. Agita-se na cadeira.

O que haviam pedido para comer nem chegara, porém o rapaz, levantando, larga sobre a mesa duas notas de 100 reais e sai. Pega o carro estacionado logo ali; some, rangendo pneus.

A noite caíra quando Cássia chegou ao apartamento com os olhos vermelhos de tanto chorar. Leala se derrama:

— O que foi que aconteceu, menina?

— Ele... Ele... — Ela tenta falar.

— Ele o que?

— O Moura...

— O que tem o Moura?

— Descobri que é casado!

Daí em diante a paixão se desdobrou em angústia e desespero. Sem conseguir trabalhar, Cássia, que estava com férias vencidas, resolveu pedir o benefício. Leala até ponderou com um “mas você pretende ficar em casa curtindo essa fossa”? A outra primeiro a olhou longamente pro nada. Após gemeu, arrancando a frase do mais fundo do coração: “Vou esperar que Deus me ajude a morrer”.

Bom, mas não morreu e, aos poucos, a passagem dos dias começou a cicatrizar a ferida. Recomeçara a sair para um cineminha, um passeio pelas ruas do comércio central, um cafezinho nas esquinas da vida.

Até que, naquela noite, batem na porta do pequeno apartamento das moças, era o porteiro do prédio tendo nas mãos um envelope. Pelo sobrescrito Cássia logo reconhece a letra de Moura. Olhando nos olhos de Leala, diz:

— É dele.

Rapidamente abre para dar de cara com um bilhete e uma fita cassete das antigas que sumiram do mercado com a chegada dos CDs. A mensagem dizia: “Espero que você ache onde possa ouvir esta fita. Poderia enviar um pendrive, mas gosto do suspense. Nela explico tudo”.

Há longo silêncio entre as duas amigas. Cássia de pé, com a vetusta fita entre os dedos. De repente diz, balançando a coisa no ar:

— Só faltava essa, pelo jeito o Moura, além de casado, fala! Você já pensou se a voz dele, lindo do jeito que é, for igual à do Cid Moreira no tempo em que fazia o Jornal Nacional? Aí é que a paixão vai me matar...

Vira-se então, com gesto rápido, e atira a fita pela janela do décimo quinto andar em que moravam. Isso feito sentiu como se tirasse um enorme peso, do coração e da alma. E sorriu como se um passarinho cantasse dentro do seu peito.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Ora, direis, ouvir estrelas...



Antonio Contente

Pra mim o céu, não o das religiões, sim o que nos cobre, é visão a permitir o exercício do alcance. Com certeza não sabemos onde termina, ou se termina. Porém, com certeza, começa no lugar de onde o observamos.

Antigamente, sem as tantas informações astronômicas hoje disponíveis, não tínhamos intimidades maiores com as cerúleas circunstâncias. Todavia, apesar, sempre para elas olhávamos; e as noites estreladas ou enluaradas faziam parte das nossas caminhadas em busca do belo.

Bilac, o poeta parnasiano, num dos seus talvez mais famosos sonetos, chegou a ironizar as pessoas que não acreditavam pudéssemos ouvir e entender estrelas. E mesmo quando, ao final do poema, acentuou ser isto dádiva reservada aos apaixonados, certamente contribuiu para que muita gente passasse a olhar para o alto em certas noites.

Falo disso porque neste Correio Popular do último dia 14 de junho li, em excelente reportagem de Luciana Félix, da Agência Anhanguera, que está sendo construído, junto ao Observatório Municipal, em Joaquim Egídio, um “astroteatro”.

Que nada mais será do que um local onde 80 pessoas a cada vez poderão, devidamente deitadas, observar estrelas. Com um astrônomo no meio a explicar. Não, digamos, com o mesmo espírito do poeta acima citado. Porém a falar, sim, de algo fascinante.

Isso, naturalmente, é uma contingência; oferenda do mundo moderno. Uma vez que os astros, ofuscados por causa das luzes das cidades, nelas mal podem ser observados a olho nu. Ou não... Todavia, seguem a aguçar curiosidades.

A primeira reflexão a que o futuro “astroteatro” me remete é que outrora as estrelas apareciam facilmente. E nem vou buscar lembranças dos tempos da meninice, mas uma muito cara daqui mesmo, da Chácara da Barra. Quando o querido chefe André, meu filho, era criança, costumava com ele deitar, em certas noites, num elevadinho de cimento no quintal para apreciar o cintilar dos astros.

Não foram poucas as vezes em que, com eles tão nítidos, conversamos sobre os inúmeros sois que vivem lá em cima. Num velho gravador de fitas alimentado a pilhas, se o luar também se abria, invariavelmente nos entregávamos ao infinito ouvindo Clair de Lune, de Debussy. Fica a sugestão para a música de fundo das aulas que serão ministradas no Observatório das Cabras.

E foi depois de ter lido a matéria da colega Luciana que passei a indagar, aqui e ali, entre meus amigos, quais ainda buscam ver estrelas. Fiquei surpreso. O empresário Pedro Porto, por exemplo, dono de verdejante fazenda nas brenhas do município de Mococa, me contou que é enorme a nitidez com que os astros aparecem no céu de lá. E mesmo com parcos conhecimentos de astronomia, fez mapa deles.

Como percebeu certa incredulidade no meu olhar, chamou-me para um uisquinho na sua linda mansão campineira e, de repente, quando eu menos esperava, abriu diante dos meus espantados olhos vários mapas das instâncias celestes desenhados de próprio punho por ele.

“Esta aqui — me disse, mostrando uma das cartas — é a Constelação de Orion, nosso céu mocoquense no Verão.” Na continuação exibiu Leão, do Outono; Escorpião, do Inverno; e, Pegasus, da Primavera. Saí de lá convencido que o Observatório Municipal está perdendo um ótimo professor para se revezar com o efetivo no futuro “astroteatro”. Com a vantagem de que, por não precisar de ganho extra, dará aulas de graça...

Mas a surpresa maior estava reservada para a manhã de sábado quando fui à casa do professor Borges, encravada num silencioso recanto de Barão Geraldo. Minha intenção era pedir que me deixasse estar em seu quintal numa noite qualquer para olhar o céu limpo que sempre faz por lá. Só que, quando cheguei à enorme residência, percebi, logo na entrada, muitas pessoas a se movimentar pra cá e pra lá.

Borges, porém, tratou de explicar que se tratava apenas dos preparativos para o casamento de um dos seus filhos que ocorreria ali mesmo, com festança e tudo, no dia seguinte. Arrastou-me para a biblioteca e logo disse que nem era muito favorável ao enlace, pois tanto o noivo como a noiva trafegam por parcos 18 anos. Todavia, retirando foto de uma gaveta mostra, dizendo:

— Mas veja aqui, esta é a moça por quem meu filho se apaixonou. Não dava mesmo para resistir, certo?

Concordei logo porque, de fato, a criatura não poderia ser mais linda. E vendo que o instante não era propício para pedir o quintal a fim de fazer observações astronômicas, levantei para sair. Mas antes, já junto da porta, perguntei o nome da futura nora do amigo.

— Estrela — ele respondeu — Estrela Krüll, filha do alemão lá da rua de cima.

Contive o susto, pálido de espanto como o personagem do soneto de Bilac. Na rua segui em frente, recitando cada verso. Que sei de cor.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

A lembrança de J. Toledo


Em setembro vai fazer oito anos que o amigo Jota Toledo morreu. Lembrei dele hoje de manhã, lembro sempre, todas as manhãs em que tomo café em casa. O motivo é a história que segue abaixo, real, vivida, como diria Caetano, “na minha ‘adolescidade’, idade de pedra e paz”.

Foi numa daquelas noites regadas a uísque, cerveja e alguns queijos, na Maison Toledo, lá em Sousas, que tudo aconteceu. Jotinha ou J. Toledo como ele assinava suas obras, comandava os colóquios linguísticos ou, como gostava de dizer, as “tertúlias” que varavam a madrugada e terminavam quando o sol já dava suas caras lá pelas bandas da Rodovia Heitor Penteado.

Éramos uns cinco ou seis notívagos, provavelmente numa noite de sábado, a favorita de Jota para reunir amigos, falando de tudo e de todos, metendo a boca no governo – qualquer governo – elogiando alguns artistas e girando a tábua de queijos que Diane preparava.

Lá pelas quatro da manhã, Jota resolveu tomar café. Ele gostava de contrastar o gosto do uísque com um café quase sem açúcar. Eu achava estranho, mas não é que outros amigos acompanhavam-no nessa, pra mim, exótica aventura etílico-gastronômica?

Como só eu não quis café, foram distribuídas umas quatro ou cinco xícaras pela mesinha de centro, mas descobriu-se, em seguida, que não havia colherinhas. Jota virou-se para mim e pediu:

- Ed, como você não vai tomar café, desce lá na sala, tem uma cristaleira e, na gaveta de baixo, você abre e encontrará colherinhas de café. Pega umas lá pra gente. Aproveita e traz uma bandeja que está em cima da mesa.

E lá fui eu, descendo a estreita escada com muito cuidado, para que o efeito do álcool não vencesse a disputa entre minhas pernas e os degraus. Abri a gaveta e peguei um punhado de colherinhas. A bandeja na mesa era mais pesada do que eu pensava e para evitar qualquer problema, pus as colherinhas no bolso do paletó que usava, que, aliás, fora presenteado pelo próprio Jota. Subi com mais cuidado ainda, botei a bandeja na mesinha de centro e distribuí as colherinhas.

E a noite prosseguiu até chegar a manhã e todos irmos embora, sob os protestos do Jota que bem ficaria mais algumas horas papeando. “Vai todo mundo embora? É um complô?”, sempre dizia ele diante da debandada sonolenta da turma.

Uns três anos depois, com todos seus amigos já sofrendo a perda do Jota, que decidiu não sofrer mais por conta de uma terrível doença, peguei o paletó no guarda roupa para doá-lo, pois eu havia engordado e não me servia mais. Aliás, foi esse o motivo também do Jota ter me dado o dito cujo. Era de um tecido meio acamurçado, verde escuro, bonito, mas, depois daquela noite, nunca mais o usei. Ao dobrar para colocá-lo num saco plástico, caiu, de um dos bolsos, uma colherinha, igual às outras que eu havia pegado na gaveta da cristaleira. Ela havia sobrado e eu não percebera. É uma colherinha de prata, provavelmente de algum faqueiro elegante já com suas peças dispersas. 

Jota tinha morrido há pouco tempo e eu fiquei olhando pra colherinha e lembrando da noite do café e de todas as noites que passamos naquele enorme sótão que ele transformou em estúdio ou nas noitadas em bares diversos, desde a Barão Velha do Centro à  Adega Florence na Vila Nova, do Alfredo’s do Cambuí à Adega dos Arcos do Passarinho no balão do Centro de Convivência, do Água Furtada ao 88 na Vila, do City Bar ao Paulistinha, do Clube XV ao Bati Papo e muito outros que vimos nascer e morrer, em intermináveis noitadas por essas Campinas. Foi difícil conter algumas lágrimas. 

A colherinha, a única de prata que tenho, tem me acompanhado em todos os cafés da manhã que preparo em casa desde que ela caiu do bolso do paletó. É lavada com todo carinho e volta para a gaveta das colheres.

A querida Diane que me perdoe, mas jamais a devolverei. 

terça-feira, 21 de julho de 2015

Estamos de volta!

(Antonio Contente e eu decidimos retomar esse blog só de crônicas que havíamos deixado sem postagem há quase um ano. E recomeçamos com uma crônica do jornalista nascido no Pará, publicada recentemente no Correio Popular, onde ele faz bela homenagem a uma grande escritora.  Ah, o blog continua aberto a quem quiser publicar crônicas.)



A Escritora

Antonio Contente

Uma coisa absolutamente óbvia, porém pouco observada, é que o todo de nossas existências é formado por pequenas vidas que nos envolvem. Acho que seria certo dizer que da maternidade ao final, somos personagens de um grande painel feito de acontecimentos autônomos a formatar a história completa.

Quem já não se descobriu a fazer comentário como esse: “Ah, experimentei bela emoção; valeu por uma vida”. Meus primeiros tempos de Campinas, por exemplo, começaram quando eu mal entrara na casa dos 20 anos. E hoje, tantos anos passados, vejo que foi algo com princípio meio e fim; embora o derradeiro, o geral fechar de cortinas ainda não tenha chegado.

Dos iniciais tempos campineiros, o que lembro? Muitas coisas. Emocionantes algumas, ternas outras, terceiras nem tanto, porém todas pintadas de forma que vale a pena recordar. Uma das mais marcantes, certamente, foi ter conhecido a escritora.

Ocorreu assim: como eu era amigo de sua filha, de vez em quando aparecia pro cafezinho num simpático sobrado na Rua Guilherme da Silva, Cambuí. Certa manhã, sentado na sala, escutei um “plec, plec, plec” a bater; reconheci imediatamente que se tratava de máquina de datilografia com as quais, como estudante de jornalismo na Cásper Líbero, começava a ter intimidades. Perguntei à amiga quem é que batucava. “Minha mãe”, ela respondeu. “E escreve o quê?”, segui, curioso. “Um livro”, foi a resposta. “Livro?” Levantei as sobrancelhas. “Romance”, fechou a informação.

Daí em diante ouvindo o “plec plec” sempre que aparecia para visitas, soube que a escritora todos os dias, às cinco da manhã, já estava na sua maquininha. Daí seguia com os dedos nas teclas até pouco antes do almoço; uma vez que, após o meio-dia, precisava sair para cumprir atividade como funcionária pública. Minha curiosidade sobre o que redigia foi natural. Todavia, mesmo tendo visto de perto várias vezes a autora, certamente tolhido pela diferença de idades que antigamente tinha certa força, nunca perguntei nada. Só a olhava, com secreta admiração.

Depois desse período de mais ou menos um ano a frequentar Campinas, cidade pela qual me apaixonei, tendo terminado o curso de jornalismo em São Paulo precisei começar a batalhar.

Primeiro andei pelo Rio, depois tornei à Capital paulista e os anos foram correndo. Um dia eu estava fora do país a trabalho quando recebo um pacote, pelo Correio. Era um livro, com o seguinte bilhete: “Aí segue o resultado do ‘plec plec plec’ que você ouvia em minha casa, em 1959”. Quem assinava era a minha amiga, filha da escritora. Assim foi que, sofregamente, li o romance Natal Solitário, esplêndido, história emocionante, maravilhosa; aliás, premiado pela Academia Brasileira de Letras.

Mais algum tempo e volto a frequentar Campinas; a casa da amiga, agora, era um enorme apartamento. Em certa manhã, lá escuto outra vez o “plec plec plec”. A informação veio em cima, antes mesmo que eu perguntasse: “É, minha mãe já está batucando outro”. E ainda mais adiante no tempo, agora novamente numa grande casa, o barulhinho da máquina de datilografar acabou sendo a canção que ouvia curioso e atento, em dias de visita.

Assim, de “plec plec” em “plec plec”, saíram vários romances, além do que cito acima. Lembro neste instante de pelo menos mais três: "Céu Escuro", "Ana e O Órfão" e a "Mulata", todos ótimos, premiados. Enquanto isso, a autora se tornou a primeira mulher e entrar para a Academia Campinense de Letras (ACL) e a primeira campineira a ser premiada pela Academia Brasileira de Letras (ABL).

Na administração municipal sempre ocupou cargos inseridos no universo próximo às suas atividades de intelectual, como diretora de Cultura da Prefeitura e diretora do Teatro Municipal.

Mas o pano do último ato da bela e longa vida da escritora e poeta só se fechou no último dia 19 de junho, quando faleceu. Tinha 102 anos, cujas muitas vivências transformou em livros não só de prosa, mas também poesias.

Foi filha de fazendeiro de café dos velhos tempos e o que observou entre terreiros e plantações está nas obras que deixou. Quando jovem, tocava piano, todavia, aos poucos, substituiu as "Valsas" e "Noturnos" de Chopin, que gostava de dedilhar, pelo “plec plec” das máquinas de escrever. Felizmente, é claro.

No dia 20 deste junho que finda, manhã fria porém luminosamente bonita, vi a personagem desta crônica ser sepultada, no Cemitério da Saudade. Lá estavam Zezinha, a filha, minha amiga de tantos anos, mais Clirian e Spencer, seus irmãos. E muitos parentes e admiradores.

Quando certas pessoas especiais como foi a escritora e poeta Maria José de Moraes Pupo Nogueira morrem, diziam antigamente, começam a subir. E sobem, e sobem, e sobem... Por fim, se transformam em estrelas.