Doca Furtado está indo embora para Aracaju (SE). Vai abrir
um boteco próprio por lá, na beira da praia e, tenho certeza, quando bater um
banzo, vai pegar o violão e encher de prazer os fregueses. Ouvimos muito o Doca
aqui em Campinas. Zezé e eu tínhamos um programa quase sagrado aos domingos dos
primeiros anos deste século: almoçar no Deck em Sousas, boteco dirigido pelo
amigo Elder Muzetti, onde Doca fazia a tarde fluir cheia de música da boa. Eu tinha uma
coluna semanal na revista do Correio, o Farol, e citei Doca várias vezes. A
croniqueta que segue abaixo é uma delas, que republico aqui em homenagem a esse
formidável músico que parte agora para um novo projeto de vida que, com
certeza, lhe trará as mesmas alegrias e prazeres que ele teve e nos ofereceu por
essas Campinas. Valeu, Doca!
Domingos musicais
Tem sido gratificante ouvir, tomando um belo chope da
Brahma, o cantor Doca Furtado no Deck lá em Sousas. Ele canta aos domingos à
tarde e seu horário varia. E varia não por vontade do Elder, zeloso
proprietário da casa, mas porque Doca é um artista irrequieto. Parece que para
ele cantar é seu jeito de estar no mundo em companhia de seu violão, que
harmoniza seu canto e dita seu ritmo. Vai daí que ele chega antes da hora e
termina, invariavelmente, muito tempo depois do combinado. O que, convenhamos,
é bom para nós, frequentadores do boteco, bom para o Elder, que vê todo mundo
pedindo mais um chope ou mais uma cerveja para apreciar as diversas saideiras
que Doca emenda, e, tenho certeza, bom para o próprio Doca, cuja felicidade se
percebe não só nos aplausos que recebe, mas no próprio prazer de cantar.
Doca é
um cantor de bar por excelência, o que não significa que não possa se dar bem
num palco com um grupo. Com uma memória prodigiosa, não usa aquele recurso de
muitos cantores, que é um caderno com as letras das músicas. Ele, quando não
sabe cantar um pedido feito (o que é raro) não se envergonha de dizer “essa eu
não faço, é linda, mas eu ainda não aprendi”.
Seu
violão é sua outra parte musical: sem olhar para a mão esquerda, encontra todas
as posições como se tivesse nascido fazendo aquilo, deixando a impressão para
todos que basta colocar alguns dedos sobre as cordas que as posições se completam
sozinhas. Já a mão direita é daquelas que fazem o ritmo parecer natural, pois
ele flui fácil, quer repercussivo quer dedilhado. Seu repertório é mesclado com
sucessos de bar, inevitáveis nessas horas, e músicas quase desconhecidas, mas
ótimas, que ele encontra perdidas em discos de Alceu Valença, Belchior, Milton
Nascimento, Zeca Baleiro, Jackson do Pandeiro, Gilberto Gil e muitos outros,
incluindo aí grandes sambas. Além disso, ele envereda por algumas emboladas que
encantam pela rapidez dos versos, pela simplicidade das letras e pela
empolgação do ritmo.
Como se
trata de um cantor que mistura a técnica e o instinto, o improviso se faz
presente e não são poucas as músicas que entram por um caminho diferente, um
arranjo porreta tirado na hora, um final esticado ou um novo verso criado por
ali mesmo.
Doca
não gosta de cantar sozinho. É o que se percebe quando ele, logo do início dos
“trabalhos” pergunta por Carlão, seu amigo e percussionista dos bons que adora
dar uma canja no Deck. Domingo passado, como Carlão demorasse a chegar,
implorou a Elder que, num raro momento, pegou um padeiro e fez o som do Doca
ficar mais encorpado. Mas logo Carlão chegou, tomou uma e partiu para o
batuque, no que foi coadjuvado por ninguém menos que Ding Dong, que também deu
as caras por lá, fazendo a tarde domingueira muito mais prazerosa.
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