segunda-feira, 20 de junho de 2016

E Raquel Maria encantou-se



Antônio Contente

Em suas várias viagens de trabalho ao exterior, Raquel pouco me ligou. O que, ao fim e ao cabo, tornou marcantes duas das vezes em que fez isso, sempre com o toque especial que sabia dar a tudo. A primeira – e jamais poderia esquecer a data – foi em 09 de novembro de 1989. Eu estava em meu apartamento, à época no Cambuí, escrevendo na velha Olivetti tec-tec-tec a crônica diária para o jornal de São Paulo no qual trabalhava. Assim, quando tocou o telefone, ia deixar pra lá. Mas a senhora que cuidava dos meus, digamos, desempenhos domésticos atendeu na extensão e correu a me avisar quem era. Imediatamente peguei o fone, com a observação clássica do “meu Deus, que surpresa! Onde você está”?

– Em Berlim – ela respondeu – e você não sabe da maior.

– Bom – murmurei – ai agora é Outono. E, nessa estação, até mais do que na Primavera, sempre acontecem coisas especiais.

– De fato, o que está acontecendo é, por todas as formas, muito, muito especial. Apesar de ser uma verdadeira explosão...

– Não me diga, adoro ver implosões; não me diga que estão detonando o Portão de Brandemburgo!?

– Muito melhor – ela sorri – estão, simplesmente, arrebentando com o muro inteiro!

– O Muro de Berlim? – Dou um berro.

– Exatamente – ela completa – e agora, com ele vindo abaixo, é só esperar o quanto isso vai mexer com o mundo. É assim que se faz história...

O segundo telefonema de Raquel ocorreu quatro anos depois, em 1993, mais ou menos nas mesmas circunstâncias; só que, desta vez, eu mesmo atendi a chamada. Quando sua primeira frase foi um “você não adivinha a maior”, imediatamente lembrei sua ligação do passado, feita da Alemanha. Como sabia que na nova oportunidade ela estava na União Soviética e eu vinha acompanhando, pelos noticiários dos jornais e TVs a briga que então lá ocorria entre o presidente Boris Ieltsin e o Parlamento, mais conhecido como Soviete Supremo, perguntei:

– E então, já conseguiram detonar o Boris?

– Ao contrário – ela acentuou – ficamos sabendo que, nesse instante, ele está mandando tanques para bombardear o edifício do Parlamento.

– Então tenha cuidado – brinquei – você não pode ficar no meio do fogo cruzado.

– Por enquanto esse perigo não há, pois estou em São Petersburgo. Mas vou me mandar já para Moscou, não posso perder essa. Afinal, não esqueça que vi a queda do Muro de Berlim... E meu feeling me diz que aquele acontecimento, mais este, terão fundas repercussões na vida do mundo ocidental, marcando o fim do comunismo como o conhecemos.

Estes dois episódios marcaram bem a vida da bibliotecônoma e professora Raquel Maria de Almeida Prado. Na estada em Berlim a que me referi acima, ela se encontrava fazendo importante trabalho na Biblioteca Central da Universidade Humboldt, enorme, completíssima, fundada em 1831. De lá trouxe preciosos elementos que vieram enriquecer o acervo do Memorial da América Latina, na Capital, cuja biblioteca ela fundara e dirigia. Já na União Soviética, para ampliar o mesmo trabalho, permaneceu por várias semanas na Biblioteca Nacional da Rússia, em São Petersburgo, que é uma das maiores do mundo, tendo sido formada a partir da Biblioteca Pública Imperial, aberta em 1795 por Catarina, a Grande.

Mas bem antes desses episódios fora do Brasil, sempre brilhante nas suas atividades, Raquel comandou, por largos anos, o Departamento de Documentação da Prefeitura de Campinas. Depois, no primeiro governo de Chico Amaral, dirigiu o Museu de Arte Contemporânea, onde desenvolveu esplêndido trabalho de incentivo aos novos talentos. Lembro que, neste tempo, a famosa artista plástica, escritora e poeta Anna Maria Badaró me disse que a sensibilidade de Raquel para detectar verdadeiros artistas levou a que tirasse do anonimato vários pintores hoje reconhecidos internacionalmente. E, ainda assim, ela conseguia arranjar tempo para lecionar na Faculdade de Biblioteconomia da PUCC; onde, depois, ocupou o cargo de diretora.

Para mim que tive o privilégio de usufruir, por muito tempo, da amizade de Raquel, permanecem inúmeras outras preciosas lembranças. Como de certa manhã em que estávamos sentados, claro dia de Verão, em um banco no Jardim Carlos Gomes diante da linda mansão (já virou prédio de apartamentos) do pai dela. De repente, eu disse à minha amiga, num desses rasgos que não resistem aos efeitos dos fascínios, que o seu sorriso concentrava a síntese das luzes daquele azulíssimo instante.

– Bom – ela me olhou, bem humorada – até que eu gostaria de ser um cartão postal...

– Ora, querida – respondi, inapelavelmente barroco no galanteio – você é muito mais; pois estão contigo todas as bem-aventuranças dos meus sonhos.

No último dia 5, ao amanhecer, Raquel Maria de Almeida Prado, linda, inteligente, fascinante, amada, encantou-se, como bem nos ensinou Guimarães Rosa a respeito dos que partem. Para sorte dos que com ela conviveram, esteve entre nós por 76 anos. Deixou dois filhos, Florinha e Rogério, meus amigos. E uma enorme, imensa, dilacerante saudade.

domingo, 29 de maio de 2016

O italiano que mudou de rumo

A bucólica Mocajuba, na Amazônia profunda: à beira do gigante Tocantins
Antônio Contente 

Quando os pães chegavam à mesa, explodiam luminosidades de festa. Vinham num cesto de vime, eram pouco mais compridos que o pãozinho francês de hoje, sem lanhos na casca, lisa, pontuda nas extremidades com pequenos queimadinhos que remetiam ao crocante. O êxtase de mastigar aquilo, com a manteiga a derreter sobre a massa, só depois que cresci me levou à curiosidade de querer saber quem era Capella. Nada mais que o padeiro que operava a alquimia da maravilha na pequena padaria dentro da própria casa em que morava, no alto da ladeira sobre o rio Tocantins em Mocajuba, mínima cidadezinha paraense na Amazônia profunda, cercada pela floresta.

Outra curiosidade que o homem me despertou, foi o fato de ter vindo da Itália para uma vila de uns 1.000 habitantes; apenas três ruas paralelas à margem do curso d’água e quatro ou cinco transversais. Afinal, de estrangeiros o local abrigava somente portugueses, como no Pará inteiro, mais uma ordem de padres holandeses que usavam batinas brancas. E acabou sendo fatal quando, por ter ido estudar na capital e só voltando à Mocajuba nas férias, acabei tendo forte curiosidade em saber como aquele único italiano fora parar ali, tão longe dos ruídos do mundo.

Na primeira vez que o vi de perto me espantei com seu tamanho, enorme, nunca menos de 1,90. Jamais tentei falar-lhe porque, nos tempos d’outrora, jovens não tinham muito acesso aos mais velhos. Mas fui captando informações. Como a de que dona Maria, a esposa, muito branca e ainda bonita na idade madura, era filha de um comerciante português rico que possuía seringais na outra margem do rio imenso. E nada mais, além de me deliciar com o fantástico “pão do Capella”. Que continuei a prazerosamente consumir nas minhas cada vez mais espaçadas idas à cidadezinha.

Até que um dia, quase final dos anos 50 quando faltava pouco para vir fazer o Curso de Jornalismo em São Paulo, consegui conversar rapidamente com o magnífico padeiro. A pergunta fundamental, de como ele fora parar em Mocajuba, contudo, não fiz. Fiquei, porém, sabendo que nascera em Cortona, na Toscana, e que chegara ao Brasil nos primeiros anos do século passado.

Como se isso fosse um filme, façamos um corte, comigo, no final dos anos 60 trabalhando no jornal O Globo, no Rio. Onde recebi a incumbência de ir fazer matéria em Florença, na Itália. Lá chegando, ao levantar dados para a reportagem, fui informado que certos documentos de que precisava estavam com um professor residente em Cortona, no interior da Toscana. “Santos Deus – pensei imediatamente – é a terra de Capella, o padeiro de Mocajuba”.

Assim foi que, numa doceria na cidadezinha que devia ter menos de 10.000 habitantes então, avistei uns potes de compotas. Falei para a vendedora que levaria para um nativo local que vivia no Brasil e ela me disse: “Então prefira esta, que tem sabor da ‘Riccianelli’, um dos doces mais tradicionais da Toscana”. Comprei.

Na verdade aquele petisco guardado na minha mala passou a ter quase tanta importância quanto a reportagem que fora fazer. De volta, entrando em férias no mês seguinte, tomei o rumo de Mocajuba aonde já não ia há muitos anos.

Desci do navio-gaiola e avistei, sob os galhos das mangueiras centenárias, a casa de Capella. Parti direto para lá, onde fui atendido por uma senhora bastante idosa, na qual reconheci a dona Maria dos velhos tempos. No que lhe disse, pegando o vidro com a compota, o que me levara ali, ela respondeu, chorando, que o marido morrera meses antes.

Mas, durante o cafezinho, pude, finalmente, perguntar como é que Capella, num Estado brasileiro onde a colônia italiana era pequena, foi parar no lugarejo perdido no meio da selva. E ela me contou.
Na verdade o imigrante Giancarlo Capella, nos primeiros anos do século XX, buscava São Paulo. Por conveniências de embarque resolveu pegar o navio em Lisboa onde um português, que também emigrava, perguntou se ele não queria conhecer antes a floresta amazônica, a partir de Belém do Pará. O italiano topou, pretendendo, depois, seguir para a cidade de Santos.

Desta forma acabou indo à Mocajuba, levado pelo luso que fora chamado por parentes que lá trabalhavam com borracha e cacau. Rodou por ali uns dias e, na véspera de regressar à Belém para tomar o rumo de São Paulo, conheceu linda mocinha chamada Maria, filha de próspero seringalista luso. Houve encanto mútuo.

Nesta instante da narrativa a viúva de Capella me pediu para esperar, queria me mostrar algo. Voltou com uma foto dela, meio amarelecida pelo tempo. Ao me entregar, murmurou: “Quando casamos meu marido fez esta fotografia, que os padres holandeses da nossa paróquia revelaram”. Olhei e vi uma jovem fantasticamente bonita, deslumbrante. Torno a mirar dona Maria, ao vivo, e percebo que seus olhos mantinham brilho profundo. Claros, diamantes; e azuis, maravilhosamente azuis como dois pingos daquele céu de julho no verão amazônico, que nos cobria. Capella não poderia mesmo, depois de conhecê-la, ir para nenhum outro lugar... Tiveram doze filhos.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Valeu, Doca!

Doca Furtado está indo embora para Aracaju (SE). Vai abrir um boteco próprio por lá, na beira da praia e, tenho certeza, quando bater um banzo, vai pegar o violão e encher de prazer os fregueses. Ouvimos muito o Doca aqui em Campinas. Zezé e eu tínhamos um programa quase sagrado aos domingos dos primeiros anos deste século: almoçar no Deck em Sousas, boteco dirigido pelo amigo Elder Muzetti, onde Doca fazia a tarde fluir cheia de música da boa. Eu tinha uma coluna semanal na revista do Correio, o Farol, e citei Doca várias vezes. A croniqueta que segue abaixo é uma delas, que republico aqui em homenagem a esse formidável músico que parte agora para um novo projeto de vida que, com certeza, lhe trará as mesmas alegrias e prazeres que ele teve e nos ofereceu por essas Campinas. Valeu, Doca!

Domingos musicais


Tem sido gratificante ouvir, tomando um belo chope da Brahma, o cantor Doca Furtado no Deck lá em Sousas. Ele canta aos domingos à tarde e seu horário varia. E varia não por vontade do Elder, zeloso proprietário da casa, mas porque Doca é um artista irrequieto. Parece que para ele cantar é seu jeito de estar no mundo em companhia de seu violão, que harmoniza seu canto e dita seu ritmo. Vai daí que ele chega antes da hora e termina, invariavelmente, muito tempo depois do combinado. O que, convenhamos, é bom para nós, frequentadores do boteco, bom para o Elder, que vê todo mundo pedindo mais um chope ou mais uma cerveja para apreciar as diversas saideiras que Doca emenda, e, tenho certeza, bom para o próprio Doca, cuja felicidade se percebe não só nos aplausos que recebe, mas no próprio prazer de cantar.

Doca é um cantor de bar por excelência, o que não significa que não possa se dar bem num palco com um grupo. Com uma memória prodigiosa, não usa aquele recurso de muitos cantores, que é um caderno com as letras das músicas. Ele, quando não sabe cantar um pedido feito (o que é raro) não se envergonha de dizer “essa eu não faço, é linda, mas eu ainda não aprendi”.

Seu violão é sua outra parte musical: sem olhar para a mão esquerda, encontra todas as posições como se tivesse nascido fazendo aquilo, deixando a impressão para todos que basta colocar alguns dedos sobre as cordas que as posições se completam sozinhas. Já a mão direita é daquelas que fazem o ritmo parecer natural, pois ele flui fácil, quer repercussivo quer dedilhado. Seu repertório é mesclado com sucessos de bar, inevitáveis nessas horas, e músicas quase desconhecidas, mas ótimas, que ele encontra perdidas em discos de Alceu Valença, Belchior, Milton Nascimento, Zeca Baleiro, Jackson do Pandeiro, Gilberto Gil e muitos outros, incluindo aí grandes sambas. Além disso, ele envereda por algumas emboladas que encantam pela rapidez dos versos, pela simplicidade das letras e pela empolgação do ritmo.

Como se trata de um cantor que mistura a técnica e o instinto, o improviso se faz presente e não são poucas as músicas que entram por um caminho diferente, um arranjo porreta tirado na hora, um final esticado ou um novo verso criado por ali mesmo.

Doca não gosta de cantar sozinho. É o que se percebe quando ele, logo do início dos “trabalhos” pergunta por Carlão, seu amigo e percussionista dos bons que adora dar uma canja no Deck. Domingo passado, como Carlão demorasse a chegar, implorou a Elder que, num raro momento, pegou um padeiro e fez o som do Doca ficar mais encorpado. Mas logo Carlão chegou, tomou uma e partiu para o batuque, no que foi coadjuvado por ninguém menos que Ding Dong, que também deu as caras por lá, fazendo a tarde domingueira muito mais prazerosa.

Durante a Copa, Elder vai botar um telão no Deck. Domingo que vem o Brasil joga às 13h. Depois do jogo, tem, claro, Doca Furtado, que vai ficar torcendo não só pela seleção, mas também para o jogo passar depressa que ele quer mais é cantar. 

domingo, 1 de maio de 2016

Da arte de fazer cerveja



Antônio Contente

Hoje as chamadas cervejas artesanais tomam conta das prateleiras dos grandes supermercados, mas nem sempre foi assim. O que não quer dizer que, no passado, elas não existissem. Existiam sim, porém feitas por poucas pessoas. Algumas, até, obrando apenas para consumo próprio; ou para degustar com amigos.

Assim foi que, num dos meus aniversários, no século passado, uma amiga chegou ao apartamento onde eu então morava, no Cambuí, trazendo vários pacotes. Ante meu natural espanto, disse logo que se tratava de presente pelo natalício.

— E o que você está me dando — perguntei — um ultraleve desmontado?

Ao mesmo tempo que depositava as coisas na copa, respondeu com um “você sempre soube que eu gosto de dar presentes práticos”. E após, a me olhar nos óculos:

— Como com essa crise que está aí pode faltar até cerveja, e sei o quanto você adora uma bem gelada, vou te ajudar a não ter problemas.

— Ótimo — coço a cabeça — mas, pelo formato dos pacotes que você trouxe, não se trata de garrafas.

— O problema — ela me encara com seu inegável encanto — é que não estou lhe dando um peixe frito.

— Não? — Levanto as sobrancelhas.

— Não, querido, eu estou te ensinando a pescar.

— Ora... — Eu tateava, meio em dúvida.

— Pois é – ela abre os braços — aí você tem uma mini-fábrica de cervejas. A partir de agora, você poderá fabricá-las aqui, na sua casa.

— Poderei? — Levo as duas mãos ao próprio peito.

— Claro — ela garante — até porque é facílimo.

— Mas e os ingredientes? — Indago — Onde vou achar os ingredientes?

— Ali — ela aponta para dois dos pacotes. Em seguida, enumera: — Te trouxe malte, lúpulo, fubá de milho, açúcar, fermento cervejeiro e o gritz...

— O quê?

— Gritz — ela repete — mas não se impressione que é moleza manipular essas coisas. Exatamente como fazer uma limonada...

— Bem — volto a coçar a cabeça — não tenho, quanto às minhas habilidades, a mesma confiança que, a respeito delas, você demonstra ter.

— Então preste atenção que vou lhe dar uma aula, a partir da receita básica da cerveja escura, que a que você mais gosta.
Dito isto, desembrulhou um belo balde de metal, explicando:

— Vinte horas antes de começar o preparo, você ferverá, aqui, 20 litros d’água, filtrada, por 15 minutos. Quando terminar, faça a aeração.

— Aera... O que?

— Aeração. Passe o líquido de um recipiente para outro, várias vezes; a fim de que o oxigênio volte à H2O.

— Bom, parece fácil — admito.

— Claro — ela concorda — daí você coloca o lúpulo de molho em água durante uma hora.

— E o malte? – Arrisco, já com ares de entendido.

— Muito bem — ela aplaude — você lava o malte em uma peneira, como se lava arroz.

— E então está tudo pronto? — Meus pobres olhos se iluminam.

— Não — a linda amiga sorri — agora você bate o malte no liquidificador até formar uma pasta. Enquanto isso, numa panela, você coloca seis litros d’água, o malte triturado, o gritz e duas colheres de sopa de farinha de trigo.
Nesse ponto, mesmo percebendo que o negócio se complicava, continuei atento. A lição continua:

— Agora você pega aquilo ali, que é o termômetro-cervejeiro, para chegar à brasagem.

— A o que?

— À brasagem, que dará o mosto.

A aula ainda durou um bom tempo e bem depois, ao ficar sozinho, me encontrava não apenas cansado, porém quase exangue. Contudo, como a criatura que me dera o presente era, de fato, muito especial, arregacei as mangas e coloquei mãos à obra. Em pouco tempo minha copa e cozinha estavam transformadas num verdadeiro chiqueiro e, desesperado, quase chego a gritar.

Por fim, transtornado, liguei para a faxineira, contratei hora extra prometendo pagar em dobro, e, assim que ela chegou, eu saí. Direto para uma loja de importados, onde comprei uma caixa de cerveja irlandesa Guinness. Depois, com a casa limpa fiquei quieto no meu canto e, uma semana depois, chamei a amiga para experimentar minha grande obra cervejeira. Assim que ela provou o que servi de uma bela jarra de vidro, seus olhos brilharam e veio a exclamação:

— Meu Deus, você é um gênio. Isso está melhor do que a melhor cerveja europeia.

Poucos dias depois saiu uma bolsa de estudos que minha doce amiga esperava fazia dois meses, e ela viajou pra Londres. Naqueles velhos tempos, pré-internet, ainda se usava remeter cartões postais. Recebi um dela, passadas duas semanas, dizendo assim: “Ontem, após as aulas aqui, saí com amigos e tomei uma bela Guinness. Não sei por que, mas lembrei de você. Até hoje, como casou com um britânico e não voltou mais pra Campinas, ainda desconfio que, de fato, ela sempre sacou o que havia na jarra que usei para servi-la...

terça-feira, 8 de março de 2016

O papagaio lulista


Antonio Contente

Ela me ligou pra perguntar, à queima-roupa, se eu poderia tomar conta de um papagaio. Vazei, claro, algum espanto, porém veio a justificativa: —O problema é o seguinte: ficarei uns dias nos States, a trabalho pela Unicamp, e queria que você tomasse conta do Marcão.

—De quem?

— Do Marcão. O meu papagaio.

Confesso que, nas circunstâncias, me senti encurralado. Afinal, nunca me passou pela cabeça tal tarefa. Gemi um “será que terei competência”?

—Claro—ela garante, eufórica — não tem mistério nenhum.

—Bom...

—Olha aqui—a amiga se torna coloquial —, no lugar que você mora tem espaço, não é mesmo? Pois basta isso. Eu levo o poleiro do Marcão praí e pronto.

— E quanto à alimentação do bicho? Almoça o que, essa fera?

— Deixarei tudo o que ele come com você. Será moleza.

Foi assim que, no dia seguinte, acordei com uma algazarra na área de serviço, e custei pouca coisa a sacar do que se tratava. Me dirigi então ao papagaio: — Quer fazer favor de ficar  quieto, meu?! Ainda não deu nem seis horas da manhã!

—Veado! Veado!!!

Recuei, espantado, e me apoiei na máquina de lavar, para não cair.

— Veado! – O papagaio mais uma vez bradou.

— Escuta aqui, seu bichinho safado — ergui o indicador – veado é o escambau, tá?

Mesmo assim, dei pro sacana um pedaço de abóbora e me manquei.

Na verdade, porém, o fato se repetiu nos dias seguintes. Antes das seis o pássaro começava a grasnar, eu ia a ele, era chamado de veado e lhe dava uma lasca de jerimum ou uma goiaba.

Tudo, porém, até poderia terminar bem não fosse que, certa manhã, o louro me acordou a cantar o “Lula Lá”, aquela musiquinha miserável da primeira eleição do ex-metalúrgico. Corri pra área e a ave me recebeu, a dizer:

—“Lewandovsky bom, Lewandovsky santo! Juiz Moro ruim, juiz Moro demônio”! E repetiu  isso três vezes.

Verdadeiramente estarrecido, recuei; ele voltou a cantar o refrão do “Lula Lá”. Completando:

— Sítio Atibaia não dele! Apê Guarujá não dele!

Nesse instante, minhas entranhas ferveram. Completamente descontrolado voei sobre o animal e, com as duas mãos, o estrangulei. Porém, só no instante em que larguei sobre o piso o verde corpo inerme, caí na realidade com um “santo Deus, o que fiz”?

Meu primeiro impulso foi esconder o, digamos assim, cadáver.  Entretanto, veio logo à minha mente a figura da dona do bicho que chegaria a qualquer momento de viagem, e não poderia constatar que sua ave de estimação, que amava de paixão, fora, simplesmente, assassinada.

Nesse instante lembrei que no Largo da Concórdia, no lendário bairro do Braz, em São Paulo, resiste uma feira que vende, mais ou menos à sorrelfa, várias espécies de aves, inclusive papagaios e até cacatuas.

Daí liguei para o meu amigo professor Odair Borges, dono da mais famosa academia de judô de Campinas, que conhece Sampa como as palmas das próprias mãos, contei o sucedido
e pedi que me levasse ao destino desejado no seu carro de luxo. 

Carona conseguida, enfiei o defunto numa caixa de sapato vazia e, com a estranha e pesada sensação de que mil olhos me espreitavam, fiz aquela que estava classificando, apesar da esplêndida companhia do generoso parceiro, como viagem macabra”.

Pelas 10 horas da manhã chegamos diante de um vendedor e, ofegante, mostrei a ele o corpo inerme de Marcão.

Pedi:  — Pelo amor de Deus, você tem que me arranjar um igual.

— Igual como? – Ele me encara.

—Me refiro—expliquei—ao mesmo jogo de cores das penas, e até esta pintinha amarela aqui no papo. Pago o que for preciso.

De fato constatei, instantes depois, que se o falecido possuía um irmão gêmeo, eu acabara de achá-lo. Nessas condições,  satisfeito, regressamos pra Chácara da Barra e, dias depois,
quando a amiga voltou na América, ainda de Viracopos me ligou:

— E o meu papagaio? Tudo bem com ele?

—Nunca esteve tão maravilhoso – respondi.

Em mais algumas horas, sorridente, ela batia na minha porta. Rápido fiz com que entrasse e a levei para junto do poleiro do novo Marcão. Disse: 

— Aqui está, querida, sua maravilhosa ave, com dois maravilhosos detalhes totalmente surpreendentes.

—Quais? – Ela sorriu.

— Primeiro, você descobrirá que Marcão não chamará mais as pessoas que detesta de veado; segundo, deixou de ser lulista. Eu o eduquei, através de uma baita lavagem cerebral.

—Ah, não tem importância— ela suspirou — é que esse papagaio, antes de vir pra minha casa, morou um tempo com a professora Marilena Chauí.

—Quem?

— Marilena Chauí, da Unicamp, como eu. É aquela que disse, num discurso, que quando Lula fala o mundo se ilumina...

Então me agradeceu pela guarda, pegou o bichinho e foi embora, felicíssima. Acho que cometi o crime perfeito.