segunda-feira, 27 de julho de 2015

Ora, direis, ouvir estrelas...



Antonio Contente

Pra mim o céu, não o das religiões, sim o que nos cobre, é visão a permitir o exercício do alcance. Com certeza não sabemos onde termina, ou se termina. Porém, com certeza, começa no lugar de onde o observamos.

Antigamente, sem as tantas informações astronômicas hoje disponíveis, não tínhamos intimidades maiores com as cerúleas circunstâncias. Todavia, apesar, sempre para elas olhávamos; e as noites estreladas ou enluaradas faziam parte das nossas caminhadas em busca do belo.

Bilac, o poeta parnasiano, num dos seus talvez mais famosos sonetos, chegou a ironizar as pessoas que não acreditavam pudéssemos ouvir e entender estrelas. E mesmo quando, ao final do poema, acentuou ser isto dádiva reservada aos apaixonados, certamente contribuiu para que muita gente passasse a olhar para o alto em certas noites.

Falo disso porque neste Correio Popular do último dia 14 de junho li, em excelente reportagem de Luciana Félix, da Agência Anhanguera, que está sendo construído, junto ao Observatório Municipal, em Joaquim Egídio, um “astroteatro”.

Que nada mais será do que um local onde 80 pessoas a cada vez poderão, devidamente deitadas, observar estrelas. Com um astrônomo no meio a explicar. Não, digamos, com o mesmo espírito do poeta acima citado. Porém a falar, sim, de algo fascinante.

Isso, naturalmente, é uma contingência; oferenda do mundo moderno. Uma vez que os astros, ofuscados por causa das luzes das cidades, nelas mal podem ser observados a olho nu. Ou não... Todavia, seguem a aguçar curiosidades.

A primeira reflexão a que o futuro “astroteatro” me remete é que outrora as estrelas apareciam facilmente. E nem vou buscar lembranças dos tempos da meninice, mas uma muito cara daqui mesmo, da Chácara da Barra. Quando o querido chefe André, meu filho, era criança, costumava com ele deitar, em certas noites, num elevadinho de cimento no quintal para apreciar o cintilar dos astros.

Não foram poucas as vezes em que, com eles tão nítidos, conversamos sobre os inúmeros sois que vivem lá em cima. Num velho gravador de fitas alimentado a pilhas, se o luar também se abria, invariavelmente nos entregávamos ao infinito ouvindo Clair de Lune, de Debussy. Fica a sugestão para a música de fundo das aulas que serão ministradas no Observatório das Cabras.

E foi depois de ter lido a matéria da colega Luciana que passei a indagar, aqui e ali, entre meus amigos, quais ainda buscam ver estrelas. Fiquei surpreso. O empresário Pedro Porto, por exemplo, dono de verdejante fazenda nas brenhas do município de Mococa, me contou que é enorme a nitidez com que os astros aparecem no céu de lá. E mesmo com parcos conhecimentos de astronomia, fez mapa deles.

Como percebeu certa incredulidade no meu olhar, chamou-me para um uisquinho na sua linda mansão campineira e, de repente, quando eu menos esperava, abriu diante dos meus espantados olhos vários mapas das instâncias celestes desenhados de próprio punho por ele.

“Esta aqui — me disse, mostrando uma das cartas — é a Constelação de Orion, nosso céu mocoquense no Verão.” Na continuação exibiu Leão, do Outono; Escorpião, do Inverno; e, Pegasus, da Primavera. Saí de lá convencido que o Observatório Municipal está perdendo um ótimo professor para se revezar com o efetivo no futuro “astroteatro”. Com a vantagem de que, por não precisar de ganho extra, dará aulas de graça...

Mas a surpresa maior estava reservada para a manhã de sábado quando fui à casa do professor Borges, encravada num silencioso recanto de Barão Geraldo. Minha intenção era pedir que me deixasse estar em seu quintal numa noite qualquer para olhar o céu limpo que sempre faz por lá. Só que, quando cheguei à enorme residência, percebi, logo na entrada, muitas pessoas a se movimentar pra cá e pra lá.

Borges, porém, tratou de explicar que se tratava apenas dos preparativos para o casamento de um dos seus filhos que ocorreria ali mesmo, com festança e tudo, no dia seguinte. Arrastou-me para a biblioteca e logo disse que nem era muito favorável ao enlace, pois tanto o noivo como a noiva trafegam por parcos 18 anos. Todavia, retirando foto de uma gaveta mostra, dizendo:

— Mas veja aqui, esta é a moça por quem meu filho se apaixonou. Não dava mesmo para resistir, certo?

Concordei logo porque, de fato, a criatura não poderia ser mais linda. E vendo que o instante não era propício para pedir o quintal a fim de fazer observações astronômicas, levantei para sair. Mas antes, já junto da porta, perguntei o nome da futura nora do amigo.

— Estrela — ele respondeu — Estrela Krüll, filha do alemão lá da rua de cima.

Contive o susto, pálido de espanto como o personagem do soneto de Bilac. Na rua segui em frente, recitando cada verso. Que sei de cor.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

A lembrança de J. Toledo


Em setembro vai fazer oito anos que o amigo Jota Toledo morreu. Lembrei dele hoje de manhã, lembro sempre, todas as manhãs em que tomo café em casa. O motivo é a história que segue abaixo, real, vivida, como diria Caetano, “na minha ‘adolescidade’, idade de pedra e paz”.

Foi numa daquelas noites regadas a uísque, cerveja e alguns queijos, na Maison Toledo, lá em Sousas, que tudo aconteceu. Jotinha ou J. Toledo como ele assinava suas obras, comandava os colóquios linguísticos ou, como gostava de dizer, as “tertúlias” que varavam a madrugada e terminavam quando o sol já dava suas caras lá pelas bandas da Rodovia Heitor Penteado.

Éramos uns cinco ou seis notívagos, provavelmente numa noite de sábado, a favorita de Jota para reunir amigos, falando de tudo e de todos, metendo a boca no governo – qualquer governo – elogiando alguns artistas e girando a tábua de queijos que Diane preparava.

Lá pelas quatro da manhã, Jota resolveu tomar café. Ele gostava de contrastar o gosto do uísque com um café quase sem açúcar. Eu achava estranho, mas não é que outros amigos acompanhavam-no nessa, pra mim, exótica aventura etílico-gastronômica?

Como só eu não quis café, foram distribuídas umas quatro ou cinco xícaras pela mesinha de centro, mas descobriu-se, em seguida, que não havia colherinhas. Jota virou-se para mim e pediu:

- Ed, como você não vai tomar café, desce lá na sala, tem uma cristaleira e, na gaveta de baixo, você abre e encontrará colherinhas de café. Pega umas lá pra gente. Aproveita e traz uma bandeja que está em cima da mesa.

E lá fui eu, descendo a estreita escada com muito cuidado, para que o efeito do álcool não vencesse a disputa entre minhas pernas e os degraus. Abri a gaveta e peguei um punhado de colherinhas. A bandeja na mesa era mais pesada do que eu pensava e para evitar qualquer problema, pus as colherinhas no bolso do paletó que usava, que, aliás, fora presenteado pelo próprio Jota. Subi com mais cuidado ainda, botei a bandeja na mesinha de centro e distribuí as colherinhas.

E a noite prosseguiu até chegar a manhã e todos irmos embora, sob os protestos do Jota que bem ficaria mais algumas horas papeando. “Vai todo mundo embora? É um complô?”, sempre dizia ele diante da debandada sonolenta da turma.

Uns três anos depois, com todos seus amigos já sofrendo a perda do Jota, que decidiu não sofrer mais por conta de uma terrível doença, peguei o paletó no guarda roupa para doá-lo, pois eu havia engordado e não me servia mais. Aliás, foi esse o motivo também do Jota ter me dado o dito cujo. Era de um tecido meio acamurçado, verde escuro, bonito, mas, depois daquela noite, nunca mais o usei. Ao dobrar para colocá-lo num saco plástico, caiu, de um dos bolsos, uma colherinha, igual às outras que eu havia pegado na gaveta da cristaleira. Ela havia sobrado e eu não percebera. É uma colherinha de prata, provavelmente de algum faqueiro elegante já com suas peças dispersas. 

Jota tinha morrido há pouco tempo e eu fiquei olhando pra colherinha e lembrando da noite do café e de todas as noites que passamos naquele enorme sótão que ele transformou em estúdio ou nas noitadas em bares diversos, desde a Barão Velha do Centro à  Adega Florence na Vila Nova, do Alfredo’s do Cambuí à Adega dos Arcos do Passarinho no balão do Centro de Convivência, do Água Furtada ao 88 na Vila, do City Bar ao Paulistinha, do Clube XV ao Bati Papo e muito outros que vimos nascer e morrer, em intermináveis noitadas por essas Campinas. Foi difícil conter algumas lágrimas. 

A colherinha, a única de prata que tenho, tem me acompanhado em todos os cafés da manhã que preparo em casa desde que ela caiu do bolso do paletó. É lavada com todo carinho e volta para a gaveta das colheres.

A querida Diane que me perdoe, mas jamais a devolverei. 

terça-feira, 21 de julho de 2015

Estamos de volta!

(Antonio Contente e eu decidimos retomar esse blog só de crônicas que havíamos deixado sem postagem há quase um ano. E recomeçamos com uma crônica do jornalista nascido no Pará, publicada recentemente no Correio Popular, onde ele faz bela homenagem a uma grande escritora.  Ah, o blog continua aberto a quem quiser publicar crônicas.)



A Escritora

Antonio Contente

Uma coisa absolutamente óbvia, porém pouco observada, é que o todo de nossas existências é formado por pequenas vidas que nos envolvem. Acho que seria certo dizer que da maternidade ao final, somos personagens de um grande painel feito de acontecimentos autônomos a formatar a história completa.

Quem já não se descobriu a fazer comentário como esse: “Ah, experimentei bela emoção; valeu por uma vida”. Meus primeiros tempos de Campinas, por exemplo, começaram quando eu mal entrara na casa dos 20 anos. E hoje, tantos anos passados, vejo que foi algo com princípio meio e fim; embora o derradeiro, o geral fechar de cortinas ainda não tenha chegado.

Dos iniciais tempos campineiros, o que lembro? Muitas coisas. Emocionantes algumas, ternas outras, terceiras nem tanto, porém todas pintadas de forma que vale a pena recordar. Uma das mais marcantes, certamente, foi ter conhecido a escritora.

Ocorreu assim: como eu era amigo de sua filha, de vez em quando aparecia pro cafezinho num simpático sobrado na Rua Guilherme da Silva, Cambuí. Certa manhã, sentado na sala, escutei um “plec, plec, plec” a bater; reconheci imediatamente que se tratava de máquina de datilografia com as quais, como estudante de jornalismo na Cásper Líbero, começava a ter intimidades. Perguntei à amiga quem é que batucava. “Minha mãe”, ela respondeu. “E escreve o quê?”, segui, curioso. “Um livro”, foi a resposta. “Livro?” Levantei as sobrancelhas. “Romance”, fechou a informação.

Daí em diante ouvindo o “plec plec” sempre que aparecia para visitas, soube que a escritora todos os dias, às cinco da manhã, já estava na sua maquininha. Daí seguia com os dedos nas teclas até pouco antes do almoço; uma vez que, após o meio-dia, precisava sair para cumprir atividade como funcionária pública. Minha curiosidade sobre o que redigia foi natural. Todavia, mesmo tendo visto de perto várias vezes a autora, certamente tolhido pela diferença de idades que antigamente tinha certa força, nunca perguntei nada. Só a olhava, com secreta admiração.

Depois desse período de mais ou menos um ano a frequentar Campinas, cidade pela qual me apaixonei, tendo terminado o curso de jornalismo em São Paulo precisei começar a batalhar.

Primeiro andei pelo Rio, depois tornei à Capital paulista e os anos foram correndo. Um dia eu estava fora do país a trabalho quando recebo um pacote, pelo Correio. Era um livro, com o seguinte bilhete: “Aí segue o resultado do ‘plec plec plec’ que você ouvia em minha casa, em 1959”. Quem assinava era a minha amiga, filha da escritora. Assim foi que, sofregamente, li o romance Natal Solitário, esplêndido, história emocionante, maravilhosa; aliás, premiado pela Academia Brasileira de Letras.

Mais algum tempo e volto a frequentar Campinas; a casa da amiga, agora, era um enorme apartamento. Em certa manhã, lá escuto outra vez o “plec plec plec”. A informação veio em cima, antes mesmo que eu perguntasse: “É, minha mãe já está batucando outro”. E ainda mais adiante no tempo, agora novamente numa grande casa, o barulhinho da máquina de datilografar acabou sendo a canção que ouvia curioso e atento, em dias de visita.

Assim, de “plec plec” em “plec plec”, saíram vários romances, além do que cito acima. Lembro neste instante de pelo menos mais três: "Céu Escuro", "Ana e O Órfão" e a "Mulata", todos ótimos, premiados. Enquanto isso, a autora se tornou a primeira mulher e entrar para a Academia Campinense de Letras (ACL) e a primeira campineira a ser premiada pela Academia Brasileira de Letras (ABL).

Na administração municipal sempre ocupou cargos inseridos no universo próximo às suas atividades de intelectual, como diretora de Cultura da Prefeitura e diretora do Teatro Municipal.

Mas o pano do último ato da bela e longa vida da escritora e poeta só se fechou no último dia 19 de junho, quando faleceu. Tinha 102 anos, cujas muitas vivências transformou em livros não só de prosa, mas também poesias.

Foi filha de fazendeiro de café dos velhos tempos e o que observou entre terreiros e plantações está nas obras que deixou. Quando jovem, tocava piano, todavia, aos poucos, substituiu as "Valsas" e "Noturnos" de Chopin, que gostava de dedilhar, pelo “plec plec” das máquinas de escrever. Felizmente, é claro.

No dia 20 deste junho que finda, manhã fria porém luminosamente bonita, vi a personagem desta crônica ser sepultada, no Cemitério da Saudade. Lá estavam Zezinha, a filha, minha amiga de tantos anos, mais Clirian e Spencer, seus irmãos. E muitos parentes e admiradores.

Quando certas pessoas especiais como foi a escritora e poeta Maria José de Moraes Pupo Nogueira morrem, diziam antigamente, começam a subir. E sobem, e sobem, e sobem... Por fim, se transformam em estrelas.