segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Réveillon numa vitrine azul


Antônio Contente

Sempre, em qualquer coisa que se faça ou que nos cerca, dorme a possibilidade de uma história. O simples tropeçar numa pedra, por exemplo, pode render romance de muitas páginas; bastando, para isso, que, após a topada, se caia sobre uma linda mulher. Assim foi que, naquela manhã na rua Augusta, em São Paulo, Claudinha fazia hora para almoçar, parando diante de algumas bem arrumadas vitrines. De repente, numa delas, o que chamou sua atenção foi o azul a preponderar na decoração. Tratava-se de famosa joalheria onde, num dos escaninhos por trás do vidro, repousava, sobre pequeno tufo de cetim cor do céu, um lindo colar. Absolutamente encantada ela cravou o olhar sobre a joia e, quase em transe, permanecia como que hipnotizada pela peça, onde cintilavam algumas pedras, prováveis diamantes. Então escutou, como se viesse do infinito, a voz de homem, a dizer:

— É seu.

Como se acordasse de transe a moça, lindíssima no esplendor de seus vinte anos, olha para trás onde estava um senhor elegantíssimo, de terno, cabelos grisalhos nas têmporas. Cinquentão.

— É seu — ele repete, com um meio sorriso de Rhett Butler, aquele de ...E O Vento Levou, no canto dos lábios.

Recomposta, Claudinha pergunta, com luminosos olhos de verdor intenso:

— O que é meu?

— O colar, naturalmente. Você não o estava admirando? — aponta — Pois é seu.

— Ora, eu...

— Por favor, não diga nada — o coroa levanta as mãos — sejamos objetivos.

Daí murmurou, com voz calma e pausada, que, como o Natal havia passado, mas ainda estavam no dia 28, gostaria de oferecer a ela, como presente de Ano-Novo, a linda joia que luzia na vitrine azul.

— E você quer fazer isso por que? — Havia certo tom de desafio na voz da moça.

— Por causa dos seus lindos olhos verdes. Exatamente iguais aos da minha filha que, por estar morando na Inglaterra, não passará o Réveillon comigo.

Então aponta a entrada da joalheria e Claudinha, como que hipnotizada, vai com ele. Para, logo depois, ter colocado no seu colo, pelo vendedor, diante de um espelho de cristal, o colar. Em seguida acondicionado numa finíssima caixinha devidamente embrulhada para presente. Saindo, a jovem fala ao presenteador:

— Mas eu nem sei o que dizer. Isso parece coisa de conto da Carochinha.

Sempre com o sorrisinho de canto de lábios, ele enfia a mão no bolso do terno finíssimo, certamente feito sob medida, retira e entrega um cartão. No qual estava somente um nome, “doutor Porto”; e um número de telefone. Nada mais.

— Feliz Ano-Novo — ele estica a mão.

Foi embora, deixando a moça ali de pé, estática, como se estivesse em transe.

Pois bem, tal história Claudinha, hoje uma senhora com mais de 70 anos, me contou tarde dessas quando a encontrei num café, no Cambuí. Naturalmente achei o caso incrível, tanto que pedi detalhes.

— Pois é — ela então seguiu — na época, anos 50, eu era estudante em São Paulo e dividia apartamento com uma colega.

Detalha que ao chegar em casa, excitadíssima, contou para a amiga o que acabara de ocorrer. Ouviu então o conselho, sem meias palavras:

— Ora, pelo amor de Deus, o que você tem mais que fazer é ligar pro homem. Sabe-se lá se não é um dos donos das Indústrias Reunidas F. Matarazzo...

Feito o telefonema, ela recebeu convite para passar o Réveillon na festa que, todos os anos, ocorria num dos mais luxuosos hotéis de São Paulo. Marcaram encontro na porta e, quando o fulano, elegantíssimo, chegou, lá estava Claudinha, até meio trêmula, tendo, no pescoço, a reluzir, o belo colar que ganhara. Nesse ponto eu interrompo com um “pelo visto foi uma história com final feliz, não é mesmo”? Ao que ela respondeu: “Bom, depende”.

Detalhou então que o Réveillon foi maravilhoso, com muito champanhe, o que costuma levar às maiores loucuras. Porém a surpresa maior ocorreu ao despertar, manhã alta, num dos apartamentos do hotel. É que o cinquentão de têmporas grisalhas, simplesmente, havia sumido, não estava mais lá.

— Bom — eu dou um suspiro — mesmo assim as coisas não terminaram mal.

— Sim, não terminaram mal; porém o colar, que o galã pedira que eu fosse à festa usando, foi embora junto com ele...

Ali no café do Cambuí, eletrizado com o que ouvira, eu não sabia o que dizer. Até que Claudinha, afinal, suspirou:

— Olhe, da joia não senti falta nenhuma; afinal, não significava mesmo nada. O que, até hoje, não esqueci, foi a noite de amor. A mais maravilhosa de toda a minha vida...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Conto de Natal


Antônio Contente

Por uma dessas insondáveis circunstâncias do amor ele foi morar, pouco antes do último Natal do século passado, num agradável recanto longe deste insensato mundo, num então agradabilíssimo subúrbio do Rio de Janeiro.

É que no distante bairro, com a palavra Vila antes do nome, a namorada possuía imóvel, abrigo certo para o sentimento nascente, em solidificação. Durante alguns meses lá ficaram ao sabor dos bons instantes.

E o pedaço no qual se instalaram tinha belo verde por perto, além de pequena baixada pela qual corria cristalino filete d’água; que se não era suficiente para atrair garças, dele vinha, nas noites de Verão, o coaxar de rãs que serviam de fundo musical para o cenário de campos do interior, como os de antigamente.

Por ali os pequenos instantes que levam à felicidade brotavam das coisas simples. Ele gostava, por exemplo, nas manhãs frescas dos sábados, de colar barriga à pia da cozinha para lavar folhas de rúcula.

Isso enquanto, no som, um velho elepê de Nat King Cole espalhava a suave melodia do The Very Tought of You, a dizer: “Pensando em ti/ Me esqueço de fazer/As pequenas coisas normais/ Que cada um deve fazer./ Estou num sonho/ Estou feliz como um rei”...

E então lá vinha Sílvia, cabelos curtos e riso alvo. Para, subitamente, aos espantos de ninguém, saírem a dançar pela sala.

Que se alongava em pequena sacada sobre a qual as pétalas das margaridas batiam na grade térrea.
Convite a que Narieldo, soltando a moça, pulasse para fora; colhido o raminho, entregava a afirmar que continha, também, essências dos cantos dos passarinhos que moravam no bairro sem nunca dele sair.

Em muitas manhãs Narieldo entregava-se a um barroco gesto. Ao acordar, lusco fusco no quarto, Sílvia a ressonar, ele se ajoelhava no chão, ao lado dela. Na primeira vez em que percebeu, a moça soltou um espantado “o que é isso”?

— Rezo — ouviu a resposta.

— Reza?

— Para agradecer aos deuses a glória de ter acordado ao teu lado...

Já na morada fazia quase um mês, certa madrugada Narieldo escutou som que parecia chegar de muito longe. Era um apito, prolongado. Que, ao concluir o rapaz vir de algum trem, passou a acreditar ser pranto das velhas estradas de ferro sendo destruídas. E tal gemido, lamentoso, se repetiu em outras madrugadas.

Até que na véspera do Natal, noite de chuva e até algum frio no verão carioca, o moço despertou com o som.

Como sabia que os trilhos da estrada de ferro que tivera dias de glória não passavam muito longe, deixou a cama com jeito, agasalhou-se e, silenciosamente, saiu. Queria, a todo custo, ver, com os próprios olhos, o trem moribundo.

Só que, pouco depois, Sílvia também acorda, não vê o marido e o chama. Sem resposta, levantou; apavorada, descobriu que o fulano não estava no apartamento. Enrolada em agasalhos, sentou na sala. 
O coração pulsava forte enquanto, apesar do dezembro, a sensação de frio aumentava.

Faltava pouco para amanhecer, alguém enfia chave na porta. Vendo Narieldo entrar, ensopado, ela salta:

— O que foi? Onde você estava?

Antes de responder, ele puxa cadeira e senta. Arfa, a voz cansada:

— Escutei, no nosso quarto, o apito do trem que passa quase toda madrugada naquela linha lá embaixo. Como isso sempre chegou aos meus ouvidos como um suspiro de lamento das locomotivas que estão morrendo, saí; queria ver a composição passar.

— E viu?

— Sim, claro, vi.

— Mas, Narieldo, você não pode ter visto. Não passa um trem por aquela linha faz mais de dois anos!

— Impossível. Pois ele chispou ao meu lado, senti até o vento de sua carreira bater no meu rosto...
Ficaram calados. Súbito, o rapaz levanta:

— Espera, acho que você tem razão, pois o trem correu diante de mim sem fazer barulho; parecia flutuar no espaço... Vai ver tudo isso é apenas efeito do nosso primeiro Natal aqui...
Novo silêncio; Narieldo senta, a dizer:

— Mas, na hora em que virei as costas para voltar pra casa ouvi, nitidamente, o apito; como um lamento... Sem dúvida, é coisa de Papai Noel...
Naquela mesma manhã o assunto entre os dois esgotou-se, nele não falaram mais. E tempos depois, com o caso d’amor terminado, nosso herói contou a história para um amigo. Que indagou:

— E o som da ferrovia? Depois que você saiu daquele bairro morreu para sempre?

— Não, às vezes eu o escuto, aqui mesmo à beira mar, em Ipanema.
Pegou a taça de vinho, deu um gole. Para concluir:

— Afinal, meu caro, os amores eternos são os que duram apenas o tempo de um apito de trem; que, contudo, não deixe de soar. Estou a ouvi-lo sempre nesta época de fim de ano quando, em insônias, nas madrugadas, sinto baita saudade daquele Natal; e dos braços de Silvinha...

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

"A Noite do Meu Bem"


Edmilson Siqueira

Comprei hoje o livro “A Noite do Meu Bem – A História e as Histórias do Samba-Canção” de Ruy Castro. Li, enquanto sorvia um café perto da livraria, ali no Shopping Iguatemi, o prólogo com umas 15 páginas que prepara o leitor, de modo magistral, para entrar no clima em que o samba-canção invadiu corações e mentes do Rio de Janeiro e que perduraria por duas décadas mais ou menos.

Ruy Castro sabe contar histórias verdadeiras. Fidelíssimo a tudo que pesquisa, seu texto se incumbe de dar aos fatos um sabor de novidade inesperado, transformando em saborosos quitutes histórias que, mesmo se conhecendo, surpreendem a cada linha.

Entrevistei Ruy Castro em março de 1993, aqui em Campinas, na livraria Letras e Arte, que ficava entre o City Bar e o Paulistinha, para o lançamento de “O Anjo Pornográfico”, magnífica biografia de Nelson Rodrigues. À época ele estava escrevendo a biografia de Mané Garrincha e me falou algumas coisas sobre ele. E já havia escrito “Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova”. Escrevendo sobre a bossa nova e seus geniais criadores, a vida e o teatro de Nelson e a vida e o futebol de Garrincha, Ruy produziu material inestimável para a cultura brasileira. E ele escreveu muitos outros - e ótimos – livros.

A entrevista feita há 22 anos foi manchete do Caderno C do Correio Popular no dia seguinte e Jary Mércio, meu "editor-chefe”, tascou a manchete: “Ruy Castro dorme com seus personagens”. A frase, dita de outra maneira, era do próprio Ruy que havia contado que, após coletar todas as informações possíveis sobre seus personagens, se isolava de tudo e de todos para escrever, só pensando no texto, dia e noite.
A capa interna do livro é recheada de anúncios das casas noturnas 
 cariocas dos anos 40 e 50, quando o samba-canção reinava absoluto
Pois esse livro, cujo personagem principal é o samba-canção, deve ser parecido com o da bossa nova, com pequenas e deliciosas biografias dos compositores e de toda aquela gente que contribuiu, de um modo ou de outro, para a explosão e a permanência do gênero por tanto tempo na produção musical brasileira. A diferença talvez esteja no sucesso que a bossa nova alcançou no mundo (até hoje, por sinal) enquanto que o samba-canção ficou mais restrito ao Brasil, mas deve ter vendido muito mais disco por aqui. Só que ainda não sei. Escrevo esses comentários ao sabor de um prólogo que me encheu de expectativas para ler o resto – e olha que o samba-canção, embora aprecie muitas obras primas do gênero, não está entre os tipos de música que mais admiro.

Mas sei que, além de ficar sabendo de tudo que o samba-canção fez nos corações e mentes de mais de uma geração de cariocas – e brasileiros em geral – terei, no livro, um panorama do Brasil dos anos 1940/50 e parte dos 60 que poucos historiadores poderiam oferecer. Não em detalhes históricos próprios de debates acadêmicos, mas nos fatos que se transformaram em canções, nos cenários que inspiraram os autores, nas fossas todas de onde saíam as letras e nas outras fossas que elas causavam.

Logo de cara, ainda no prólogo, Ruy derruba um mito: o de que o presidente Eurico Gaspar Dutra acabou com os cassinos a pedido de sua mulher, cujo apelido, não por acaso, era Dona Santinha. Dutra foi atrás de popularidade e ouviu conselhos de gente bem próxima dele que, se proibisse, o povo o apoiaria. Os conselhos foram de seu ministro da Justiça, Carlos Luz, que tinha contra os cassinos broncas morais e religiosas. Mas isso é só um exemplo da riqueza histórica que qualquer livro de Ruy Castro nos proporciona.

Por isso, nos próximos dias, apaziguando minh’alma dos tremores políticos, dos incêndios diários em Brasília, dos discursos inflamados de imbecis consagrados pelo voto, terei o bálsamo de viajar por um Brasil que, tenho certeza, era bem melhor que o atual: o Brasil do samba-canção que antecedeu o Brasil da bossa nova, um tempo em que, conforme o próprio Ruy escreveu na dedicatória que me fez no Chega de Saudade, “o Brasil ia para o Primeiro Mundo”. O grifo no verbo foi dele.