segunda-feira, 20 de junho de 2016

E Raquel Maria encantou-se



Antônio Contente

Em suas várias viagens de trabalho ao exterior, Raquel pouco me ligou. O que, ao fim e ao cabo, tornou marcantes duas das vezes em que fez isso, sempre com o toque especial que sabia dar a tudo. A primeira – e jamais poderia esquecer a data – foi em 09 de novembro de 1989. Eu estava em meu apartamento, à época no Cambuí, escrevendo na velha Olivetti tec-tec-tec a crônica diária para o jornal de São Paulo no qual trabalhava. Assim, quando tocou o telefone, ia deixar pra lá. Mas a senhora que cuidava dos meus, digamos, desempenhos domésticos atendeu na extensão e correu a me avisar quem era. Imediatamente peguei o fone, com a observação clássica do “meu Deus, que surpresa! Onde você está”?

– Em Berlim – ela respondeu – e você não sabe da maior.

– Bom – murmurei – ai agora é Outono. E, nessa estação, até mais do que na Primavera, sempre acontecem coisas especiais.

– De fato, o que está acontecendo é, por todas as formas, muito, muito especial. Apesar de ser uma verdadeira explosão...

– Não me diga, adoro ver implosões; não me diga que estão detonando o Portão de Brandemburgo!?

– Muito melhor – ela sorri – estão, simplesmente, arrebentando com o muro inteiro!

– O Muro de Berlim? – Dou um berro.

– Exatamente – ela completa – e agora, com ele vindo abaixo, é só esperar o quanto isso vai mexer com o mundo. É assim que se faz história...

O segundo telefonema de Raquel ocorreu quatro anos depois, em 1993, mais ou menos nas mesmas circunstâncias; só que, desta vez, eu mesmo atendi a chamada. Quando sua primeira frase foi um “você não adivinha a maior”, imediatamente lembrei sua ligação do passado, feita da Alemanha. Como sabia que na nova oportunidade ela estava na União Soviética e eu vinha acompanhando, pelos noticiários dos jornais e TVs a briga que então lá ocorria entre o presidente Boris Ieltsin e o Parlamento, mais conhecido como Soviete Supremo, perguntei:

– E então, já conseguiram detonar o Boris?

– Ao contrário – ela acentuou – ficamos sabendo que, nesse instante, ele está mandando tanques para bombardear o edifício do Parlamento.

– Então tenha cuidado – brinquei – você não pode ficar no meio do fogo cruzado.

– Por enquanto esse perigo não há, pois estou em São Petersburgo. Mas vou me mandar já para Moscou, não posso perder essa. Afinal, não esqueça que vi a queda do Muro de Berlim... E meu feeling me diz que aquele acontecimento, mais este, terão fundas repercussões na vida do mundo ocidental, marcando o fim do comunismo como o conhecemos.

Estes dois episódios marcaram bem a vida da bibliotecônoma e professora Raquel Maria de Almeida Prado. Na estada em Berlim a que me referi acima, ela se encontrava fazendo importante trabalho na Biblioteca Central da Universidade Humboldt, enorme, completíssima, fundada em 1831. De lá trouxe preciosos elementos que vieram enriquecer o acervo do Memorial da América Latina, na Capital, cuja biblioteca ela fundara e dirigia. Já na União Soviética, para ampliar o mesmo trabalho, permaneceu por várias semanas na Biblioteca Nacional da Rússia, em São Petersburgo, que é uma das maiores do mundo, tendo sido formada a partir da Biblioteca Pública Imperial, aberta em 1795 por Catarina, a Grande.

Mas bem antes desses episódios fora do Brasil, sempre brilhante nas suas atividades, Raquel comandou, por largos anos, o Departamento de Documentação da Prefeitura de Campinas. Depois, no primeiro governo de Chico Amaral, dirigiu o Museu de Arte Contemporânea, onde desenvolveu esplêndido trabalho de incentivo aos novos talentos. Lembro que, neste tempo, a famosa artista plástica, escritora e poeta Anna Maria Badaró me disse que a sensibilidade de Raquel para detectar verdadeiros artistas levou a que tirasse do anonimato vários pintores hoje reconhecidos internacionalmente. E, ainda assim, ela conseguia arranjar tempo para lecionar na Faculdade de Biblioteconomia da PUCC; onde, depois, ocupou o cargo de diretora.

Para mim que tive o privilégio de usufruir, por muito tempo, da amizade de Raquel, permanecem inúmeras outras preciosas lembranças. Como de certa manhã em que estávamos sentados, claro dia de Verão, em um banco no Jardim Carlos Gomes diante da linda mansão (já virou prédio de apartamentos) do pai dela. De repente, eu disse à minha amiga, num desses rasgos que não resistem aos efeitos dos fascínios, que o seu sorriso concentrava a síntese das luzes daquele azulíssimo instante.

– Bom – ela me olhou, bem humorada – até que eu gostaria de ser um cartão postal...

– Ora, querida – respondi, inapelavelmente barroco no galanteio – você é muito mais; pois estão contigo todas as bem-aventuranças dos meus sonhos.

No último dia 5, ao amanhecer, Raquel Maria de Almeida Prado, linda, inteligente, fascinante, amada, encantou-se, como bem nos ensinou Guimarães Rosa a respeito dos que partem. Para sorte dos que com ela conviveram, esteve entre nós por 76 anos. Deixou dois filhos, Florinha e Rogério, meus amigos. E uma enorme, imensa, dilacerante saudade.

domingo, 29 de maio de 2016

O italiano que mudou de rumo

A bucólica Mocajuba, na Amazônia profunda: à beira do gigante Tocantins
Antônio Contente 

Quando os pães chegavam à mesa, explodiam luminosidades de festa. Vinham num cesto de vime, eram pouco mais compridos que o pãozinho francês de hoje, sem lanhos na casca, lisa, pontuda nas extremidades com pequenos queimadinhos que remetiam ao crocante. O êxtase de mastigar aquilo, com a manteiga a derreter sobre a massa, só depois que cresci me levou à curiosidade de querer saber quem era Capella. Nada mais que o padeiro que operava a alquimia da maravilha na pequena padaria dentro da própria casa em que morava, no alto da ladeira sobre o rio Tocantins em Mocajuba, mínima cidadezinha paraense na Amazônia profunda, cercada pela floresta.

Outra curiosidade que o homem me despertou, foi o fato de ter vindo da Itália para uma vila de uns 1.000 habitantes; apenas três ruas paralelas à margem do curso d’água e quatro ou cinco transversais. Afinal, de estrangeiros o local abrigava somente portugueses, como no Pará inteiro, mais uma ordem de padres holandeses que usavam batinas brancas. E acabou sendo fatal quando, por ter ido estudar na capital e só voltando à Mocajuba nas férias, acabei tendo forte curiosidade em saber como aquele único italiano fora parar ali, tão longe dos ruídos do mundo.

Na primeira vez que o vi de perto me espantei com seu tamanho, enorme, nunca menos de 1,90. Jamais tentei falar-lhe porque, nos tempos d’outrora, jovens não tinham muito acesso aos mais velhos. Mas fui captando informações. Como a de que dona Maria, a esposa, muito branca e ainda bonita na idade madura, era filha de um comerciante português rico que possuía seringais na outra margem do rio imenso. E nada mais, além de me deliciar com o fantástico “pão do Capella”. Que continuei a prazerosamente consumir nas minhas cada vez mais espaçadas idas à cidadezinha.

Até que um dia, quase final dos anos 50 quando faltava pouco para vir fazer o Curso de Jornalismo em São Paulo, consegui conversar rapidamente com o magnífico padeiro. A pergunta fundamental, de como ele fora parar em Mocajuba, contudo, não fiz. Fiquei, porém, sabendo que nascera em Cortona, na Toscana, e que chegara ao Brasil nos primeiros anos do século passado.

Como se isso fosse um filme, façamos um corte, comigo, no final dos anos 60 trabalhando no jornal O Globo, no Rio. Onde recebi a incumbência de ir fazer matéria em Florença, na Itália. Lá chegando, ao levantar dados para a reportagem, fui informado que certos documentos de que precisava estavam com um professor residente em Cortona, no interior da Toscana. “Santos Deus – pensei imediatamente – é a terra de Capella, o padeiro de Mocajuba”.

Assim foi que, numa doceria na cidadezinha que devia ter menos de 10.000 habitantes então, avistei uns potes de compotas. Falei para a vendedora que levaria para um nativo local que vivia no Brasil e ela me disse: “Então prefira esta, que tem sabor da ‘Riccianelli’, um dos doces mais tradicionais da Toscana”. Comprei.

Na verdade aquele petisco guardado na minha mala passou a ter quase tanta importância quanto a reportagem que fora fazer. De volta, entrando em férias no mês seguinte, tomei o rumo de Mocajuba aonde já não ia há muitos anos.

Desci do navio-gaiola e avistei, sob os galhos das mangueiras centenárias, a casa de Capella. Parti direto para lá, onde fui atendido por uma senhora bastante idosa, na qual reconheci a dona Maria dos velhos tempos. No que lhe disse, pegando o vidro com a compota, o que me levara ali, ela respondeu, chorando, que o marido morrera meses antes.

Mas, durante o cafezinho, pude, finalmente, perguntar como é que Capella, num Estado brasileiro onde a colônia italiana era pequena, foi parar no lugarejo perdido no meio da selva. E ela me contou.
Na verdade o imigrante Giancarlo Capella, nos primeiros anos do século XX, buscava São Paulo. Por conveniências de embarque resolveu pegar o navio em Lisboa onde um português, que também emigrava, perguntou se ele não queria conhecer antes a floresta amazônica, a partir de Belém do Pará. O italiano topou, pretendendo, depois, seguir para a cidade de Santos.

Desta forma acabou indo à Mocajuba, levado pelo luso que fora chamado por parentes que lá trabalhavam com borracha e cacau. Rodou por ali uns dias e, na véspera de regressar à Belém para tomar o rumo de São Paulo, conheceu linda mocinha chamada Maria, filha de próspero seringalista luso. Houve encanto mútuo.

Nesta instante da narrativa a viúva de Capella me pediu para esperar, queria me mostrar algo. Voltou com uma foto dela, meio amarelecida pelo tempo. Ao me entregar, murmurou: “Quando casamos meu marido fez esta fotografia, que os padres holandeses da nossa paróquia revelaram”. Olhei e vi uma jovem fantasticamente bonita, deslumbrante. Torno a mirar dona Maria, ao vivo, e percebo que seus olhos mantinham brilho profundo. Claros, diamantes; e azuis, maravilhosamente azuis como dois pingos daquele céu de julho no verão amazônico, que nos cobria. Capella não poderia mesmo, depois de conhecê-la, ir para nenhum outro lugar... Tiveram doze filhos.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Valeu, Doca!

Doca Furtado está indo embora para Aracaju (SE). Vai abrir um boteco próprio por lá, na beira da praia e, tenho certeza, quando bater um banzo, vai pegar o violão e encher de prazer os fregueses. Ouvimos muito o Doca aqui em Campinas. Zezé e eu tínhamos um programa quase sagrado aos domingos dos primeiros anos deste século: almoçar no Deck em Sousas, boteco dirigido pelo amigo Elder Muzetti, onde Doca fazia a tarde fluir cheia de música da boa. Eu tinha uma coluna semanal na revista do Correio, o Farol, e citei Doca várias vezes. A croniqueta que segue abaixo é uma delas, que republico aqui em homenagem a esse formidável músico que parte agora para um novo projeto de vida que, com certeza, lhe trará as mesmas alegrias e prazeres que ele teve e nos ofereceu por essas Campinas. Valeu, Doca!

Domingos musicais


Tem sido gratificante ouvir, tomando um belo chope da Brahma, o cantor Doca Furtado no Deck lá em Sousas. Ele canta aos domingos à tarde e seu horário varia. E varia não por vontade do Elder, zeloso proprietário da casa, mas porque Doca é um artista irrequieto. Parece que para ele cantar é seu jeito de estar no mundo em companhia de seu violão, que harmoniza seu canto e dita seu ritmo. Vai daí que ele chega antes da hora e termina, invariavelmente, muito tempo depois do combinado. O que, convenhamos, é bom para nós, frequentadores do boteco, bom para o Elder, que vê todo mundo pedindo mais um chope ou mais uma cerveja para apreciar as diversas saideiras que Doca emenda, e, tenho certeza, bom para o próprio Doca, cuja felicidade se percebe não só nos aplausos que recebe, mas no próprio prazer de cantar.

Doca é um cantor de bar por excelência, o que não significa que não possa se dar bem num palco com um grupo. Com uma memória prodigiosa, não usa aquele recurso de muitos cantores, que é um caderno com as letras das músicas. Ele, quando não sabe cantar um pedido feito (o que é raro) não se envergonha de dizer “essa eu não faço, é linda, mas eu ainda não aprendi”.

Seu violão é sua outra parte musical: sem olhar para a mão esquerda, encontra todas as posições como se tivesse nascido fazendo aquilo, deixando a impressão para todos que basta colocar alguns dedos sobre as cordas que as posições se completam sozinhas. Já a mão direita é daquelas que fazem o ritmo parecer natural, pois ele flui fácil, quer repercussivo quer dedilhado. Seu repertório é mesclado com sucessos de bar, inevitáveis nessas horas, e músicas quase desconhecidas, mas ótimas, que ele encontra perdidas em discos de Alceu Valença, Belchior, Milton Nascimento, Zeca Baleiro, Jackson do Pandeiro, Gilberto Gil e muitos outros, incluindo aí grandes sambas. Além disso, ele envereda por algumas emboladas que encantam pela rapidez dos versos, pela simplicidade das letras e pela empolgação do ritmo.

Como se trata de um cantor que mistura a técnica e o instinto, o improviso se faz presente e não são poucas as músicas que entram por um caminho diferente, um arranjo porreta tirado na hora, um final esticado ou um novo verso criado por ali mesmo.

Doca não gosta de cantar sozinho. É o que se percebe quando ele, logo do início dos “trabalhos” pergunta por Carlão, seu amigo e percussionista dos bons que adora dar uma canja no Deck. Domingo passado, como Carlão demorasse a chegar, implorou a Elder que, num raro momento, pegou um padeiro e fez o som do Doca ficar mais encorpado. Mas logo Carlão chegou, tomou uma e partiu para o batuque, no que foi coadjuvado por ninguém menos que Ding Dong, que também deu as caras por lá, fazendo a tarde domingueira muito mais prazerosa.

Durante a Copa, Elder vai botar um telão no Deck. Domingo que vem o Brasil joga às 13h. Depois do jogo, tem, claro, Doca Furtado, que vai ficar torcendo não só pela seleção, mas também para o jogo passar depressa que ele quer mais é cantar. 

domingo, 1 de maio de 2016

Da arte de fazer cerveja



Antônio Contente

Hoje as chamadas cervejas artesanais tomam conta das prateleiras dos grandes supermercados, mas nem sempre foi assim. O que não quer dizer que, no passado, elas não existissem. Existiam sim, porém feitas por poucas pessoas. Algumas, até, obrando apenas para consumo próprio; ou para degustar com amigos.

Assim foi que, num dos meus aniversários, no século passado, uma amiga chegou ao apartamento onde eu então morava, no Cambuí, trazendo vários pacotes. Ante meu natural espanto, disse logo que se tratava de presente pelo natalício.

— E o que você está me dando — perguntei — um ultraleve desmontado?

Ao mesmo tempo que depositava as coisas na copa, respondeu com um “você sempre soube que eu gosto de dar presentes práticos”. E após, a me olhar nos óculos:

— Como com essa crise que está aí pode faltar até cerveja, e sei o quanto você adora uma bem gelada, vou te ajudar a não ter problemas.

— Ótimo — coço a cabeça — mas, pelo formato dos pacotes que você trouxe, não se trata de garrafas.

— O problema — ela me encara com seu inegável encanto — é que não estou lhe dando um peixe frito.

— Não? — Levanto as sobrancelhas.

— Não, querido, eu estou te ensinando a pescar.

— Ora... — Eu tateava, meio em dúvida.

— Pois é – ela abre os braços — aí você tem uma mini-fábrica de cervejas. A partir de agora, você poderá fabricá-las aqui, na sua casa.

— Poderei? — Levo as duas mãos ao próprio peito.

— Claro — ela garante — até porque é facílimo.

— Mas e os ingredientes? — Indago — Onde vou achar os ingredientes?

— Ali — ela aponta para dois dos pacotes. Em seguida, enumera: — Te trouxe malte, lúpulo, fubá de milho, açúcar, fermento cervejeiro e o gritz...

— O quê?

— Gritz — ela repete — mas não se impressione que é moleza manipular essas coisas. Exatamente como fazer uma limonada...

— Bem — volto a coçar a cabeça — não tenho, quanto às minhas habilidades, a mesma confiança que, a respeito delas, você demonstra ter.

— Então preste atenção que vou lhe dar uma aula, a partir da receita básica da cerveja escura, que a que você mais gosta.
Dito isto, desembrulhou um belo balde de metal, explicando:

— Vinte horas antes de começar o preparo, você ferverá, aqui, 20 litros d’água, filtrada, por 15 minutos. Quando terminar, faça a aeração.

— Aera... O que?

— Aeração. Passe o líquido de um recipiente para outro, várias vezes; a fim de que o oxigênio volte à H2O.

— Bom, parece fácil — admito.

— Claro — ela concorda — daí você coloca o lúpulo de molho em água durante uma hora.

— E o malte? – Arrisco, já com ares de entendido.

— Muito bem — ela aplaude — você lava o malte em uma peneira, como se lava arroz.

— E então está tudo pronto? — Meus pobres olhos se iluminam.

— Não — a linda amiga sorri — agora você bate o malte no liquidificador até formar uma pasta. Enquanto isso, numa panela, você coloca seis litros d’água, o malte triturado, o gritz e duas colheres de sopa de farinha de trigo.
Nesse ponto, mesmo percebendo que o negócio se complicava, continuei atento. A lição continua:

— Agora você pega aquilo ali, que é o termômetro-cervejeiro, para chegar à brasagem.

— A o que?

— À brasagem, que dará o mosto.

A aula ainda durou um bom tempo e bem depois, ao ficar sozinho, me encontrava não apenas cansado, porém quase exangue. Contudo, como a criatura que me dera o presente era, de fato, muito especial, arregacei as mangas e coloquei mãos à obra. Em pouco tempo minha copa e cozinha estavam transformadas num verdadeiro chiqueiro e, desesperado, quase chego a gritar.

Por fim, transtornado, liguei para a faxineira, contratei hora extra prometendo pagar em dobro, e, assim que ela chegou, eu saí. Direto para uma loja de importados, onde comprei uma caixa de cerveja irlandesa Guinness. Depois, com a casa limpa fiquei quieto no meu canto e, uma semana depois, chamei a amiga para experimentar minha grande obra cervejeira. Assim que ela provou o que servi de uma bela jarra de vidro, seus olhos brilharam e veio a exclamação:

— Meu Deus, você é um gênio. Isso está melhor do que a melhor cerveja europeia.

Poucos dias depois saiu uma bolsa de estudos que minha doce amiga esperava fazia dois meses, e ela viajou pra Londres. Naqueles velhos tempos, pré-internet, ainda se usava remeter cartões postais. Recebi um dela, passadas duas semanas, dizendo assim: “Ontem, após as aulas aqui, saí com amigos e tomei uma bela Guinness. Não sei por que, mas lembrei de você. Até hoje, como casou com um britânico e não voltou mais pra Campinas, ainda desconfio que, de fato, ela sempre sacou o que havia na jarra que usei para servi-la...

terça-feira, 8 de março de 2016

O papagaio lulista


Antonio Contente

Ela me ligou pra perguntar, à queima-roupa, se eu poderia tomar conta de um papagaio. Vazei, claro, algum espanto, porém veio a justificativa: —O problema é o seguinte: ficarei uns dias nos States, a trabalho pela Unicamp, e queria que você tomasse conta do Marcão.

—De quem?

— Do Marcão. O meu papagaio.

Confesso que, nas circunstâncias, me senti encurralado. Afinal, nunca me passou pela cabeça tal tarefa. Gemi um “será que terei competência”?

—Claro—ela garante, eufórica — não tem mistério nenhum.

—Bom...

—Olha aqui—a amiga se torna coloquial —, no lugar que você mora tem espaço, não é mesmo? Pois basta isso. Eu levo o poleiro do Marcão praí e pronto.

— E quanto à alimentação do bicho? Almoça o que, essa fera?

— Deixarei tudo o que ele come com você. Será moleza.

Foi assim que, no dia seguinte, acordei com uma algazarra na área de serviço, e custei pouca coisa a sacar do que se tratava. Me dirigi então ao papagaio: — Quer fazer favor de ficar  quieto, meu?! Ainda não deu nem seis horas da manhã!

—Veado! Veado!!!

Recuei, espantado, e me apoiei na máquina de lavar, para não cair.

— Veado! – O papagaio mais uma vez bradou.

— Escuta aqui, seu bichinho safado — ergui o indicador – veado é o escambau, tá?

Mesmo assim, dei pro sacana um pedaço de abóbora e me manquei.

Na verdade, porém, o fato se repetiu nos dias seguintes. Antes das seis o pássaro começava a grasnar, eu ia a ele, era chamado de veado e lhe dava uma lasca de jerimum ou uma goiaba.

Tudo, porém, até poderia terminar bem não fosse que, certa manhã, o louro me acordou a cantar o “Lula Lá”, aquela musiquinha miserável da primeira eleição do ex-metalúrgico. Corri pra área e a ave me recebeu, a dizer:

—“Lewandovsky bom, Lewandovsky santo! Juiz Moro ruim, juiz Moro demônio”! E repetiu  isso três vezes.

Verdadeiramente estarrecido, recuei; ele voltou a cantar o refrão do “Lula Lá”. Completando:

— Sítio Atibaia não dele! Apê Guarujá não dele!

Nesse instante, minhas entranhas ferveram. Completamente descontrolado voei sobre o animal e, com as duas mãos, o estrangulei. Porém, só no instante em que larguei sobre o piso o verde corpo inerme, caí na realidade com um “santo Deus, o que fiz”?

Meu primeiro impulso foi esconder o, digamos assim, cadáver.  Entretanto, veio logo à minha mente a figura da dona do bicho que chegaria a qualquer momento de viagem, e não poderia constatar que sua ave de estimação, que amava de paixão, fora, simplesmente, assassinada.

Nesse instante lembrei que no Largo da Concórdia, no lendário bairro do Braz, em São Paulo, resiste uma feira que vende, mais ou menos à sorrelfa, várias espécies de aves, inclusive papagaios e até cacatuas.

Daí liguei para o meu amigo professor Odair Borges, dono da mais famosa academia de judô de Campinas, que conhece Sampa como as palmas das próprias mãos, contei o sucedido
e pedi que me levasse ao destino desejado no seu carro de luxo. 

Carona conseguida, enfiei o defunto numa caixa de sapato vazia e, com a estranha e pesada sensação de que mil olhos me espreitavam, fiz aquela que estava classificando, apesar da esplêndida companhia do generoso parceiro, como viagem macabra”.

Pelas 10 horas da manhã chegamos diante de um vendedor e, ofegante, mostrei a ele o corpo inerme de Marcão.

Pedi:  — Pelo amor de Deus, você tem que me arranjar um igual.

— Igual como? – Ele me encara.

—Me refiro—expliquei—ao mesmo jogo de cores das penas, e até esta pintinha amarela aqui no papo. Pago o que for preciso.

De fato constatei, instantes depois, que se o falecido possuía um irmão gêmeo, eu acabara de achá-lo. Nessas condições,  satisfeito, regressamos pra Chácara da Barra e, dias depois,
quando a amiga voltou na América, ainda de Viracopos me ligou:

— E o meu papagaio? Tudo bem com ele?

—Nunca esteve tão maravilhoso – respondi.

Em mais algumas horas, sorridente, ela batia na minha porta. Rápido fiz com que entrasse e a levei para junto do poleiro do novo Marcão. Disse: 

— Aqui está, querida, sua maravilhosa ave, com dois maravilhosos detalhes totalmente surpreendentes.

—Quais? – Ela sorriu.

— Primeiro, você descobrirá que Marcão não chamará mais as pessoas que detesta de veado; segundo, deixou de ser lulista. Eu o eduquei, através de uma baita lavagem cerebral.

—Ah, não tem importância— ela suspirou — é que esse papagaio, antes de vir pra minha casa, morou um tempo com a professora Marilena Chauí.

—Quem?

— Marilena Chauí, da Unicamp, como eu. É aquela que disse, num discurso, que quando Lula fala o mundo se ilumina...

Então me agradeceu pela guarda, pegou o bichinho e foi embora, felicíssima. Acho que cometi o crime perfeito. 

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Réveillon numa vitrine azul


Antônio Contente

Sempre, em qualquer coisa que se faça ou que nos cerca, dorme a possibilidade de uma história. O simples tropeçar numa pedra, por exemplo, pode render romance de muitas páginas; bastando, para isso, que, após a topada, se caia sobre uma linda mulher. Assim foi que, naquela manhã na rua Augusta, em São Paulo, Claudinha fazia hora para almoçar, parando diante de algumas bem arrumadas vitrines. De repente, numa delas, o que chamou sua atenção foi o azul a preponderar na decoração. Tratava-se de famosa joalheria onde, num dos escaninhos por trás do vidro, repousava, sobre pequeno tufo de cetim cor do céu, um lindo colar. Absolutamente encantada ela cravou o olhar sobre a joia e, quase em transe, permanecia como que hipnotizada pela peça, onde cintilavam algumas pedras, prováveis diamantes. Então escutou, como se viesse do infinito, a voz de homem, a dizer:

— É seu.

Como se acordasse de transe a moça, lindíssima no esplendor de seus vinte anos, olha para trás onde estava um senhor elegantíssimo, de terno, cabelos grisalhos nas têmporas. Cinquentão.

— É seu — ele repete, com um meio sorriso de Rhett Butler, aquele de ...E O Vento Levou, no canto dos lábios.

Recomposta, Claudinha pergunta, com luminosos olhos de verdor intenso:

— O que é meu?

— O colar, naturalmente. Você não o estava admirando? — aponta — Pois é seu.

— Ora, eu...

— Por favor, não diga nada — o coroa levanta as mãos — sejamos objetivos.

Daí murmurou, com voz calma e pausada, que, como o Natal havia passado, mas ainda estavam no dia 28, gostaria de oferecer a ela, como presente de Ano-Novo, a linda joia que luzia na vitrine azul.

— E você quer fazer isso por que? — Havia certo tom de desafio na voz da moça.

— Por causa dos seus lindos olhos verdes. Exatamente iguais aos da minha filha que, por estar morando na Inglaterra, não passará o Réveillon comigo.

Então aponta a entrada da joalheria e Claudinha, como que hipnotizada, vai com ele. Para, logo depois, ter colocado no seu colo, pelo vendedor, diante de um espelho de cristal, o colar. Em seguida acondicionado numa finíssima caixinha devidamente embrulhada para presente. Saindo, a jovem fala ao presenteador:

— Mas eu nem sei o que dizer. Isso parece coisa de conto da Carochinha.

Sempre com o sorrisinho de canto de lábios, ele enfia a mão no bolso do terno finíssimo, certamente feito sob medida, retira e entrega um cartão. No qual estava somente um nome, “doutor Porto”; e um número de telefone. Nada mais.

— Feliz Ano-Novo — ele estica a mão.

Foi embora, deixando a moça ali de pé, estática, como se estivesse em transe.

Pois bem, tal história Claudinha, hoje uma senhora com mais de 70 anos, me contou tarde dessas quando a encontrei num café, no Cambuí. Naturalmente achei o caso incrível, tanto que pedi detalhes.

— Pois é — ela então seguiu — na época, anos 50, eu era estudante em São Paulo e dividia apartamento com uma colega.

Detalha que ao chegar em casa, excitadíssima, contou para a amiga o que acabara de ocorrer. Ouviu então o conselho, sem meias palavras:

— Ora, pelo amor de Deus, o que você tem mais que fazer é ligar pro homem. Sabe-se lá se não é um dos donos das Indústrias Reunidas F. Matarazzo...

Feito o telefonema, ela recebeu convite para passar o Réveillon na festa que, todos os anos, ocorria num dos mais luxuosos hotéis de São Paulo. Marcaram encontro na porta e, quando o fulano, elegantíssimo, chegou, lá estava Claudinha, até meio trêmula, tendo, no pescoço, a reluzir, o belo colar que ganhara. Nesse ponto eu interrompo com um “pelo visto foi uma história com final feliz, não é mesmo”? Ao que ela respondeu: “Bom, depende”.

Detalhou então que o Réveillon foi maravilhoso, com muito champanhe, o que costuma levar às maiores loucuras. Porém a surpresa maior ocorreu ao despertar, manhã alta, num dos apartamentos do hotel. É que o cinquentão de têmporas grisalhas, simplesmente, havia sumido, não estava mais lá.

— Bom — eu dou um suspiro — mesmo assim as coisas não terminaram mal.

— Sim, não terminaram mal; porém o colar, que o galã pedira que eu fosse à festa usando, foi embora junto com ele...

Ali no café do Cambuí, eletrizado com o que ouvira, eu não sabia o que dizer. Até que Claudinha, afinal, suspirou:

— Olhe, da joia não senti falta nenhuma; afinal, não significava mesmo nada. O que, até hoje, não esqueci, foi a noite de amor. A mais maravilhosa de toda a minha vida...

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Conto de Natal


Antônio Contente

Por uma dessas insondáveis circunstâncias do amor ele foi morar, pouco antes do último Natal do século passado, num agradável recanto longe deste insensato mundo, num então agradabilíssimo subúrbio do Rio de Janeiro.

É que no distante bairro, com a palavra Vila antes do nome, a namorada possuía imóvel, abrigo certo para o sentimento nascente, em solidificação. Durante alguns meses lá ficaram ao sabor dos bons instantes.

E o pedaço no qual se instalaram tinha belo verde por perto, além de pequena baixada pela qual corria cristalino filete d’água; que se não era suficiente para atrair garças, dele vinha, nas noites de Verão, o coaxar de rãs que serviam de fundo musical para o cenário de campos do interior, como os de antigamente.

Por ali os pequenos instantes que levam à felicidade brotavam das coisas simples. Ele gostava, por exemplo, nas manhãs frescas dos sábados, de colar barriga à pia da cozinha para lavar folhas de rúcula.

Isso enquanto, no som, um velho elepê de Nat King Cole espalhava a suave melodia do The Very Tought of You, a dizer: “Pensando em ti/ Me esqueço de fazer/As pequenas coisas normais/ Que cada um deve fazer./ Estou num sonho/ Estou feliz como um rei”...

E então lá vinha Sílvia, cabelos curtos e riso alvo. Para, subitamente, aos espantos de ninguém, saírem a dançar pela sala.

Que se alongava em pequena sacada sobre a qual as pétalas das margaridas batiam na grade térrea.
Convite a que Narieldo, soltando a moça, pulasse para fora; colhido o raminho, entregava a afirmar que continha, também, essências dos cantos dos passarinhos que moravam no bairro sem nunca dele sair.

Em muitas manhãs Narieldo entregava-se a um barroco gesto. Ao acordar, lusco fusco no quarto, Sílvia a ressonar, ele se ajoelhava no chão, ao lado dela. Na primeira vez em que percebeu, a moça soltou um espantado “o que é isso”?

— Rezo — ouviu a resposta.

— Reza?

— Para agradecer aos deuses a glória de ter acordado ao teu lado...

Já na morada fazia quase um mês, certa madrugada Narieldo escutou som que parecia chegar de muito longe. Era um apito, prolongado. Que, ao concluir o rapaz vir de algum trem, passou a acreditar ser pranto das velhas estradas de ferro sendo destruídas. E tal gemido, lamentoso, se repetiu em outras madrugadas.

Até que na véspera do Natal, noite de chuva e até algum frio no verão carioca, o moço despertou com o som.

Como sabia que os trilhos da estrada de ferro que tivera dias de glória não passavam muito longe, deixou a cama com jeito, agasalhou-se e, silenciosamente, saiu. Queria, a todo custo, ver, com os próprios olhos, o trem moribundo.

Só que, pouco depois, Sílvia também acorda, não vê o marido e o chama. Sem resposta, levantou; apavorada, descobriu que o fulano não estava no apartamento. Enrolada em agasalhos, sentou na sala. 
O coração pulsava forte enquanto, apesar do dezembro, a sensação de frio aumentava.

Faltava pouco para amanhecer, alguém enfia chave na porta. Vendo Narieldo entrar, ensopado, ela salta:

— O que foi? Onde você estava?

Antes de responder, ele puxa cadeira e senta. Arfa, a voz cansada:

— Escutei, no nosso quarto, o apito do trem que passa quase toda madrugada naquela linha lá embaixo. Como isso sempre chegou aos meus ouvidos como um suspiro de lamento das locomotivas que estão morrendo, saí; queria ver a composição passar.

— E viu?

— Sim, claro, vi.

— Mas, Narieldo, você não pode ter visto. Não passa um trem por aquela linha faz mais de dois anos!

— Impossível. Pois ele chispou ao meu lado, senti até o vento de sua carreira bater no meu rosto...
Ficaram calados. Súbito, o rapaz levanta:

— Espera, acho que você tem razão, pois o trem correu diante de mim sem fazer barulho; parecia flutuar no espaço... Vai ver tudo isso é apenas efeito do nosso primeiro Natal aqui...
Novo silêncio; Narieldo senta, a dizer:

— Mas, na hora em que virei as costas para voltar pra casa ouvi, nitidamente, o apito; como um lamento... Sem dúvida, é coisa de Papai Noel...
Naquela mesma manhã o assunto entre os dois esgotou-se, nele não falaram mais. E tempos depois, com o caso d’amor terminado, nosso herói contou a história para um amigo. Que indagou:

— E o som da ferrovia? Depois que você saiu daquele bairro morreu para sempre?

— Não, às vezes eu o escuto, aqui mesmo à beira mar, em Ipanema.
Pegou a taça de vinho, deu um gole. Para concluir:

— Afinal, meu caro, os amores eternos são os que duram apenas o tempo de um apito de trem; que, contudo, não deixe de soar. Estou a ouvi-lo sempre nesta época de fim de ano quando, em insônias, nas madrugadas, sinto baita saudade daquele Natal; e dos braços de Silvinha...

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

"A Noite do Meu Bem"


Edmilson Siqueira

Comprei hoje o livro “A Noite do Meu Bem – A História e as Histórias do Samba-Canção” de Ruy Castro. Li, enquanto sorvia um café perto da livraria, ali no Shopping Iguatemi, o prólogo com umas 15 páginas que prepara o leitor, de modo magistral, para entrar no clima em que o samba-canção invadiu corações e mentes do Rio de Janeiro e que perduraria por duas décadas mais ou menos.

Ruy Castro sabe contar histórias verdadeiras. Fidelíssimo a tudo que pesquisa, seu texto se incumbe de dar aos fatos um sabor de novidade inesperado, transformando em saborosos quitutes histórias que, mesmo se conhecendo, surpreendem a cada linha.

Entrevistei Ruy Castro em março de 1993, aqui em Campinas, na livraria Letras e Arte, que ficava entre o City Bar e o Paulistinha, para o lançamento de “O Anjo Pornográfico”, magnífica biografia de Nelson Rodrigues. À época ele estava escrevendo a biografia de Mané Garrincha e me falou algumas coisas sobre ele. E já havia escrito “Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova”. Escrevendo sobre a bossa nova e seus geniais criadores, a vida e o teatro de Nelson e a vida e o futebol de Garrincha, Ruy produziu material inestimável para a cultura brasileira. E ele escreveu muitos outros - e ótimos – livros.

A entrevista feita há 22 anos foi manchete do Caderno C do Correio Popular no dia seguinte e Jary Mércio, meu "editor-chefe”, tascou a manchete: “Ruy Castro dorme com seus personagens”. A frase, dita de outra maneira, era do próprio Ruy que havia contado que, após coletar todas as informações possíveis sobre seus personagens, se isolava de tudo e de todos para escrever, só pensando no texto, dia e noite.
A capa interna do livro é recheada de anúncios das casas noturnas 
 cariocas dos anos 40 e 50, quando o samba-canção reinava absoluto
Pois esse livro, cujo personagem principal é o samba-canção, deve ser parecido com o da bossa nova, com pequenas e deliciosas biografias dos compositores e de toda aquela gente que contribuiu, de um modo ou de outro, para a explosão e a permanência do gênero por tanto tempo na produção musical brasileira. A diferença talvez esteja no sucesso que a bossa nova alcançou no mundo (até hoje, por sinal) enquanto que o samba-canção ficou mais restrito ao Brasil, mas deve ter vendido muito mais disco por aqui. Só que ainda não sei. Escrevo esses comentários ao sabor de um prólogo que me encheu de expectativas para ler o resto – e olha que o samba-canção, embora aprecie muitas obras primas do gênero, não está entre os tipos de música que mais admiro.

Mas sei que, além de ficar sabendo de tudo que o samba-canção fez nos corações e mentes de mais de uma geração de cariocas – e brasileiros em geral – terei, no livro, um panorama do Brasil dos anos 1940/50 e parte dos 60 que poucos historiadores poderiam oferecer. Não em detalhes históricos próprios de debates acadêmicos, mas nos fatos que se transformaram em canções, nos cenários que inspiraram os autores, nas fossas todas de onde saíam as letras e nas outras fossas que elas causavam.

Logo de cara, ainda no prólogo, Ruy derruba um mito: o de que o presidente Eurico Gaspar Dutra acabou com os cassinos a pedido de sua mulher, cujo apelido, não por acaso, era Dona Santinha. Dutra foi atrás de popularidade e ouviu conselhos de gente bem próxima dele que, se proibisse, o povo o apoiaria. Os conselhos foram de seu ministro da Justiça, Carlos Luz, que tinha contra os cassinos broncas morais e religiosas. Mas isso é só um exemplo da riqueza histórica que qualquer livro de Ruy Castro nos proporciona.

Por isso, nos próximos dias, apaziguando minh’alma dos tremores políticos, dos incêndios diários em Brasília, dos discursos inflamados de imbecis consagrados pelo voto, terei o bálsamo de viajar por um Brasil que, tenho certeza, era bem melhor que o atual: o Brasil do samba-canção que antecedeu o Brasil da bossa nova, um tempo em que, conforme o próprio Ruy escreveu na dedicatória que me fez no Chega de Saudade, “o Brasil ia para o Primeiro Mundo”. O grifo no verbo foi dele. 

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

O irlandês dos lugares incomuns


Antonio Contente

Pelas barbas do profeta!, como não lembrar de McCallum, o irlandês, no já andar deste criativo outubro. Afinal não foi outro, senão o gringo, a me mostrar, pela primeira vez, que é às brisas deste mês que as sibipirunas de Campinas em geral, da Chácara da Barra em particular, espalham pepitas d’ouro pelo ar e pelas calçadas.

Ora, amigos, façamos, antes de mais nada, merecidas louvações àquilo que os cultores dos preciosismos do estilo criticam como sendo “lugares comuns”. Com que prazer me refiro às florinhas amarelas, que as amadas árvores dispersam, como pepitas do mais puro ouro a tornar ruas, vielas, jardins, telhados ou mesmo restritos altos de muros, em repositórios de sagrados tesouros.

Sim, falava de McCallum, o irlandês, velho amigo que por aí segue, correndo mundo, mas foi meu parceiro de copo em tantas tardes nos belos tempos da rua de Cima, caminho de Santiago de Compostela que me levava da casa ao bar da esquina. Sábio homem de português perfeito na sua intimidade com inúmeras línguas. Quantas vezes, da cadeira do buteco com sacada para a noite, onde sentávamos, chamou-me atenção para os luares que se derramavam sobre asfaltos, galhos ou beirais curvados à espera das águas.

— Veja, me disse certa ocasião: — aí temos o céu, neste plenilúnio, cobrindo de prata, de argênteo, a pequena paisagem deste instante que necessitamos para viver.

Ora, amigos, benditos os que seguem chamando luar de plenilúnio, ou que não se importam de denominar, com todas as letras, de argênteas as luzes que as circunstâncias de uma lua que vem da Ásia depositam em mentes e corações.

McCallum agora, pelas notícias que dele recebo sempre, via e-mail, está residindo em Bhaktapur, cidade fundada no século XII no Vale do Katmandu, no Nepal, tornada Patrimônio da Humanidade nos idos dos anos 70 do século passado.

Garantiu-me que já fala com certo desembaraço a língua local, o newari, a ponto de nela fazer orações ao deus Ganesh. Utilizando-se dos maravilhosos lugares comuns que os intelectuais odeiam mas eu adoro, me disse assim, em outra mensagem:

“Meu amigo, a lua, aqui, nasce sempre como um disco de prata. E de prata é o caminho de luz que traça sobre o lago Runishá onde as brisas, perfumadas como os cabelos da amada, chegam sopradas pelos anjos”.

Na Chácara da Barra d’outrora o aventureiro irlandês só se referia aos passarinhos do bairro como “alados príncipes dos céus”. Certa tarde, quando eu percorria o Caminho de Santiago de Compostela ao contrário, ou seja, do bar para casa, eu o vi a gesticular junto dum muro perto da mansarda em que morava. Fui chegando devagar e percebi, sem identificar direito as palavras, que falava em inglês. Não resisti e indaguei: “Falando com alguém ou sozinho”? Ao me olhar, respondeu: “Você não está vendo? Converso com nosso amigo sanhaço”.

— Mas em inglês?, respondi.

— Você é que pensa que ele só entende português. Passarinhos sacam o que queremos pela entonação do que dizemos.

— Bom, retruquei, olhando em volta: — não estou vendo sanhaço nenhum.

— E você acaso acha que, para falar com eles, os bichinhos precisam estar aqui?

Ontem de manhã, na rua Pereira Barreto, observei, entre as muitas sibipirunas, uma absolutamente a explodir em flores. Os tufos que galhos formavam eram simplesmente inusuais. Pois, na parte de baixo, predominava só o verde forte das folhas. Porém, ao subir, elas como que se arredondavam formando espécie de balão, como os que flutuam na Capadócia ou em Porto Feliz. Parando, pálido de espanto, para admirar, vejo que o verdadeiro globo terrestre de florinhas amarelas soltava, em doses certas, pétalas ao vento.

Como diria meu amigo McCallum, pepitas de ouro a se dispersar à luz da manhã não para o nada, sim para formar maravilhoso tapete de pepitas sobre a calçada. Tapete enorme e inconsútil, que bem poderia, de repente, decolar; como o de Aladim e a lâmpada maravilhosa.

Por fim, vale dizer que esta crônica saiu mais por causa da mensagem que troquei com McCallum ontem à noite. De repente pedi que me contasse pelo menos uma das suas grandes saudades dos tempos da Chácara da Barra.

— Ah, meu amigo, senti o suspiro dele na tela do notebook: —não há nada que mais me faça lembrar daí do que as sopas da Lulu.

Rapidamente recordei que se tratava de vizinha nossa, adorável, amante de bons vinhos, que de vez em quando nos convidava para um prato do divino caldo. Tão maravilhoso, que, lá do Nepal, o irlandês assim se lembrou:

— As sopas da Lulu, meu caro, sempre deslizavam para dentro de mim como cálida, inesquecível canção escrita pela linda moça.
Ah, sim, a compositora das iguarias foi o grande amor da vida de McCallum.