sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Aparição



Antonio Contente

Dez horas da manhã, luminosa manhã, na calçada em frente ao bar Giovannetti, no Largo do Rosário. De repente, não se sabe vinda de onde, a aparição. Vinte, vinte e dois anos, no máximo. Sobre o corpo um leve, quase diria diáfano vestido de seda azul feito para a carícia do corpo ante as sutilezas da brisa matinal. Alta, bem alta para mulher, 1,75, talvez 1,78. E ela, além de tudo, se move.

Anda, com os cabelos castanhos claros iluminando o tempo. Por instantes senti que deles vinha um perfume, e um perfume só é realmente bom quando temos a impressão que emerge de nossas melhores recordações de um passado remoto. Channel. Número Cinco...

Agora não eram só meus olhos, parcos olhos, que a viam. Movimentava as pernas esguias, galgas, com elegância de bailarina necessariamente russa. Isso para ressaltar o contorno calipígio nas ancas bifurcado; após, a barriguinha doce em seios maliciosamente verticais, pêras quase fartas. Setas para o céu, caminhos para o infinito, certezas para o azul, simplificação para todas as linhas que os artistas buscam em vigílias e lamentos. Grito desdobrado, subitamente, em canção.

Vai ela, no rumo da Francisco Glicério. Perseguida pelos ventos que disputavam a carícia dos seus contornos, e já meia dúzia de pessoas, que, como eu, passaram da hipnose à condição de autômatos.

Abre o sinal e ela passa em direção à Praça Guilherme de Almeida. Uma esquadrilha de pombos, talvez saída dos escaninhos dos antigos prédios da Barão de Jaguara, a acompanha em formação de alvoroço e enleio.

Fecha o sinal da Conceição, a moça para ante o devoto silêncio da já pequena multidão. Vemos que seus ombros são tostados, um bronzeado de pintura de antigas cintilações de madonas. Perfeitos no contorno da severa precisão, com charme de duas pintas num deles, talvez a assinatura de algum deus que também deu seu toque na clave de sol da singularíssima pessoa. 

Vamos todos, ela à frente, para a calçada que passa em frente ao Itaú. Os passos da aparição não se alteram, fazendo sulcos dourados num prosaico cimento que, de repente, vira Calçada da Fama. Dos olhos da criatura passo a ter apenas uma desejada certeza. Azuis. Irremediavelmente azuis, como o gesto do encanto e a canção primeva. Azul como o primeiro suspiro de Deus após ter feito a mulher, certo de que chegara à sua obra máxima. E ela estava ali, no passeio, entrando na praça em frente à Catedral. Víamos a Eva que fora depositada sobre o Paraíso. 

Não minto, do velho templo esvoaçaram anjos. Não eram mais os pombos da Barão de Jaguara e sim anjos, dos altares e dos púlpitos saídos, em formação de auréola e respeito à beleza. Luz a luz, louro sol sobre trigal em festa. 

Os cabelos bons são aqueles que se ajeitam ao desalinho. Vento dos arcanjos, sopro dos santos, os fios beijavam a testa da aparição acariciando não só a ela, porém à manhã inteira. Diria que os que agora acompanhavam a criatura eram centenas. Não um exército de famintos, sim um exército de alimentados.  

Caíra sobre nós o manjar dos céus, se abrira o mar ente o gesto de Moisés pasmo pela beleza e pelo seu melhor fruto, antecipação de um decálogo das perfeições mais que perfeitas. E em todos nós se consubstanciava um silêncio posto na sua versão de absoluto.  

Em tal instante, no centro mais movimentado da cidade, nenhuma buzina, nenhum motor roncando, nenhum alarido de vozes ou contidos suplícios. Só os passos dela, da aparição, ecoando na calçada. Sandália dourada, apenas duas ou três tiras contendo os pés de Cinderela às vésperas do casamento com o príncipe.  

E então nós, os hipnotizados, éramos milhares.

Raio absurdo do céu, catástrofe apocalíptica mandada do infinito, de repente um dragão a absorveu. Revelado na sisudez de um velho prédio quase na esquina da Ferreira Penteado, a boca transformada em porta a levou. O suspiro da multidão se ergueu com pasmo e desesperança. Campinas, dez e meia da manhã. Uma manhã que, afinal, até hoje não consigo saber se realmente existiu. Apesar do perfume que ficou, para sempre, no ar... no ar...

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Uakti em Bê Agá



Edmilson Siqueira

Zezé e eu estamos indo amanhã, sexta-feira, 16 de novembro, para BH. Não, não conhecemos BH e vamos conhecer só um pouco, já que a gente volta no sábado, começo da noite. No meio dessa correria, um show do grupo Uakti interpretando Beatles. Pra quem conhece o Uakti já pode ir imaginando o que eles fizeram com as canções dos Fab Four. Não, não pode não, é melhor ouvir alguma coisa antes. Tem na rede, no Youtube, um making of muito bom. É coisa de arrepiar quem, como eu, foi amante dos Beatles e dos Rolling Stones e hoje também curte boa música instrumental, jazz principalmente.
O Uakti é um desses fenômenos que, acho eu, poucos países no mundo podem produzir. Um grupo de 4 em que só três tocam. O outro compõe e cria instrumentos. Sim, isso mesmo: cria instrumentos. Não sei os nomes deles todos (dos instrumentos, aliás, nem dos músicos) mas Zezé foi amiga do criador, Marco Antonio Guimarães, e me contou alguma coisa a respeito dessa figura. Ele via música em qualquer lugar. Olhava para um desenho de ladrilhos na parede e cantarolava internamente o som que eles estavam exprimindo. Um dos instrumentos é feito com tubos de PVC de vários tamanhos para dar notas diferentes. Usavam um chinelo havaiano para bater na boca dos tubos - e o som saía grave e bonito. Hoje já não usam mais o prosaico chinelo e sim um treco próprio, eu vi no making of, e o som continua magnífico.

Tenho alguns CDs do grupo e já fui a um show deles no tempo em que o Centro de Convivência existia. Emocionante é o mínimo que se pode dizer do som e da música que eles fazem a partir daqueles estranhos instrumentos. Claro que tem flauta, violão, contrabaixo, convidados e sei lá o que mais, afinal os instrumentos criados não estão ali por puro exotismo e sim porque eles fazem um som diferente que combinam com os sons tradicionais e o resultado é de deixar qualquer um pasmo.
Antes de iniciar esse parágrafo fui dar uma olhada novamente no Youtube. Tem bastante coisa deles lá, inclusive Here Comes the Sun inteirinha. E, claro, o making of que citei no início. Há uma mulher no grupo nessa música que, quando assisti em Campinas não estava lá. Mas os outros são os mesmos. Aliás, há 30 anos. E os instrumentos usados nessa música - você pode conferir no fim do clip - são os seguintes: marimba de vidro, marimba d’angelin, grande pan e darbuka. Estranho né? Mas o som sai limpo, bonito, dando uma vida nova a uma música que deve ter tido centenas de gravações por aí. Quer ouvir? É só clicar no link: http://www.youtube.com/watch?v=8mPnIEVis88. E na página que abre tem mais Uakti, gravações mais antigas, inclusive uma sublime da Bachiana Brasileira nº 5, que tive a felicidade de ouvir no show aqui em Campinas e tenho em CD. Vale a pena.

Então fica assim: amanhã de manhã embarcamos na Azul em Viracopos, descemos no Confins e vamos prá Bê Agá, curiosos por conhecer um pouco da capital mineira e excitados pelo show que une o talento indiscutível de um grupo que não tem paralelo no mundo com a música que mudou o mundo pra melhor. Sábado a gente tá de volta, com o CD novo na mala e lembranças formidáveis na cabeça.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O primeiro jornal a gente não esquece

Edmilson Siqueira

Acabei de escrever um post sobre o Jornal da Tarde que nos deixou nesta semana e já tenho assunto para outro post na mesma linha: no próximo domingo chega às bancas a última edição impressa do Diário do Povo, o jornal que mais tempo viveu em Campinas. Justamente nesse 2012 ele faria – ou já fez – 100 anos. Um século no qual passou por todas as fases possíveis da imprensa, do velho chumbão à era da informática.
Eu entrei nele em 1977, pelas mãos do advogado Antonio Augusto Chagas, amigo de Romeu Santini que era diretor de Redação à época. A sede – redação, oficina, tudo – ficava ali na César Bierrembach, entre a Dr. Quirino e a Luzitana, ao lado do Sindicato da Fepasa. A redação tinha 3 telefones, mais um exclusivo do diretor. Ficavam numa bancada e a gente pegava o que estivesse livre. Quando tocavam, quem estivesse mais perto atendia. De terça a domingo ele era feito no chumbão mesmo. De segunda havia uma edição extra em offset.  
Não era jornalista, quer dizer, não tinha diploma, mas me virei bem. Tanto que um mês depois de entrar, comecei a cobrir política que, naqueles anos de “abertura” – o general de plantão, Ernesto Geisel dizia que havia uma distensão política, lenta e gradual, no seu governo – era a principal editoria, depois da de Esportes, claro.
Entrava por volta das 13h, pegava a pauta que haviam deixado na minha máquina de escrever e ia pra Prefeitura. Voltava no começo da noite e, duas vezes por semana, escrevia até às 20h e voltava à Anchieta 200, só que agora no espaço da Câmara de Vereadores para cobrir a sessão. Tivesse ou não sessão, eu era ó último repórter a sair, onze e meia, meia-noite, por aí. Dia seguinte tinha curso de Sociologia na Unicamp, quarto semestre. Durou um mês a aventura de ir dormir à uma da manhã e chegar na Unicamp às oito. Como precisava trabalhar, deixei o curso de lado. Entrei na PUCC só em 81 e aí conclui o curso de Jornalismo.
Essa minha primeira passagem no Diário durou pouco também. Uma revista nova, de Jundiaí, sobre economia, queria se expandir para a região de Campinas e me contratou. Fiquei quase dois anos por lá. Mas o Diário foi o início de tudo. Conheci Zaiman, Gilberto Prato (Betoca), Flávio Lamas, Cidinha,  Saviani, Contente, Graça Caldas, Neldo, Nerivelton, Marciano, Nelson Chinaglia, Teresa (nem todos do Diário) e outros que não me lembro, nesses poucos meses que passei por lá em 1977. Foi minha escola real inicial, eu que nunca havia sequer entrado numa redação. Foi ali que tomei contato com laudas, pautas, negativos, fotos, matérias, retranca, reportagem, coletiva, exclusiva, em off, em on, chumbão, offset, abre, lead e toda a linguagem atinente à profissão.
Ao Diário, que se vai centenário, devo as primeiras lições, as primeiras matérias assinadas, os primeiros cacoetes, as primeiras responsabilidades de derrubar uma autoridade apenas com uma reportagem bem feita.
Mas devo muito mais. Em novembro 1982 deixei a reportagem da Rádio Educadora de Campinas (atual Bandeirantes) e voltei para o Diário do Povo, então já instalado no prédio do falecido Jornal de Hoje, ali no Trevo da Anhanguera. Fui contratado como editor. Fazia Nacional e Economia até por volta das 20h e depois ia pra “mesa de fechamento” ajudar na edição local. Cesinha, Marcos Vinicius, Serginho e eu pegávamos a produção diária dos repórteres para enfiar nas páginas locais. Além disso, eu passei a assinar uma coluna que revezava com Zeza Amaral – três dias da semana ele, três dias eu.
Essa segunda passagem foi muito gratificante. Além de aprender a editar – nós mesmos diagramávamos, o jornal vivia numa pindaíba de dar dó e nem tinha diagramador – ter uma coluna tri-semanal foi do cacete. Ali eu podia escrever o que quisesse, a censura era só a do regime militar que estava nos estertores. Em 1984 houve a campanha das Diretas Já, com o Brasil inteiro se mobilizando para que uma emenda que determinava eleições diretas para presidente na sucessão do último general (João Figueiredo) fosse aprovada no Congresso. Escrevi várias colunas sobre o assunto e a última foi convocando todo mundo para o Largo do Rosário, para um ato de vigília no dia da votação da emenda em Brasília.
Mas a ditadura ainda estava forte. Fecharam Brasília e ninguém podia noticiar, por rádio ou televisão, o que estava ocorrendo por lá. E Largo do Rosário lotado para comemorar a volta das eleições diretas,  sem saber o que estava acontecendo na capital do país. Só que as agências de notícias – Estado, Folha, JB – estavam abastecendo os jornais normalmente. As rádios locais estavam proibidas de noticiar qualquer coisa referente à votação, mas os jornais – que só iam sair no dia seguinte – estavam recebendo tudo. Foi aí que alguém teve a ideia de fazer uma ligação direta entre a redação do Diário do Povo e o equipamento de som armado no palanque do Largo do Rosário. Botaram um rádio e um microfone ao lado das máquinas que recebiam as notícias e aí surgiu outro problema: quem iria falar no microfone da Redação para o povo do Largo do Rosário? Naquele momento eu era o único ali que tinha trabalhado em rádio. Sobrou prá mim, claro. E fomos à luta: separávamos as notícias que chegava das agências e as transmitíamos para o Largo. No retorno do som do largo eu percebia a reação de aplauso ou vaia às notícias transmitidas. A cada novo deputado ou senador que chegava e anunciava voto a favor das diretas, todo mundo aplaudia. Quando a notícia era contra a emenda dava para ouvir não só a vaia, mas alguns palavrões também.
Até que anunciei, por volta das 22h, o resultado da votação: a emenda Dante de Oliveira, das Diretas Já, havia sido derrotada pelo plenário e seria arquivada. Eu frequentei muito campo de futebol na vida, mas jamais tinha ouvido, de uma só vez, tanto palavrão quanto no momento em que dei a notícia.

No dia seguinte o jornal fez uma reportagem sobre o “furo” que demos na censura e até eu fui entrevistado sobre o papel de locutor que acabei exercendo e, por força das circunstâncias, dando a notícia triste do fim do sonho das diretas já.  Mas a política é fogo: a oposição conseguiu eleger Tancredo Neves e, assim, adentrávamos, solenemente, na era democrática, dando um pontapé no traseiro da ditadura. Pena que Tancredo morreu antes de assumir e tivemos que engolir Sarney por cinco anos. Mas democracia é assim mesmo: só melhora se for constantemente praticada.
Fica aqui esse pequeno depoimento – há muito mais a contar – sobre o Diário do Povo que sairá às ruas pela última vez nesse domingo. Vai sobreviver virtualmente na rede. Para a nossa geração não  é a mesma coisa, mas eu aprendi, há muito tempo, a não brigar com o progresso.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

JT: *04/01/1966 - + 31/10/2012





Edmilson Siqueira
É bem provável que, em 4 de janeiro de 1966, eu tenha comprado o primeiro exemplar do Jornal da Tarde. Eu morava na Vila Itália, um trecho delimitado por duas linhas de trem entre o Bonfim e a Vila Teixeira. É bem provável porque eu já o lia antes, não como JT, claro, mas como a Edição de Esportes do Estadão, apelidada de Estadinho, que circulava às segundas-feiras e era vendida separadamente.  Eu gostava da modernidade de sua diagramação (nem conhecia essa palavra, acho eu), das grandes fotos e, principalmente, do texto moderno. Não sabia que aquele jornal sobre futebol era o laboratório onde estava sendo urdido o Jornal da Tarde.

Em 1966 aconteceram grandes coisas. No meio do ano, por exemplo, fui passar as férias de julho em Rio Preto e foi lá que eu ouvi a seleção de futebol ganhar o primeiro jogo na Copa do Mundo da Inglaterra, por dois a zero da Bulgária. E perder os outros dois, voltando pra casa naquela que foi talvez a pior passagem do Brasil nesse torneio. E estavam lá Tostão, Jairzinho, Gerson, Garrincha e Pelé.

Mas o JT seguia primoroso: uma grande equipe, talentos esbanjando textos e fotos, criatividade a cada nova capa, a cada nova edição. Eu adorava ler algo daquele jeito, moderno, antenado com a nova realidade brasileira.
Nova realidade brasileira? Peraí. Há dois anos um governo eleito – era o vice que estava no poder porque o titular, entre uma talagada e muitas outras de uísque escocês, renunciara – havia sido deposto pelos militares e estávamos caminhando para uma ditadura. Que só iria se confirmar mesmo, dois anos depois, em 68, quando um Ato Institucional (o tristemente famoso AI 5) acabou com o que restava de liberdade política e social no Brasil.
Com a censura comendo pelas tabelas, o JT, na melhor tradição dos Mesquitas, não se entregou. No lugar das reportagens e artigos censurados colocava receita de bolos. No Estadão, ainda sisudo, mas também disposto a enfrentar o mau humor militar, trechos de Os Lusíadas e de sonetos do grande poeta português. No dia em que o AI 5 foi enfiado goela abaixo dos brasileiros, os milicos proibiram até de dar a notícia. No lugar dela, o JT inovou mais ainda: ao invés da receita de bolo, botou um anúncio de um programa que estreava na Rádio Eldorado, do mesmo grupo: “Agora é Samba!”, estampava o jornal em letras bem grandes na primeira página.
Pelo JT – e depois pelo Pasquim – foi que  acabei adquirindo o gosto pelo jornalismo opinativo que mais tarde iria exercer. Livre das amarraras do texto empolado, do tal do português casto, podíamos escrever mais à vontade, retratar a realidade sem retoques e exercer o fascinante jogo de se exprimir com liberdade. Pena que a ditadura atrapalhava, mas a semente estava ali no JT e iria frutificar. Enquanto o Pasquim inovava no atrevimento e no texto de grandes cabeças – Ivan Lessa, Millôr Fernandes, Paulo Francis, Tarso de Castro – e no traço de humoristas geniais (pelo menos à época) – Jaguar, Ziraldo, Henfil, Fortuna – o JT nos ensinava a ver a realidade como ela era, em textos primorosos, em reportagens sensacionais e em fotografias que ultrapassavam o limite da simples reportagem.Comprei o  em todas as bancas possíveis e quando o dinheiro dava – eram outros tempos, vivia, até 18 anos, da parca mesada. Depois, trabalhando, já podia me dar ao luxo de adquirir diariamente meu exemplado do JT, menos aos domingos, que era, aliás, outra inovação: no dia de maior leitura, não havia JT. Mas ele imperava nas bancas de segunda-feira, numa época em que não havia jornais nesse dia. E mesmo depois, quando houve, o JT continuou imbatível por um bom tempo.
Acho que li o JT até fins dos anos 70, não me lembro bem. Tornei-me jornalista em 1977, lá no Diário do Povo da César Bierrembach e, tenho certeza, muito do que pude escrever veio do que guardei do grande “vespertino” que hoje – dia 31 de outubro de 2012 – desaparece, engolido pela tecnologia que vai engolir, em pouco tempo, todos os outros jornais. Num mundo de tablets e celulares que levam a informação instantânea – o tal do “tempo real” – para você em qualquer lugar do mundo e na língua que você escolher – não haverá mais mercado para jornais de papel feitos de árvores.  Mas ficará a lição que o JT deixou nos seus 46 anos de vida: há sempre lugar para a inovação, para a ousadia e para a inteligência.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Saga galinácea


Edmilson Siqueira

Meu amigo Antonio Contente contou sua história de ladrões de galinha, depois revelou o galo que tanto o entristeceu na adolescência e eu – continuando a saga galinácea do blog – vou contar a história da galinha que tivemos, ainda na Vila Industrial, lá pelos idos dos anos 50. Nada combinado, claro, mas a vida é assim mesmo.
Morávamos numa casa com um quintal que seria considerado generoso para os dias de hoje: caberia outra casa nele e ainda tinha, lá nos fundos, mais uma casa de três cômodos onde morava uma família também.  

O quintal tinha grama – o quarador da dona Carminha – tinha varais, um pé de aloma, um de cana e uma outra arvorezinha que foi ficando menor à medida que crescíamos, mas, na minha infância, era enorme.  
O pé de cana e o de aloma ficavam num canto, perto do muro que nos separava do vizinho do lado e entre eles foi construído um cercadinho, quase um galinheiro, para abrigar a penosa que seu Jamil comprou de um homem que passou na rua. Seu Jamil era assim: não podia passar alguém vendendo algo que ele comprava, para desespero da dona Carminha: “O que vamos fazer com essa galinha?” Ao que Jamil respondeu: “Uma canja, ué?”

- Mas quem mata a coitadinha?, perguntou, aflita, Carminha.    
-Sei lá, é só cortar a cabeça dela.

Não me lembro bem se o diálogo foi esse, mas deve ter sido parecido. O fato é que meu pai e eu nos enveredamos pela construção do abrigo para a penosa e, com uma tela de arame e umas estacas ele ficou pronto. Pequeno, pois a ideia era abrigar a galinha somente à noite. Dentro dele, uma caixa de madeira, grande o suficiente para ela se abrigar das intempéries.  Durante o dia ela teria o quintal inteiro para ciscar.
E assim foi. A galinha ainda não tinha atingido sua, digamos, idade adulta. Bem alimentada – além dos bichinhos do quintal todo, dávamos milho a ela – cresceu e começou a botar um ovo por dia, cuja tarefa de verificar no ninho se o produto já estava lá, me foi dada e eu a realizava com a maior seriedade.

Acho que já fazia um mês que a galinha vivia por ali. Era comum vê-la beirando o tanque, bicando farelos de pão no chão da cozinha e até fazendo pequenas incursões pela sala, onde era recebida com “olás” pela família.
Até que um dia meu pai chegou do trabalho e, como estava de folga no dia seguinte, foi logo ordenando para dona Carminha: “Amanhã quero comer uma canja de galinha”. Isso significava simplesmente que minha mãe teria de fazer a canja. E significava também que o reinado da galinha que passeava pela casa toda e anunciava com altos cacarejos cada vez que cometia um ovo, tinha chegado ao fim.

Quando minhas irmãs chegaram da escola, à tardinha, minha mãe contou pra todo mundo: “Seu pai quer comer uma canja amanhã. Vamos ter de matar a galinha”.
As frases caíram com se ela tivesse anunciado a sentença de morte de um membro da família. Minhas irmãs fizeram cara de choro e eu não fiquei só na cara: chorei mesmo, do alto dos meus seis ou sete anos. “A gente não pode comprar uma galinha já morta?” Não, não podia, mesmo porque naqueles tempos de parcos ganhos, gastar dinheiro com uma coisa que a gente já tinha em casa era impensável.

Mas quem ia matar a galinha? Minha mãe já havia dito que não sabia. A sugestão do meu pai de simplesmente cortar-lhe a cabeça era inviável, já que, diziam, o sangue se perde, a carne fica ruim ou sei lá o quê.
A solução foi recorrermos à sábia dona Noêmia, a vizinha, cuja idade era um mistério para todos. Diziam que ela era filha de escravos e até que ela própria só não foi escrava porque nasceu quando já vigorava a Lei do Ventre Livre, antes de 1888. Filha de escravos ou não, o fato é que dona Noêmia era prática nessas coisas de quintal e galinhas. Pegava a bruta num segundo, com uma agilidade surpreendente para seu corpo já arquejado e grande, colocava-a no colo e, num átimo, dava uma espécie de nó no pescoço da penosa que, imediatamente, tombava a cabeça, inerte, sem um estrebucho sequer.

Assim deve ter sido com a nossa galinha que foi entregue, quase às lágrimas, por dona Carminha para dona Noêmia. No jantar daquele dia foi servida uma majestosa canja que fez seu Jamil repetir o prato três vezes. Dona Carminha comeu pouco – ela não era de comer muito mesmo – mas eu e minhas irmãs, ao nos deparamos com aquele caldo e aqueles pedaços de carne branca, não conseguimos nem experimentar.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Menino, galo e tempestade






Antonio Contente

Nos velhos tempos em que se acordava com o canto deles, eu tive um galo. Foi em Mocajuba, cidadezinha em beira de rio no âmago da Amazônia pré-destruição, anos antes da minha adolescência. Karen Blixen, aliás Isak Dinesen, começa seu famoso “Out of Africa”, que deu belo filme com Robert Redford e Meryl Streep, afirmando: “Eu tive uma fazenda africana”. Pois eu, mais modesto, se um dia contar algo longo sobre a meninice, começarei dizendo que, um dia, tive um galo. Pois só assim, repetindo a autora dinamarquesa, poderei descobrir que todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas. 

Ora, amigos, vamos falar a verdade, poucas coisas podem alegrar tanto a vida de um menino como, de repente, ser presenteado com um galo. Quando o peguei, ofertado por um tio, nem queria acreditar. Era uma ave robusta, de penas avermelhadas que soltavam faíscas ao bater do sol. De quebra exibia crista que caia para o lado; ao ciscar a terra em busca de bichinhos, os colhia com bicadas certeiras, plenas de lampejos e cintilar de raios. 

Assim, naquele mês de férias de fim de ano na cidadezinha, tudo, pra mim, girou em torno do galo. Pessoalmente ia à vendinha pegar o melhor milho e invariavelmente, nos cafés da manhã, enfiava no bolso um naco de pão que triturava depois para o meu amigo, batizado como “Gigante”. 

O dramático, no período, foi a madrugada em que acordei com o trovão de uma das imensas chuvas no chamado inverno amazônico. Não tive a menor dúvida em escapulir da rede e, munido de potente lanterna que sempre ficava na mesa da cozinha, me enfiei no quintal para verificar se a linda ave mantinha-se segura no barracão que servia de galinheiro. Acabei todo molhado, mas constatei que “Gigante” permanecia sequíssimo. 

O que passou a me preocupar, mais adiante, acabou por ser o óbvio: no fim das férias, o que fazer com meu faiscante companheiro? Que barreiras teria que enfrentar para levá-lo comigo pra Belém, a fim de continuar a tê-lo no quintal da casa paterna? Resolvi que pensaria melhor no assunto quando chegasse a hora. 

E ela, naturalmente, chegou. Com surpreendentes lances, aliás, pois a única aparente dificuldade foi o como, digamos, embalaria “Gigante“ para transportá-lo no barco que fazia a viagem de dois dias até a Capital. De resto quem resolveu tudo fui eu mesmo. Peguei um par de grandes paneiros e os coloquei com as aberturas uma contra a outra. Amarraria com bom barbante e pronto, dentro iria o lindo galo que guardava, pra mim, a beleza de todas as auroras que anunciava com seu canto. 

O nosso barco era o “Capitânea”, imponente nome para um flutuante de modestas dimensões. Apenas uma cabine de passageiros, motor barulhento e comprido leme atrás, empurrado para um lado e outro na busca da direção certa. No dia do embarque instalei “Gigante” na proa, junto aos pesados tambores de combustível. Partimos. 

Mas, como disse, era inverno na Amazônia, a exageradamente líquida estação das chuvas, que costuma conduzir no âmago impressionantes temporais. Um dos quais, à noite, nos pegou na travessia da Baía do Muritipucu. Mar de água doce com ondas de mar salgado, a açoitar com violência. Desesperado, tentei sair para trazer o galo pra a cabine, porém fui contido. Por fim, de madrugada, na calmaria normal após as tempestades, saí de mansinho para verificar, com o coração em frangalhos, que a armadura de talas armada para levar “Gigante” tinha sido arrastada pelas ondas. Derramava-se então sobre a superfície líquida imensa, sem terra à vista, esparramado luar de absolutamente prateadas cintilações. Um tripulante do barco veio e, solidário, pousou a mão no meu ombro. Contendo algumas lágrimas, disse ao moço: 

- Nunca mais, na vida, vou ter um galo...

As estrelas que nos cobriam testemunharam. De todas as previsões que fiz sobre mim mesmo, aquela foi a única que não errei.

sábado, 15 de setembro de 2012

Oi, tudo bem?



Edmilson Siqueira


Ganhei um celular para usar no trabalho. Simplesinho, feito para fazer e receber chamadas e mensagens. Ah, serve pra ver a hora e a data também.  É da Oi.
Sexta-feira, começo de noite, recebo uma mensagem da Oi:

 -Promocao Relampago Oi: Quer ganhar R$ 75,00 em ligacoes locais para OI e Fixo? Recarregue R$ 15,00 até 21/09/12. Não perca a oportunidade e recarregue agora!
Como o treco estava sem crédito e tinha virado, como diz o pessoal lá do trabalho, “pai de santo” porque só recebe ligação, pensei: “Vou botar R$ 15,00, ganho R$ 75,00 e acho que dá pra usar por um mês, mais ou menos.

Sabadão, vou fazer minha fezinha na mega e resolvo recarregar o bichinho. Perguntei pra moça do guichê como é que fazia. Ele me deu um papelzinho e pediu pra escrever o número do celular. Escrevi, ela pegou, foi lá dentro e, um minuto depois, voltou e me deu um papel dizendo que estava feito. Nesse instante o celular tocou avisando que tinha uma mensagem:
- Parabéns! Você acabou de ganhar R$ 75,00 em ligacoes locais para Oi e Fixo, referente a Promocao Relampago Oi, validos até R$ 25/09/12.

Como é que é?  Só até dia 25 próximo? A primeira mensagem não dizia que tinha prazo de validade. Mas antes que eu pudesse dizer “filhos da puta”, apareceu outra mensagem:
- Oi. Seu Credito Especial foi debitado. Seu saldo e de R$ 10,29.

Que porra de crédito especial? Eu nunca pedi nada. E se eu tinha R$ 75,00 e agora só tenho R$ 10,29, significa que eu tinha gasto R$ 64,71 do tal crédito especial? Quando, se o telefone estava sem crédito? E que débito é esse se o telefone nem fazia ligações, só recebia?
Mas antes que eu pudesse dizer de novo “filhos da puta”, apareceu outra mensagem:

- Oi, seu saldo e de R$ 75,00 para Ligacoes Locais Oi e Fixo com data de validade ate 25/09/2012.

Bom, resolve o problema do credito especial, mas não resolve o da data de validade. Tenho R$ 75,00 de crédito no telefone, mas tenho de usar em 10 dias. Mas isso é com ou sem o crédito especial de R$ 10,29?  
Como estava no Shopping Iguatemi, resolvi entrar numa loja da Oi e perguntar para um rapazinho que estava por ali e que tinha cara de quem entendia tudo de mensagens da Oi.   

Ele pegou o celular na mão, digitou alguma coisa e me disse: “Tá recebendo mensagens”.  E não é que estava mesmo?
A primeira dizia:

- Seu saldo promocional e R$ 15,00 para ligações locais para oi e fixo e DDD oi e oi fixo com data de validade ate 15/09/2012.
Ué? Então tenho R$ 15,00 de saldo promocional para ligar pra isso e aquilo até dia 15 de setembro???  Mas dia 15 de setembro é hoje, porra!!!

Antes que eu pudesse dizer mais uma vez “filhos da puta”, apareceu outra mensagem:
- Voce realizou R$ 20,00 em recarga no mês anterior e R$ 15,00 no mês atual. Nao fique sem bonus. Ligue grátis *313 e saiba quando acaba sua promocao.

Olhei pro rapaz com uma cara de bônus e fiquei esperando ele me explicar. Atencioso, me disse que eu vou sendo avisado de bônus de R$ 15,00 até acabar os R$ 75,00 ou algo parecido. Que seu não usasse no período ... aí perde.  “Mas se o senhor quiser fazer um plano legal, eu tenho aqui, até dá R$ 4 mil de bônus de Oi pra Oi e fixo e...
“Não quero não, obrigado. Esse telefone é da firma, não vou mexer em nada”.

E não vou mesmo. Vou deixá-lo quieto num canto, esquecer o crédito que botei e, juro por Deus, não vou ler mais nenhum recado da Oi, porque, com certeza, vou sair dizendo uma porção de filhos da puta por aí...


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Saudade dos ladrões

Antonio Contente
 
Há um galo que todas as madrugadas, com seu canto, deposita em minha mente e meu coração o doce milagre das auroras. Seu som vem dos remotos quintais que ainda resistem no meu bairro, quintais com muros cobertos de heras. Mas o que queria contar é que, dia desses, no acordar tão cedo, fui, de repente, acometido de funda saudade. Saudade dos ladrões. Sim, amigos, dos ladrões de galinhas, furtivos vultos que cobriam com um halo de mistério as sombras dos quintais de antigamente. E que hoje são símbolos da mais cândida honestidade.

Nos meus anos de repórter de polícia na falecida “Ultima Hora”, de São Paulo, começo dos 60, cruzava com todo tipo de gente. Certa noite, no plantão do Pátio do Colégio, o camburão chegou com um prisioneiro. Fazia frio naquela época, frio pré-aquecimento global. O detido era um sujeito magro, ombros pontudos, bigodinho honesto. Nós, os jornalistas, cercamos o homem para saber o que ele havia feito. Meio foca, eu anotava tudo. O sujeito fora preso no quintal de um casarão no bairro da Bela Vista ao tentar roubar umas galinhas.

- Mas por quê? – indaguei.

- Para fazer uma canja – ele respondeu – tenho uma filha doente em casa.

Imediatamente todos os repórteres que ali estavam se mobilizaram junto ao delegado de plantão; não apenas conseguimos libertar o meliante, como até o levamos ao mercadão da Baixada do Glicério. Onde compramos duas robustas penosas, para a tal canja.

De lá para cá os ladrões de galinhas, estes símbolos da pureza, foram sumindo. A própria palavra “ladrão” que, acoplada a eles possuía um sentido vocabular meigo, se tornou áspero com o passar dos anos. Hoje os ladrões podem ser senadores, ex-senadores, deputados, governadores e ex-governadores, presidentes e ex-presidentes, isso sem falar em juízes e variados lalaus. Os ladrões de galinhas viraram, pela modernidade dos assaltos aos bolsos dos contribuintes, os São Francisco de Assis dos alabastrinos pecados.

Sim, mas eu falava do romântico galo que canta perto da minha casa, num bairro onde resistem os quintais. Eu mesmo tenho um, pequeno, é verdade, porém suficiente para os movimentos e os gestos. Com a súbita saudade que senti dos afanadores de penosas, penso em colocar umas duas nos meus parcos metros quadrados. Vou cevá-las e esperar. Que em alguma noite de lua eu seja benzido pela presença, entre os muros, de um romântico ladrão de galinhas. E se, afinal, tiver a sorte de pegá-lo com a boca na botija, quero não apenas cumprimentá-lo. Quero doar a ele as aves que, certamente, estarão gordas, e agradecer por sua presença. Meu Deus, abençoe a meiga e doce honestidade de um pequeno, romântico meliante de colarinho sujo, negro. Talvez até me ajoelhe aos pés do visitante esperado. Quero beijar suas mãos calejas pelo trabalho árduo e, em lágrimas, lhe dizer:

- Perdão por não conseguir penosas melhores, meu amigo. Bendito era este país na época em que ladrão, por aqui, só os que afanavam galinhas... Deus o abençoe. Que Deus, na sua infinita bondade, o abençoe, meu honesto homem, meu maravilhoso compatriota. Acredite, sinto um enorme orgulho de tê-lo aqui, diante de mim...

sábado, 11 de agosto de 2012

A moça da tarde


Antonio Contente

Foi então que, meio na fossa, resolvi, naquele Verão, ir para uma cidadezinha na região de Serra Negra para procurar, como se dizia antigamente, meu eixo. Instalei-me numa pousadinha barata e, em poucos dias, estava relativamente bem inserido num pequeno grupo que, todo fim de tarde, ia tomar drinques no “Ponto Chic”. Eram cinco ou seis aposentados, simpaticíssimos, que adoravam comentar sobre as fofocas do lugarejo. O que me ajudou a entrar para o grupo foi que dois dos camaradas eram leitores da coluna diária que eu então escrevia num jornal da capital, com desenho da minha cara feito pelo lendário e genial Otávio junto ao meu nome. Com as línguas sempre mais soltas depois da terceira pinga, falavam mal do prefeito, desancavam o juiz e faziam sérias restrições ao pároco. Nada mais típico.
Foi na terceira tarde do convívio esplêndido que vi, pela primeira vez, a moça. Ela vinha vindo com um vestido fresco sobre o corpo exato, os cabelos curtos tocados pela brisa e um perfil, no mínimo, de madona. Percebendo que todos se calaram quando passou, mas sentindo que de cada olhar saia uma chispa de desejo indaguei, meio a medo:

- Quem é?

- Florinha, a mulher do boticário.
A cena se repetiu nas tardes seguintes, e eu também acabei tomado pela presença da moça, a ponto de, numa das vezes, ter sentido o perfume que vinha dela. Rosas. Ela, pura e simplesmente, exalava aroma de rosas. Ao contrário da canção de Cartola roubava, no bom sentido, o cheiro das pétalas.

- Florinha... — suspirei um dia.
- Cuidado, é a mulher do boticário.

Na continuação fui captando, em frases soltas da turma, algumas informações. Uma delas: o marido curtia pela esposa uma dessas paixões arrebatadoras. E ela pôr ele, segundo todos imaginavam, pois “seu” Fadul, o tal boticário, não só tinha boa estampa como também era uma espécie de paradigma da sociedade local, pela seriedade etc. etc.. Certo dia embalado pela terceira pinguinha, caí na besteira de perguntar se Florinha nunca... Imediatamente fui fuzilado pelo olhar de todos.
- Seríssima – um gemeu.

- Mais do que santa – outro acrescentou.

Numa sexta-feira parti para reservado pesqueiro estrada acima, quase na divisa com Minas. Ao regressar, com meu eixo já devidamente em ordem, desabei no “Ponto Chic” para me despedir da turma. Fui então informado, pelo dono do bar, que há dois dias eles não apareciam. Indaguei se havia algum problema, e a resposta não poderia ter sido mais objetiva:

- Dona Florinha.
- O que aconteceu?

- Ela fugiu com um viajante que estava hospedado no Hotel Marechal.
- E quem era o galã?

- Um vendedor. Um tal de Fernando...

O curioso foi que, com bilhete comprado para voltar pra Campinas na manhã seguinte, não consegui fazê-lo. Algo dentro de mim inflava dizendo que deveria esperar a rapaziada do boteco reaparecer. Tanto que, no fim daquela tarde, me plantei na cadeira de sempre, junto da porta. Fiquei sozinho, porém tinha a impressão que, a qualquer momento, a moça da tarde reapareceria com o vestidinho leve sobre o corpo lindo, deixando no ar o impressionante cheiro de rosas que, admiti, deveriam ser necessariamente vermelhas.
Finalmente, no terceiro dia, meus camaradinhas reapareceram, cada um com a expressão mais lúgubre do que o outro. E enquanto ali estivemos, até o começo da noite, não ocorreu o menor ou mais exíguo comentário sobre a fuga da maravilhosa mulher do boticário. Porém, em todo o mundo, então, não havia ninguém que se pudesse sentir mais corneado do que todos nós. Voltei para Campinas com o eixo novamente fora do lugar.

terça-feira, 31 de julho de 2012

O estorvo e o carinho

Quartier Latin


Edmilson Siqueira

Fim de verão por aqui, as águas de março já cessaram e começa aquela mudança de tempo anunciando o outono e já não dá mais pra dormir sem pelo menos uma colcha. O terracinho que Zezé e eu tanto freqüentamos nas “happy hours”, ajudados pela hora atrasada no relógio que faz o pôr do sol acontecer lá pelas sete e meia, já começa a ficar mais distante. Nem a hora atrasada existe mais. Um vento frio – moramos no 12º andar de um prédio construído quase no topo de uma colina que liga o Cambuí ao Taquaral – já começa a dar o ar de sua graça sem graça, provocando o fechamento da janela para que apenas o sol entre na sala.

Tem gente que gosta mais do frio que do calor. Nós não e nisso combinamos bem. Para um casal em que a mulher é vegetariana e o homem é carnívoro, ambos gostarmos do calor e não do frio é um grande avanço para a cordialidade das relações. Mas claro que a gente se ama. E como a comprovar esse amor, o outono nos provoca sentimentos semelhantes.

Dia desses, um domingo de manhã, Zezé achou que deveria comprar roupas para o Yoga que ela tanto curte. E tinha de ser na Decathlon. Um domingo lindo, sem aquele calorão delicioso, mas lindo assim mesmo, e lá fomos nós até lá pelas bandas do Leroy Merlin. Ao descer no estacionamento, olhei para o céu azul, sem nuvens, e vi um avião, um jato grande, voando alto de não se escutar suas turbinas, com o nariz apontado para o Nordeste. Falei pra Zezé apontando o avião: “Tá com jeito de que vai atravessar o Atlântico”. Zezé respondeu antes que eu sugerisse o destino: “Paris”.

Era, claro, o que eu ia falar. Não que ambos soubéssemos para onde o jato ia. Não sabíamos sequer com precisão para onde o nariz do bicho apontava, nem se era de passageiros ou de carga. Mas, para nós, era Paris que esperava, generosa como sempre, do outro lado do Atlântico.

La Maison de La Radio às margens do Sena


Na verdade, eu acho que Paris me espera desde aquele início de setembro de 2002, quando a olhei do alto pela última vez, a bordo de um jato da Air France com destino a Cumbica. Daqui a poucos meses serão dez anos. Parece que foi ontem. Parece que foi há um século. Quando revejo as fotos – há dois álbuns enormes, pois o mundo virtual ainda não nos tinha alcançado  – folheando aquele tempo, tenho a impressão de que nada mudou, que está tudo em ordem, tudo certo e que rapidinho a gente estará aprontando as malas.

Já o avião no céu em direção a Paris, visto do estacionamento, provoca um banzo de uma terra que nunca foi minha, de uma cidade que conheço pouco, onde sou mais um estranho turista a ficar de boca aberta com aquelas paisagens, aquelas pontes, aqueles cafés todos, aquelas telas todas, todos aqueles parisienses que nem desconfiam que moram onde eu queria morar, que nasceram onde eu queria ter nascido e que vão morrer onde eu gostaria de respirar pela última vez.

Um amigo do Norte (Norte do Brasil, Belém do Pará, mais precisamente) me mandou um e-mail de uma mulher (não sei se amiga dele, ele tem tantas) que confessava seu amor por Budapeste num PPS enorme, cheio de fotos panorâmicas da capital húngara, paisagens deslumbrantes com música clássica ao fundo. No texto, ela declara que a viagem fez mudar seu ranking de cidades favoritas e, agora, Budapeste ocupa o topo.

Em 2007, estivemos em Lisboa. Linda, clara, limpa e preservada, um povo falando a mesma língua que a gente (bem, às vezes parecia outra língua), vida bem mais barata que Paris, Londres, Roma ou Campinas. Temos umas mil fotos de lá e juramos de pé junto que, assim que der, a gente volta. E até ficaríamos por lá mesmo, numa aposentadoria de sonhos. Mas meu ranking, não mudou. Nem o da Zezé. Paris é o topo e assim será para todo o sempre.  Lisboa tem tudo, mas falta algo que talvez eu nem saiba precisar. Talvez Lisboa nos inspire o passado, a ancestralidade que carregamos, o Gil da Zezé e o meu Siqueira que vêm lá da terrinha e a gente a vê como um quintal iluminado do Brasil, ou talvez seu terraço mostrando o que poderíamos ainda ser, tivéssemos preservado nossas cidades. Lisboa é nossa, nos sentimos em casa como jamais nos sentiremos em Paris. Porque Paris é o amor impossível que incomoda e encanta. Paris é praia e o deserto, é a música e o silêncio, é a poesia e o grafite. Paris é o estorvo e o carinho. 

Lisboa é sim um encanto, Budapeste deve ser também. Mas a magia, onde está a magia?

Não, não é a magia da Tour Eiffel, das pontes do Sena, do Louvre ou da Notre Dame. É a magia daquele beco que não dá em nada, daquele café sob a chuva, daquela Shakespeare And Company onde não entrei, da Allée da Rue Oudinot que, não fosse a amiga do Du que publicou as fotos dela no Viver Paris eu talvez jamais conhecesse (e, por enquanto, só por fotos), daquela casa de jazz chamada Le Petit Journal, das ruas de Montmartre onde ainda não andei, da meia-noite que Woody Allen descobriu que enfeitiça. Enfim, a magia de Paris está solta no ar e quem a absorve está condenado a amá-la sobre todas as coisas, por todos e quaisquer motivos.

A livraria símbolo de Paris


===============================================================
Explicação necessária (acho eu): essa crônica que você acabou de ler eu havia escrito em março deste ano para o blog Viver Paris, com o qual andei colaborando e acho que vou colaborar ainda. Por motivos que devem ser mais que justificados, meu amigo Jackson Martins, o Du, que cito na crônica, não está conseguindo postar com a frequência que costumava fazê-lo. Então resolvi publicar essa minha declaração de amor (mais uma) a Paris aqui mesmo, quebrando uma promessa que fiz ao iniciar o blog – a de não escrever aqui sobre Paris. Mas quem pode brigar com uma paixão?

domingo, 29 de julho de 2012

No tempo do JH



                                                           Redação do JH em 1979

Edmilson Siqueira

Foi um tempo curto de vida, mas o jornal tinha tudo para dar certo. Bem, nem tudo. Criado por um político, o Jornal de Hoje surgia em Campinas para se intrometer entre o Correio Popular e o Diário do Povo, roubar um pouco dos leitores deles e, claro, formar novos leitores. Um prédio novinho em folha na entrada de Campinas (o Trevo da Anhanguera), uma redação cheirando a tinta, máquinas de escrever Remington de última geração (he, he) e papel carbono que, acreditem, não sujava as mãos. Corria o glorioso ano de 1979, pairava um ar de fim de ditadura, quase a certeza de que o general Figueiredo seria o último militar a governar o Brasil e nós todos sonhando com a democracia. Bem, nem todos. A gente esfregava as mãos.
Mas o jornal era de um político e, para dirigir a gráfica, o político “nomeou” um velho cabo eleitoral. Como alguma coisa não foi explicada direito, o diretor da gráfica comprou um velho maquinário para imprimir o jornal, daqueles a chumbo, talvez por uma pechincha e na certeza de que ia agradar o patrão. Não agradou, mas como era um “velho companheiro de lutas”, não foi demitido pela burrada. O patrão entrou na jogada, soube que o Senado ia se leiloar sua enorme impressora – que funcionava perfeitamente ainda, mas havia uma mais moderna e, já que o dinheiro não era deles mesmo, por que não trocar? 
O dono do Jornal de Hoje deve ter entrado sozinho no leilão e arrebatado a máquina pelo preço mínimo. Alguns dias depois ela era instalada no andar de baixo do prédio lá no trevo da Anhanguera pra começar os testes. Fizemos várias edições “zero” que, no jargão jornalístico, são os testes que valem pra tudo: texto, edição, diagramação, fluxo e, naquele tempo, past up (pestape mesmo), fotolito e impressão. Ia quase tudo bem, com exceção da impressão. Um dia saía clara demais, outro dia escurecia tudo e nada de achar o ponto. Eu me lembro de um dia pregar no quadro de avisos uma foto do Pantera, uma crioulo de quase dois metros de altura e de largura, excelente trombone da Sinfônica, e escrever que, para o povo da impressão, era o prefeito Chico Amaral.  
O problema da impressão estava num treco importado, uma tal chapa de nylon que precisava de gente que a conhecesse bem para que ela surtisse o efeito desejado. Demorou uns dez ou vinte dias pra se chegar ao ponto, a equipe se afinar e o jornal começar a sair. E demorou uns dois ou três meses para a grana minguar e a chapa importada ser trocada pela nacional, bem mais barata, mas de péssima qualidade. O resultado era uma impressão que perdia para a do Diário do Povo que ainda feito em chumbão.
Mas não foi apenas na estética que o JH pecou. A equipe era boa, mas andou se equivocando. Primeiro que, ao invés de tentar chegar a um público novo, quis tirar leitor do Diário do Povo, que, à época, era o jornal mais influente da cidade. Não era o maior – o Correio sempre vendeu mais, muito mais, aliás – mas tinha mais opinião, ouvia mais gente da oposição e empregava alguns macacos velhos da imprensa duros de bater. O JH ficava no meio termo, nem lá nem cá, às vezes se parecia com o Correio, às vezes queria ser mais que o Diário e não conseguia se firmar. Daí o fracasso financeiro que obrigou a reduzir custos, diminuir sensivelmente o quadro e se fundir com o Diário decretando sua própria morte.
A gota d’água do JH foi um escândalo na PUCC. Descobriram que o irmão do reitor era “aluno” do curso de comunicação. Já estava ano segundo ou terceiro ano, nunca tinha aparecido numa aula sequer, mas tinha presença em todas elas e, claro, altas notas sempre nas provas, mesmo sem fazê-las. De repente, os alunos da PUCC faziam rodinha em torno de um jornal para saber das novidades do caso. Era a grande chance de o JH alcançar um público que nem pensava em ler jornal (alguns pensavam, claro, mas eram minoria). Mas, não sei por qual motivo, o JH resolveu defender os Barreto Fonseca (o reitor e o irmão). O Diário, percebendo a brecha, agiu com um jornal deveria agir e quando o nome do falso aluno foi retirado do curso, comemorou. E o JH perdeu a chance de atacar uma sacanagem e ainda ganhar novos leitores.  

Eu saí antes do jornal fechar. Já não me entendia com os chefes e seus equívocos jornalísticos. A abertura política que se avizinhava requeria novas posturas. Havia um público novo a se conquistar e a oposição já era grande o suficiente no Estado e em Campinas para eleger governador e prefeito e a imprensa precisava fazer parte dessa história do lado certo, não só por uma questão de democracia, era também uma questão de sobrevivência.  E, pra completar, meus amigos Jary Mércio e Caio Blinder (esse mesmo, do Manhattan Connection) - nós três editores de Nacional/Internacional – já tinham saído do jornal.
Assisti ao fim do JH não me lembro de onde. A fusão com o Diário foi um último suspiro do próprio Diário que nunca mais foi o mesmo, até ser vendido para o Correio Popular. Na fusão, o JH sumiu. Hoje em dia, como mais uma publicação do Grupo RAC, o Diário vive longa agonia em praça pública, talvez carregando em suas tintas a praga do JH.
(Na foto do post, eu estou de perfil, de barba e calça azul, à esquerda. Na outra mesa, conversando com a moça, está Caio Blinder)

A mulher do Errol Flynn


Antonio Contente

Recebo e-mail do jornalista José Leal Paes, hoje morando em Belém após trabalhar durante bons anos no “Estadão”. Sua mensagem não poderia ser mais sucinta, apesar do enorme significado. Dizia, apenas: “Morreu aqui ontem, no bairro do Guamá, a mulher do Errol Flynn”.

Devo contar que fui, imediatamente, coberto pelo diáfano manto da saudade. Pois tal figura, a “mulher do Errol Flynn”, marcou de alguma forma a vida de todos nós que fomos jovens na Capital do Pará ali pelos anos cinqüenta.

Raimunda Bastos, esse era o nome dela. Morena bonita, francamente bonita, sósia da bela Teresa Collor. Mas a nossa beldade não era nenhuma socialite, antes pelo contrário. Exercia, com eficiência e alta competência, aquela que chamam de “a mais antiga das profissões”. E, afinal, mesmo sendo a gracinha que era não teria entrado para a história se não tivesse se transformado na “mulher do Errol Flynn”.

Vamos voltar um pouco no tempo, para a época da Segunda Guerra Mundial. Naqueles duros anos, os americanos instalaram duas bases no Brasil, uma em Natal outra justamente em Belém. E ambas eram, de vez em quando, visitadas por grandes astros e estrelas de Hollywood, que ajudavam a levantar o moral das tropas. Foi assim que passaram pelo país figuras como Lana Turner, Humphrey Bogart, Kirk Douglas, Gary Cooper, Bob Hope e, claro, Errol Flynn, entre muitos outros.

Pois muito bem, o ator do “Robin Hood” dirigido por Michael Curtiz, acho que em l938, chegou a Belém a bordo do seu iate particular. Vinha acompanhado de certo staff, e até algumas gurias, só que, ancorado ao largo do porto da cidade, o ator resolveu, certa noite, visitar a zona do meretrício. Mandou para a melhor pensão do chamado “quadrilátero do pecado” um grupo precursor, a fim de organizar tudo. Tanto que, quando chegou, de porre, todas as garotas da casa, fechada especialmente, permaneciam colocadas de costas para a parede da sala, a fim de que o grande astro apontasse aquela com quem ficaria. Dito e feito, a escolhida foi Raimunda Bastos, que ele levou para o quarto e lá ficou até a noite do dia seguinte.



A grande verdade é que as muitas horas de amor com o famoso galã transformaram completamente a vida da moça. Tanto que quando a conheci, muito tempo depois, já nos anos cinqüenta, ela permanecia na mesma pensão, e fora batizada como “a mulher do Errol Flynn”. Por causa disso só atendia a seleta freguesia. Muitos vinham dos Estados vizinhos para, digamos, merecer seus favores.

Pintando, afinal, a decadência, os tempos ficaram mais duros, porém a moça não perdeu a classe. Tanto que certa noite, já nos anos 60, vi a reação dela diante de um marinheiro bêbado que queria arrastá-la para a cama:

-Tá pensando o quê, idiota? Tu achas que essa bainha aqui, onde o Robin Hood enfiou a espada, vai se passar para um tipo da tua laia?

Grande Raimundinha, “a mulher do Errol Flynn”. Morreu rondando os 90 e lá vai fumaça, na casa comprada com os dólares que o ator lhe deu, na lendária noite. Saudades eternas.

sábado, 21 de julho de 2012

Depois da banda passar


Zezé entrou no Facebook e viu lá um samba antigo do Chico postado pela amiga Sandra, que trocou o frio de Curitiba pelo frio de Campinas e está morando em Barão Geraldo com as filhas. Ouviu o samba e engatou um bate papo com a amiga. Acabaram marcando um encontro, regado a chazinhos e talvez algum vinho, na Padaria Alemã. Mas o samba do Chico deve ter causado algum banzo na Zezé que, com as facilidades do Youtube, botou o laptop na cozinha e, enquanto fazia uma divina macarronada, buscava e ouvia antigos sambas do velho compositor.

Chico já foi muito mais para mim e para Zezé. Gosto de ver, de vez em quando, ele cantando A Banda, ao vivo, naquele festival da Record no longínquo outubro de 1966. Ou Roda Viva num festival posterior. Não que eu tenha saudade dele, talvez tenha saudade de mim. Chico foi bom – e muito bom – enquanto durou a ditadura e os governos Sarney e Collor. Depois, quando um governo que não era da esquerda que ele admirava fez as reformas necessárias e acabou com a inflação, ele entrou numa espécie de ócio mental e não fez mais nada de bom. E mesmo quando seu candidato foi eleito e manteve as reformas todas impedindo uma “esquerdização” à la cubana ou algo parecido no Brasil, Chico não fez mais nada. Escreveu um livro que, por ser premiado por uma corriola, mais pelo nome do autor que pelo conteúdo, acabou afastando-o mais ainda das luzes da ribalta.

Mas foi bom ouvir de novo Apesar de Você, música que diziam, à época de seu lançamento e proibição pela censura da ditadura, que o título tinha mais um pedaço que era justamente o nome do general presidente. Lenda, claro, mas corria de boca em boca no meio da estudantada universitária. Ou então o opressivo samba Cotidiano, em que Chico usa e abusa do direito de não evoluir uma melodia, tornando-a massacrante, como se fosse de propósito para repetir, ad infinitum, a rotina sem esperança de um casal quase mecânico.
Construção, a música que veio a seguir na seleção da Zezé, já tem outras histórias. Enorme para os padrões da época, fez tanto sucesso que as paradas musicais das rádios (os “top ten” da época )tiveram que adaptar horários para que ela coubesse na programação. E pior ainda para os que insistiam em tocar Deus Lhe Pague, que vinha em seguida no LP, totalmente emendada, sem qualquer separação, como se fosse a continuação da anterior. O sucesso foi tanto, repito, que até prêmio do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Belo Horizonte (se não me engano) Chico recebeu. Sindicato ligado ao então Partidão, lembram?
Mas Chico foi um herói pra muita gente, inclusive para mim. Não nego mesmo hoje, quando minhas convicções ideológicas há muito me afastaram do discurso da esquerda, que algumas músicas que ele escreveu, sozinho ou com Jobim, ou com Francis Hime ou com Edu Lobo ou com outros ainda, são obras primas que jamais serão relegadas a um plano inferior na história da MPB. Mesmo as mais, digamos, de protesto, tiradas de seu contexto político, têm força suficiente para sobreviver por séculos. E as românticas são coisa de gente grande.
Há uns cinco ou sei anos Zezé me deu a caixa completa de DVDs do Chico (são 13 ao todo), uma coleção magnífica, feita com profissionalismo, coisa de cinema, filmada no Rio, Roma e Paris, se não me engano. Já tínhamos assistido a uns dois ou três DVDs na TV e havíamos gostado, principalmente de todas as lembranças que aquelas músicas – há clips da época – nos trouxeram. Mas a caixa chegou e foi para o local reservado no rack da TV para DVDs e ali ficou. Zezé entendeu por que eu não assisti até hoje e eu entendi por que ela não quis assistir também. Ou não entendemos nada.
O que sei é que o pequeno momento na manhã de hoje, ouvindo sucessos antigos do Chico, trouxe instantes de prazer que talvez imaginássemos esquecidos, perdidos, relegados a um tempo que não volta mais – e talvez seja bom que não volte.  Mas não sei se é bom que Chico não tenha mais o que dizer – seu último disco foi pífio – sei apenas que os tempos são outros e a música de hoje já não nos acerta em cheio, não nos leva àquele estado que os mais velhos não entendiam, não nos deixa certos de que amanhã há de ser outro dia. 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Neblinas




Antonio Contente

O melhor, dos barcos à vela, é que a bordo deles pode-se respirar o silêncio. A embarcação desliza mansa, criando seu rastro de espumas e você escuta a paz como se descesse do céu uma intimidade, uma oferenda de alento. Estamos navegando há dias pelo rio, o Tocantins, largo, enorme, mar neste trecho entre Mocajuba e Cametá, no Pará. Dizem, e talvez até provem, que ele é o curso d’água mais bonito do mundo; para quem está sobre e sob a sua aura, é impossível desmentir isso. A noção de beleza, afinal, é uma percepção muito fina. Como a pele dos lábios, ou a tênue ilusão dos sentimentos.

Quinta-feira amanhece. Saindo do meu pequeno catre, vejo a superfície coberta de neblinas. Neblinas sim, como as que você topa nas estradas do Sul e Sudeste nos meses de inverno, mas que, aqui, são diferentes em tudo. Exatamente porque, sobre o rio, ela é absolutamente um manto, um tapete de uns poucos metros de altura sobre o espelho das águas, algodão do infinito pronto para a ceifa, esconderijo de mitos prontos para o encantamento.

Neblina acima da superfície de um rio como o Tocantins, eu vos digo, é algo muito sério. Até porque dela, no nosso olhar ao redor, emerge a mata de copas perfeitas no despontar da quase manhã. Ah, as quase manhãs são tão importantes como os quase amores, pela carga de ânsia extenuada, o que as torna paradoxalmente doces.  

O amanhecer sobre a selva e suas águas é um rito de repetição litúrgica do próprio princípio da vida. Ali está recomeçando o que já foi começado e recomeçado; contudo, por mágica, é como se nunca tivesse existido. A neblina fala muito particularmente da vida porque, em todas as manhãs, espera a morte para que se faça a luz. Que vem com o sol, com os cantos dos pássaros, com as cores que rebrotam e fazem o opaco sumir. Os deuses, na sua sabedoria, fizeram as manhãs para a celebração da vida, para a ressurreição, do mesmo jeito que fizeram o anoitecer para que não esqueçamos da nossa finitude. 

Não há vento, o barco está, literalmente, parado. A névoa se esgarça e, de repente, de dentro dela emergem duas garças. Acho que nasceram ali, naquele exato momento, dádiva à minha santa perplexidade. Maior ainda ao perceber que as aves voam na direção em que o céu começa a ficar vermelho. Da margem, vem um canto de pássaro. Mais do que uma saudação à luz, é a certeza de que o sol não tarda. E a neblina, então estática, começa a se mover. Se enreda em desenhos de formas sutis, mãos em aceno de adeus, rostos femininos de traços finos, cabelos em cascatas indesmentíveis, trazendo a sensação de que pairamos num pedaço de céu. Sim, sim, vagamos sobre nuvens, cortamos o infinito com a simplicidade de um gesto; e a luminosidade total, na repetição incansável do milagre, se faz. 

O primeiro raio de sol vem como uma flecha rasgando o tempo. Farrapos de anos-luz, mensagem certa da claridade síntese, deflagrar de certezas nas sístoles e diástoles do nosso pulsar inalienável. E ao primeiro impacto a neblina até então alva se tinge de laranja, de vermelho, e se desfaz. Mas antes passou por ser hibisco, foi rosa rubra em jardins nunca ceifados, foi soluço de alegria ante o abraço daquilo tão simples, mas tão belo.



E na primeira fenda que o sol abriu no grande manto, cintila a superfície do rio. Na leve correnteza da maré acariciada por leve brisa, meigos reflexos de ouro e prata. Mais do que isso, diamantes e esmeraldas, topázios e rubis de lampejos macios na cor tão viva. O rio, o meu rio onde nasci, o nosso rio, vai sendo mais uma vez descoberto. As lâminas da luz do sol fracionam o branco, e, na margem, o verde fica mais verde, tanto que posso ver, nos primeiros galhos que se desenham, as orquídeas alvas em que a Amazônia é tão fértil, tão pródiga. Talvez nesgas de neblina que se depositam ali, para antes do amanhecer virem se banhar no líquido caminho, tão bom neste momento porque é um caminho sem a necessidade de destino. Por São Judas Tadeu e por Santa Rita do Passa Quatro, há poucas coisas na vida tão boas como não ter destino. Ser simples passageiro de névoas e orquídeas que se refugiam em galhos a cada manhã. Ser maestro a reger os sons que vêm da floresta, sinfonia fantástica a cada romper de dia, e melhor ainda porque a música vem com cheiro de verde, de vida e de fé na beleza. 

O rio agora está livre e começa, vagarosamente, o soprar do vento. A vela se tufa, a bujarrona se compõe e o barco vai. A claridade, com nuances de louro trigal, é festa. Numa ilha ao longe o risco de uma praia deserta com areia cor de maravilha. Começo a rezar, com a fé dos ímpios que é muito mais verdadeira, para que este lindo planeta não se acabe antes de mim.