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A bucólica Mocajuba, na Amazônia profunda: à beira do gigante Tocantins |
Antônio Contente
Quando os pães chegavam à mesa, explodiam luminosidades de
festa. Vinham num cesto de vime, eram pouco mais compridos que o pãozinho
francês de hoje, sem lanhos na casca, lisa, pontuda nas extremidades com
pequenos queimadinhos que remetiam ao crocante. O êxtase de mastigar aquilo,
com a manteiga a derreter sobre a massa, só depois que cresci me levou à
curiosidade de querer saber quem era Capella. Nada mais que o padeiro que
operava a alquimia da maravilha na pequena padaria dentro da própria casa em
que morava, no alto da ladeira sobre o rio Tocantins em Mocajuba, mínima
cidadezinha paraense na Amazônia profunda, cercada pela floresta.
Outra curiosidade que o homem me despertou, foi o fato de
ter vindo da Itália para uma vila de uns 1.000 habitantes; apenas três ruas
paralelas à margem do curso d’água e quatro ou cinco transversais. Afinal, de
estrangeiros o local abrigava somente portugueses, como no Pará inteiro, mais
uma ordem de padres holandeses que usavam batinas brancas. E acabou sendo fatal
quando, por ter ido estudar na capital e só voltando à Mocajuba nas férias,
acabei tendo forte curiosidade em saber como aquele único italiano fora parar
ali, tão longe dos ruídos do mundo.
Na primeira vez que o vi de perto me espantei com seu
tamanho, enorme, nunca menos de 1,90. Jamais tentei falar-lhe porque, nos
tempos d’outrora, jovens não tinham muito acesso aos mais velhos. Mas fui
captando informações. Como a de que dona Maria, a esposa, muito branca e ainda
bonita na idade madura, era filha de um comerciante português rico que possuía
seringais na outra margem do rio imenso. E nada mais, além de me deliciar com o
fantástico “pão do Capella”. Que continuei a prazerosamente consumir nas minhas
cada vez mais espaçadas idas à cidadezinha.
Até que um dia, quase final dos anos 50 quando faltava pouco
para vir fazer o Curso de Jornalismo em São Paulo, consegui conversar
rapidamente com o magnífico padeiro. A pergunta fundamental, de como ele fora
parar em Mocajuba, contudo, não fiz. Fiquei, porém, sabendo que nascera em
Cortona, na Toscana, e que chegara ao Brasil nos primeiros anos do século
passado.
Como se isso fosse um filme, façamos um corte, comigo, no
final dos anos 60 trabalhando no jornal O Globo, no Rio. Onde recebi a
incumbência de ir fazer matéria em Florença, na Itália. Lá chegando, ao levantar
dados para a reportagem, fui informado que certos documentos de que precisava
estavam com um professor residente em Cortona, no interior da Toscana. “Santos
Deus – pensei imediatamente – é a terra de Capella, o padeiro de Mocajuba”.
Assim foi que, numa doceria na cidadezinha que devia ter
menos de 10.000 habitantes então, avistei uns potes de compotas. Falei para a
vendedora que levaria para um nativo local que vivia no Brasil e ela me disse:
“Então prefira esta, que tem sabor da ‘Riccianelli’, um dos doces mais
tradicionais da Toscana”. Comprei.
Na verdade aquele petisco guardado na minha mala passou a
ter quase tanta importância quanto a reportagem que fora fazer. De volta,
entrando em férias no mês seguinte, tomei o rumo de Mocajuba aonde já não ia há
muitos anos.
Desci do navio-gaiola e avistei, sob os galhos das
mangueiras centenárias, a casa de Capella. Parti direto para lá, onde fui
atendido por uma senhora bastante idosa, na qual reconheci a dona Maria dos
velhos tempos. No que lhe disse, pegando o vidro com a compota, o que me levara
ali, ela respondeu, chorando, que o marido morrera meses antes.
Mas, durante o cafezinho, pude, finalmente, perguntar como é
que Capella, num Estado brasileiro onde a colônia italiana era pequena, foi
parar no lugarejo perdido no meio da selva. E ela me contou.
Na verdade o imigrante Giancarlo Capella, nos primeiros anos
do século XX, buscava São Paulo. Por conveniências de embarque resolveu pegar o
navio em Lisboa onde um português, que também emigrava, perguntou se ele não
queria conhecer antes a floresta amazônica, a partir de Belém do Pará. O
italiano topou, pretendendo, depois, seguir para a cidade de Santos.
Desta forma acabou indo à Mocajuba, levado pelo luso que
fora chamado por parentes que lá trabalhavam com borracha e cacau. Rodou por
ali uns dias e, na véspera de regressar à Belém para tomar o rumo de São Paulo,
conheceu linda mocinha chamada Maria, filha de próspero seringalista luso.
Houve encanto mútuo.
Nesta instante da narrativa a viúva de Capella me pediu para
esperar, queria me mostrar algo. Voltou com uma foto dela, meio amarelecida
pelo tempo. Ao me entregar, murmurou: “Quando casamos meu marido fez esta
fotografia, que os padres holandeses da nossa paróquia revelaram”. Olhei e vi uma jovem fantasticamente bonita, deslumbrante.
Torno a mirar dona Maria, ao vivo, e percebo que seus olhos mantinham brilho
profundo. Claros, diamantes; e azuis, maravilhosamente azuis como dois pingos
daquele céu de julho no verão amazônico, que nos cobria. Capella não poderia
mesmo, depois de conhecê-la, ir para nenhum outro lugar... Tiveram doze filhos.