domingo, 29 de maio de 2016

O italiano que mudou de rumo

A bucólica Mocajuba, na Amazônia profunda: à beira do gigante Tocantins
Antônio Contente 

Quando os pães chegavam à mesa, explodiam luminosidades de festa. Vinham num cesto de vime, eram pouco mais compridos que o pãozinho francês de hoje, sem lanhos na casca, lisa, pontuda nas extremidades com pequenos queimadinhos que remetiam ao crocante. O êxtase de mastigar aquilo, com a manteiga a derreter sobre a massa, só depois que cresci me levou à curiosidade de querer saber quem era Capella. Nada mais que o padeiro que operava a alquimia da maravilha na pequena padaria dentro da própria casa em que morava, no alto da ladeira sobre o rio Tocantins em Mocajuba, mínima cidadezinha paraense na Amazônia profunda, cercada pela floresta.

Outra curiosidade que o homem me despertou, foi o fato de ter vindo da Itália para uma vila de uns 1.000 habitantes; apenas três ruas paralelas à margem do curso d’água e quatro ou cinco transversais. Afinal, de estrangeiros o local abrigava somente portugueses, como no Pará inteiro, mais uma ordem de padres holandeses que usavam batinas brancas. E acabou sendo fatal quando, por ter ido estudar na capital e só voltando à Mocajuba nas férias, acabei tendo forte curiosidade em saber como aquele único italiano fora parar ali, tão longe dos ruídos do mundo.

Na primeira vez que o vi de perto me espantei com seu tamanho, enorme, nunca menos de 1,90. Jamais tentei falar-lhe porque, nos tempos d’outrora, jovens não tinham muito acesso aos mais velhos. Mas fui captando informações. Como a de que dona Maria, a esposa, muito branca e ainda bonita na idade madura, era filha de um comerciante português rico que possuía seringais na outra margem do rio imenso. E nada mais, além de me deliciar com o fantástico “pão do Capella”. Que continuei a prazerosamente consumir nas minhas cada vez mais espaçadas idas à cidadezinha.

Até que um dia, quase final dos anos 50 quando faltava pouco para vir fazer o Curso de Jornalismo em São Paulo, consegui conversar rapidamente com o magnífico padeiro. A pergunta fundamental, de como ele fora parar em Mocajuba, contudo, não fiz. Fiquei, porém, sabendo que nascera em Cortona, na Toscana, e que chegara ao Brasil nos primeiros anos do século passado.

Como se isso fosse um filme, façamos um corte, comigo, no final dos anos 60 trabalhando no jornal O Globo, no Rio. Onde recebi a incumbência de ir fazer matéria em Florença, na Itália. Lá chegando, ao levantar dados para a reportagem, fui informado que certos documentos de que precisava estavam com um professor residente em Cortona, no interior da Toscana. “Santos Deus – pensei imediatamente – é a terra de Capella, o padeiro de Mocajuba”.

Assim foi que, numa doceria na cidadezinha que devia ter menos de 10.000 habitantes então, avistei uns potes de compotas. Falei para a vendedora que levaria para um nativo local que vivia no Brasil e ela me disse: “Então prefira esta, que tem sabor da ‘Riccianelli’, um dos doces mais tradicionais da Toscana”. Comprei.

Na verdade aquele petisco guardado na minha mala passou a ter quase tanta importância quanto a reportagem que fora fazer. De volta, entrando em férias no mês seguinte, tomei o rumo de Mocajuba aonde já não ia há muitos anos.

Desci do navio-gaiola e avistei, sob os galhos das mangueiras centenárias, a casa de Capella. Parti direto para lá, onde fui atendido por uma senhora bastante idosa, na qual reconheci a dona Maria dos velhos tempos. No que lhe disse, pegando o vidro com a compota, o que me levara ali, ela respondeu, chorando, que o marido morrera meses antes.

Mas, durante o cafezinho, pude, finalmente, perguntar como é que Capella, num Estado brasileiro onde a colônia italiana era pequena, foi parar no lugarejo perdido no meio da selva. E ela me contou.
Na verdade o imigrante Giancarlo Capella, nos primeiros anos do século XX, buscava São Paulo. Por conveniências de embarque resolveu pegar o navio em Lisboa onde um português, que também emigrava, perguntou se ele não queria conhecer antes a floresta amazônica, a partir de Belém do Pará. O italiano topou, pretendendo, depois, seguir para a cidade de Santos.

Desta forma acabou indo à Mocajuba, levado pelo luso que fora chamado por parentes que lá trabalhavam com borracha e cacau. Rodou por ali uns dias e, na véspera de regressar à Belém para tomar o rumo de São Paulo, conheceu linda mocinha chamada Maria, filha de próspero seringalista luso. Houve encanto mútuo.

Nesta instante da narrativa a viúva de Capella me pediu para esperar, queria me mostrar algo. Voltou com uma foto dela, meio amarelecida pelo tempo. Ao me entregar, murmurou: “Quando casamos meu marido fez esta fotografia, que os padres holandeses da nossa paróquia revelaram”. Olhei e vi uma jovem fantasticamente bonita, deslumbrante. Torno a mirar dona Maria, ao vivo, e percebo que seus olhos mantinham brilho profundo. Claros, diamantes; e azuis, maravilhosamente azuis como dois pingos daquele céu de julho no verão amazônico, que nos cobria. Capella não poderia mesmo, depois de conhecê-la, ir para nenhum outro lugar... Tiveram doze filhos.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Valeu, Doca!

Doca Furtado está indo embora para Aracaju (SE). Vai abrir um boteco próprio por lá, na beira da praia e, tenho certeza, quando bater um banzo, vai pegar o violão e encher de prazer os fregueses. Ouvimos muito o Doca aqui em Campinas. Zezé e eu tínhamos um programa quase sagrado aos domingos dos primeiros anos deste século: almoçar no Deck em Sousas, boteco dirigido pelo amigo Elder Muzetti, onde Doca fazia a tarde fluir cheia de música da boa. Eu tinha uma coluna semanal na revista do Correio, o Farol, e citei Doca várias vezes. A croniqueta que segue abaixo é uma delas, que republico aqui em homenagem a esse formidável músico que parte agora para um novo projeto de vida que, com certeza, lhe trará as mesmas alegrias e prazeres que ele teve e nos ofereceu por essas Campinas. Valeu, Doca!

Domingos musicais


Tem sido gratificante ouvir, tomando um belo chope da Brahma, o cantor Doca Furtado no Deck lá em Sousas. Ele canta aos domingos à tarde e seu horário varia. E varia não por vontade do Elder, zeloso proprietário da casa, mas porque Doca é um artista irrequieto. Parece que para ele cantar é seu jeito de estar no mundo em companhia de seu violão, que harmoniza seu canto e dita seu ritmo. Vai daí que ele chega antes da hora e termina, invariavelmente, muito tempo depois do combinado. O que, convenhamos, é bom para nós, frequentadores do boteco, bom para o Elder, que vê todo mundo pedindo mais um chope ou mais uma cerveja para apreciar as diversas saideiras que Doca emenda, e, tenho certeza, bom para o próprio Doca, cuja felicidade se percebe não só nos aplausos que recebe, mas no próprio prazer de cantar.

Doca é um cantor de bar por excelência, o que não significa que não possa se dar bem num palco com um grupo. Com uma memória prodigiosa, não usa aquele recurso de muitos cantores, que é um caderno com as letras das músicas. Ele, quando não sabe cantar um pedido feito (o que é raro) não se envergonha de dizer “essa eu não faço, é linda, mas eu ainda não aprendi”.

Seu violão é sua outra parte musical: sem olhar para a mão esquerda, encontra todas as posições como se tivesse nascido fazendo aquilo, deixando a impressão para todos que basta colocar alguns dedos sobre as cordas que as posições se completam sozinhas. Já a mão direita é daquelas que fazem o ritmo parecer natural, pois ele flui fácil, quer repercussivo quer dedilhado. Seu repertório é mesclado com sucessos de bar, inevitáveis nessas horas, e músicas quase desconhecidas, mas ótimas, que ele encontra perdidas em discos de Alceu Valença, Belchior, Milton Nascimento, Zeca Baleiro, Jackson do Pandeiro, Gilberto Gil e muitos outros, incluindo aí grandes sambas. Além disso, ele envereda por algumas emboladas que encantam pela rapidez dos versos, pela simplicidade das letras e pela empolgação do ritmo.

Como se trata de um cantor que mistura a técnica e o instinto, o improviso se faz presente e não são poucas as músicas que entram por um caminho diferente, um arranjo porreta tirado na hora, um final esticado ou um novo verso criado por ali mesmo.

Doca não gosta de cantar sozinho. É o que se percebe quando ele, logo do início dos “trabalhos” pergunta por Carlão, seu amigo e percussionista dos bons que adora dar uma canja no Deck. Domingo passado, como Carlão demorasse a chegar, implorou a Elder que, num raro momento, pegou um padeiro e fez o som do Doca ficar mais encorpado. Mas logo Carlão chegou, tomou uma e partiu para o batuque, no que foi coadjuvado por ninguém menos que Ding Dong, que também deu as caras por lá, fazendo a tarde domingueira muito mais prazerosa.

Durante a Copa, Elder vai botar um telão no Deck. Domingo que vem o Brasil joga às 13h. Depois do jogo, tem, claro, Doca Furtado, que vai ficar torcendo não só pela seleção, mas também para o jogo passar depressa que ele quer mais é cantar. 

domingo, 1 de maio de 2016

Da arte de fazer cerveja



Antônio Contente

Hoje as chamadas cervejas artesanais tomam conta das prateleiras dos grandes supermercados, mas nem sempre foi assim. O que não quer dizer que, no passado, elas não existissem. Existiam sim, porém feitas por poucas pessoas. Algumas, até, obrando apenas para consumo próprio; ou para degustar com amigos.

Assim foi que, num dos meus aniversários, no século passado, uma amiga chegou ao apartamento onde eu então morava, no Cambuí, trazendo vários pacotes. Ante meu natural espanto, disse logo que se tratava de presente pelo natalício.

— E o que você está me dando — perguntei — um ultraleve desmontado?

Ao mesmo tempo que depositava as coisas na copa, respondeu com um “você sempre soube que eu gosto de dar presentes práticos”. E após, a me olhar nos óculos:

— Como com essa crise que está aí pode faltar até cerveja, e sei o quanto você adora uma bem gelada, vou te ajudar a não ter problemas.

— Ótimo — coço a cabeça — mas, pelo formato dos pacotes que você trouxe, não se trata de garrafas.

— O problema — ela me encara com seu inegável encanto — é que não estou lhe dando um peixe frito.

— Não? — Levanto as sobrancelhas.

— Não, querido, eu estou te ensinando a pescar.

— Ora... — Eu tateava, meio em dúvida.

— Pois é – ela abre os braços — aí você tem uma mini-fábrica de cervejas. A partir de agora, você poderá fabricá-las aqui, na sua casa.

— Poderei? — Levo as duas mãos ao próprio peito.

— Claro — ela garante — até porque é facílimo.

— Mas e os ingredientes? — Indago — Onde vou achar os ingredientes?

— Ali — ela aponta para dois dos pacotes. Em seguida, enumera: — Te trouxe malte, lúpulo, fubá de milho, açúcar, fermento cervejeiro e o gritz...

— O quê?

— Gritz — ela repete — mas não se impressione que é moleza manipular essas coisas. Exatamente como fazer uma limonada...

— Bem — volto a coçar a cabeça — não tenho, quanto às minhas habilidades, a mesma confiança que, a respeito delas, você demonstra ter.

— Então preste atenção que vou lhe dar uma aula, a partir da receita básica da cerveja escura, que a que você mais gosta.
Dito isto, desembrulhou um belo balde de metal, explicando:

— Vinte horas antes de começar o preparo, você ferverá, aqui, 20 litros d’água, filtrada, por 15 minutos. Quando terminar, faça a aeração.

— Aera... O que?

— Aeração. Passe o líquido de um recipiente para outro, várias vezes; a fim de que o oxigênio volte à H2O.

— Bom, parece fácil — admito.

— Claro — ela concorda — daí você coloca o lúpulo de molho em água durante uma hora.

— E o malte? – Arrisco, já com ares de entendido.

— Muito bem — ela aplaude — você lava o malte em uma peneira, como se lava arroz.

— E então está tudo pronto? — Meus pobres olhos se iluminam.

— Não — a linda amiga sorri — agora você bate o malte no liquidificador até formar uma pasta. Enquanto isso, numa panela, você coloca seis litros d’água, o malte triturado, o gritz e duas colheres de sopa de farinha de trigo.
Nesse ponto, mesmo percebendo que o negócio se complicava, continuei atento. A lição continua:

— Agora você pega aquilo ali, que é o termômetro-cervejeiro, para chegar à brasagem.

— A o que?

— À brasagem, que dará o mosto.

A aula ainda durou um bom tempo e bem depois, ao ficar sozinho, me encontrava não apenas cansado, porém quase exangue. Contudo, como a criatura que me dera o presente era, de fato, muito especial, arregacei as mangas e coloquei mãos à obra. Em pouco tempo minha copa e cozinha estavam transformadas num verdadeiro chiqueiro e, desesperado, quase chego a gritar.

Por fim, transtornado, liguei para a faxineira, contratei hora extra prometendo pagar em dobro, e, assim que ela chegou, eu saí. Direto para uma loja de importados, onde comprei uma caixa de cerveja irlandesa Guinness. Depois, com a casa limpa fiquei quieto no meu canto e, uma semana depois, chamei a amiga para experimentar minha grande obra cervejeira. Assim que ela provou o que servi de uma bela jarra de vidro, seus olhos brilharam e veio a exclamação:

— Meu Deus, você é um gênio. Isso está melhor do que a melhor cerveja europeia.

Poucos dias depois saiu uma bolsa de estudos que minha doce amiga esperava fazia dois meses, e ela viajou pra Londres. Naqueles velhos tempos, pré-internet, ainda se usava remeter cartões postais. Recebi um dela, passadas duas semanas, dizendo assim: “Ontem, após as aulas aqui, saí com amigos e tomei uma bela Guinness. Não sei por que, mas lembrei de você. Até hoje, como casou com um britânico e não voltou mais pra Campinas, ainda desconfio que, de fato, ela sempre sacou o que havia na jarra que usei para servi-la...