quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Ágata

                           
Antonio Contente

Ágata me contou que veio para esta cidadezinha da Ilha do Marajó faz algumas semanas, e que ainda vai ficar alguns meses. Ela trabalha numa repartição do governo que tem escritório aqui, e está cobrindo o período de licença de uma colega. Despacha pequenos papéis, carimba coisinhas, tudo numa sala apertada, numa casa de madeira com telhado de zinco, próxima à praça principal que é o centro da movimentação dos que vivem na área. Ocupa uma mesa baixa, com ventilador de teto sempre a girar. Talvez você já tenha visto cena semelhante em velhos filmes americanos que contavam histórias passadas nas Ilhas dos Mares do Sul.

Ágata aparenta 50, diz que tem 40, porém talvez ande pelos 47. O clima meio áspero quase na linha do Equador certamente não fez nenhum bem à sua beleza, contudo não a devastou totalmente. Os olhos de Ágata, pôr exemplo, são absolutamente luminosos. E quando sorri, mostrando dentes surpreendentemente alvos, exibe duas covinhas bastante charmosas nas bochechas.

– Na realidade – ela me disse – a solidão aqui na ilha não pesa o tempo todo. Agora, no fim da tarde, começo da noite, sai de baixo...

Foi neste ponto que ela acabou detalhando a parte que achei mais pungente da sua vida recente. A repartição a mandou para cá sem alternativas, e não lhe deu nada além das passagens em um barco atulhado. Nos primeiros dias ela ficou num quarto que alugou na casa de uma senhora nativa. Quartos, afinal, sempre se alugam de “uma senhora”.

– Mas era muito quente – Ágata suspira – e com verdadeiras nuvens de carapanãs.

– E o que você fez?

– Arranjei uma casinha. É de fundos, perto do mercado, porém tenho a companhia da dona do imóvel, na frente.

– E os carapanãs?

– Comprei um ventiladorzinho. Você sabia que qualquer ventinho espanta os mosquitos?

– E a sua família, Ágata?

– Mora em Belém.

– Marido? Filhos?

– Não. Mãe, irmãs...

– Bom, enfrentar essa barra mais alguns meses não vai ser nada mole, não é?

– Não vai. Principalmente depois que eu pensei ter achado um meio de driblar a solidão.

Lembrou então que, não muito tempo depois de ter chegado à ilha, apareceu na repartição alguém que ela considerou “um moço muito simpático”. Mais novo do que ela, é certo, porém bem falante, comunicativo, alegre.

– Todo dia de tarde vinha me buscar. Comíamos alguma coisa perto do mercado, e íamos assistir à novela das oito na farmácia.

– E depois?

– Passeávamos na praia.

– E depois?

– Foi o melhor tempo na casinha de fundos que aluguei. Aposentei a rede de solteira, comprei uma grande, com varanda, de casal.

– Bom –observo – como você acentuou que “foi”, só posso dizer que lamento que nada tivesse dado certo.

– Pois é, um dia ele chegou pra mim e pediu que lhe trocasse um cheque. Sabe o que eu fiz?

– Trocou.

– Não, eu disse que não precisava. Se ele necessitava de algum dinheiro eu emprestava, não precisava nenhum cheque.

– E ele? Aceitou?

– Não. Fez questão de me dar o tal cheque. Era uma sexta-feira, disse que ia a Belém resolver uns troços e que na segunda voltaria.

– Lamento que não tenha voltado.

– E eu muito mais. Na segunda, quando sai da repartição fui para a casinha, não consegui dormir.

Ficou acordada a noite toda?

– Não, peguei a rede e fui para o meu local de trabalho, tenho a chave de lá.

Nessa altura do papo eu estava com uma pergunta engatilhada; sobre o cheque, naturalmente. Talvez me preparando para fazê-la busquei uma frase óbvia de consolo:

– Ora, vai ver que ele ainda aparecerá. Depois, se te deu um cheque sem fundos...

– Pois aí é que está – Ágata corta e me olha nos óculos.

– O que? –Levanto as sobrancelhas.

– Também pensei que o cheque não tivesse fundo, quase não fui recebê-lo na única agência de banco que tem aqui, ali na pracinha. Tinha fundos, sim.

– Ora, menos mal – dou um sorriso.

– Poderia ser – ela suspira – só que eu nem fazia questão dos vinte reais. O que eu queria, te juro por Nossa Senhora de Nazaré, é que ele voltasse...

domingo, 6 de janeiro de 2013

Dezessete anos


Edmilson Siqueira

Hoje, 6 de janeiro, está fazendo 17 anos que Zezé e eu nos conhecemos. Era um sábado chuvoso como esse domingo, como foi ontem e como é o verão de modo geral desse lado debaixo do Equador.  Eu morava na Guilherme da Silva, num apartamento cujo maior atrativo era estar a uns 500 metros do City Bar. Com a vantagem de que para ir até lá era uma subidinha pela Júlio Mesquita e para voltar era descida só. Acho que alguns leitores desse blog sabem da importância desse aspecto geográfico.

A sexta-feira anterior tinha sido calma – devo ter ficado com alguns amigos no City até por volta da uma ou duas da manhã e descido pra casa. Ou chegado mais cedo, alugado um filme numa das três locadoras que funcionavam a menos de 100 metros do apê, para assistir antes de dormir. Sinceramente não me lembro.

Mas me lembro que cheguei no boteco por volta das 11 da manhã, dei um passeio, antes, pela feirinha de artesanato, não comprei nada, claro, e me aboletei numa mesa para a primeira cerveja. Tadeu já estava lá, como sempre. A mesa, me lembro muito bem, era a 10, a chamada “da Diretoria” (por causa da fundação da City Banda que cometemos nela) que nem sei se ainda guarda esse número, pois à época o City tinha apenas dez mesas, ainda não existia o largo em frente que triplicou o número de mesas do bar.

Como disse, chovia e nada revelava que dali a alguns instantes, dois seres completamente diferentes (bem, nem tanto) iriam se conhecer e passar a escrever suas histórias a quatro mãos. A chuva dava tréguas, saía o sol e, todas as vezes em que ameacei ir embora, ela voltava e me impedia de sair (não era bem assim, eu só falava em ir embora quando estava chovendo, mas tudo bem). Almoço foi um sanduíche – o José ainda não tinha se esmerado nas bacalhoadas da vida – feito ainda pelo grande Nilson e a mesa, que começou só com Tadeu e eu, ali pelas duas das tarde já não comportava mais as outras cinco ou seis pessoas que chegaram e se sentiram em casa. Já eram duas ou três mesas juntadas, sobre as quais bailavam garrafas de Brahmas e pratinhos de sanduíches.

Já era tardinha, tipo quatro da tarde, quando Zezé chegou, a pé, pela General Osório. Eu não vi, pois estava de costas para a rua, mas Tadeu, sentado à minha frente, viu e convidou-a pra sentar ao seu lado, claro, pois eram velhos amigos.

Papo vai papo vem, descobri que ela era professora de inglês, tinha morado um ano em Londres, morava sozinha num apartamento próprio perto do Mercadão, tinha 39 anos e ganhava mil e duzentos reais por mês. 

De mim ela soube que estava com 45 anos, era jornalista, trabalhava na Sanasa, ganhava um pouco mais que ela, já tinha sido casado e tinha uma filha que iria fazer 14 anos dali quatro meses que morava com a mãe. 

A mãe da minha filha, por incrível que pareça, causou o primeiro interesse da Zezé em mim. É que, no papo que rolou, acabei falando dela e falei bem, mesmo porque não havia motivo pra falar mal. Zezé achou interessante um ex-marido que não amaldiçoa a ex-mulher.

Eu também me interessei por ela e quando a noite chegou, já éramos velhos conhecidos descobrindo que tinham muitas coisas em comum. Por exemplo: ajudamos a fundar a Tomá na Banda no Bar do Zincão (eu tenho as atas da fundação e nossas assinaturas estão próximas, o que quer dizer que estávamos quase na mesma, comendo a feijoada “beneficente”) e apesar da proximidade – nessa e em outras ocasiões que fomos descobrindo depois – nunca nos conhecemos.

Ali pela meia-noite resolvemos ir embora. A chuva era só uma garoa, mas eu me prontifiquei a dar carona pra ela. Detalhe: eu não tinha carro. Acabamos descendo a Júlio de Mesquita a pé até meu apartamento e o resto é essa história que hoje faz 17 anos. E está pronta para outros 17 ou quantos essa vida louca – cada vez menos louca com o correr do tempo – nos deixar viver.