Antônio Contente
Em suas várias viagens de trabalho ao exterior, Raquel pouco
me ligou. O que, ao fim e ao cabo, tornou marcantes duas das vezes em que fez
isso, sempre com o toque especial que sabia dar a tudo. A primeira – e jamais
poderia esquecer a data – foi em 09 de novembro de 1989. Eu estava em meu
apartamento, à época no Cambuí, escrevendo na velha Olivetti tec-tec-tec a
crônica diária para o jornal de São Paulo no qual trabalhava. Assim, quando
tocou o telefone, ia deixar pra lá. Mas a senhora que cuidava dos meus,
digamos, desempenhos domésticos atendeu na extensão e correu a me avisar quem
era. Imediatamente peguei o fone, com a observação clássica do “meu Deus, que
surpresa! Onde você está”?
– Em Berlim – ela respondeu – e você não sabe da maior.
– Bom – murmurei – ai agora é Outono. E, nessa estação, até
mais do que na Primavera, sempre acontecem coisas especiais.
– De fato, o que está acontecendo é, por todas as formas,
muito, muito especial. Apesar de ser uma verdadeira explosão...
– Não me diga, adoro ver implosões; não me diga que estão
detonando o Portão de Brandemburgo!?
– Muito melhor – ela sorri – estão, simplesmente, arrebentando
com o muro inteiro!
– O Muro de Berlim? – Dou um berro.
– Exatamente – ela completa – e agora, com ele vindo abaixo,
é só esperar o quanto isso vai mexer com o mundo. É assim que se faz
história...
O segundo telefonema de Raquel ocorreu quatro anos depois,
em 1993, mais ou menos nas mesmas circunstâncias; só que, desta vez, eu mesmo
atendi a chamada. Quando sua primeira frase foi um “você não adivinha a maior”,
imediatamente lembrei sua ligação do passado, feita da Alemanha. Como sabia que
na nova oportunidade ela estava na União Soviética e eu vinha acompanhando,
pelos noticiários dos jornais e TVs a briga que então lá ocorria entre o
presidente Boris Ieltsin e o Parlamento, mais conhecido como Soviete Supremo,
perguntei:
– E então, já conseguiram detonar o Boris?
– Ao contrário – ela acentuou – ficamos sabendo que, nesse
instante, ele está mandando tanques para bombardear o edifício do Parlamento.
– Então tenha cuidado – brinquei – você não pode ficar no
meio do fogo cruzado.
– Por enquanto esse perigo não há, pois estou em São
Petersburgo. Mas vou me mandar já para Moscou, não posso perder essa. Afinal,
não esqueça que vi a queda do Muro de Berlim... E meu feeling me diz que aquele
acontecimento, mais este, terão fundas repercussões na vida do mundo ocidental,
marcando o fim do comunismo como o conhecemos.
Estes dois episódios marcaram bem a vida da bibliotecônoma e
professora Raquel Maria de Almeida Prado. Na estada em Berlim a que me referi
acima, ela se encontrava fazendo importante trabalho na Biblioteca Central da
Universidade Humboldt, enorme, completíssima, fundada em 1831. De lá trouxe
preciosos elementos que vieram enriquecer o acervo do Memorial da América
Latina, na Capital, cuja biblioteca ela fundara e dirigia. Já na União
Soviética, para ampliar o mesmo trabalho, permaneceu por várias semanas na
Biblioteca Nacional da Rússia, em São Petersburgo, que é uma das maiores do
mundo, tendo sido formada a partir da Biblioteca Pública Imperial, aberta em
1795 por Catarina, a Grande.
Mas bem antes desses episódios fora do Brasil, sempre
brilhante nas suas atividades, Raquel comandou, por largos anos, o Departamento
de Documentação da Prefeitura de Campinas. Depois, no primeiro governo de Chico
Amaral, dirigiu o Museu de Arte Contemporânea, onde desenvolveu esplêndido
trabalho de incentivo aos novos talentos. Lembro que, neste tempo, a famosa
artista plástica, escritora e poeta Anna Maria Badaró me disse que a
sensibilidade de Raquel para detectar verdadeiros artistas levou a que tirasse
do anonimato vários pintores hoje reconhecidos internacionalmente. E, ainda
assim, ela conseguia arranjar tempo para lecionar na Faculdade de
Biblioteconomia da PUCC; onde, depois, ocupou o cargo de diretora.
Para mim que tive o privilégio de usufruir, por muito tempo,
da amizade de Raquel, permanecem inúmeras outras preciosas lembranças. Como de
certa manhã em que estávamos sentados, claro dia de Verão, em um banco no
Jardim Carlos Gomes diante da linda mansão (já virou prédio de apartamentos) do
pai dela. De repente, eu disse à minha amiga, num desses rasgos que não
resistem aos efeitos dos fascínios, que o seu sorriso concentrava a síntese das
luzes daquele azulíssimo instante.
– Bom – ela me olhou, bem humorada – até que eu gostaria de
ser um cartão postal...
– Ora, querida – respondi, inapelavelmente barroco no
galanteio – você é muito mais; pois estão contigo todas as bem-aventuranças dos
meus sonhos.
No último dia 5, ao amanhecer, Raquel Maria de Almeida
Prado, linda, inteligente, fascinante, amada, encantou-se, como bem nos ensinou
Guimarães Rosa a respeito dos que partem. Para sorte dos que com ela
conviveram, esteve entre nós por 76 anos. Deixou dois filhos, Florinha e
Rogério, meus amigos. E uma enorme, imensa, dilacerante saudade.