segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Saudade dos ladrões

Antonio Contente
 
Há um galo que todas as madrugadas, com seu canto, deposita em minha mente e meu coração o doce milagre das auroras. Seu som vem dos remotos quintais que ainda resistem no meu bairro, quintais com muros cobertos de heras. Mas o que queria contar é que, dia desses, no acordar tão cedo, fui, de repente, acometido de funda saudade. Saudade dos ladrões. Sim, amigos, dos ladrões de galinhas, furtivos vultos que cobriam com um halo de mistério as sombras dos quintais de antigamente. E que hoje são símbolos da mais cândida honestidade.

Nos meus anos de repórter de polícia na falecida “Ultima Hora”, de São Paulo, começo dos 60, cruzava com todo tipo de gente. Certa noite, no plantão do Pátio do Colégio, o camburão chegou com um prisioneiro. Fazia frio naquela época, frio pré-aquecimento global. O detido era um sujeito magro, ombros pontudos, bigodinho honesto. Nós, os jornalistas, cercamos o homem para saber o que ele havia feito. Meio foca, eu anotava tudo. O sujeito fora preso no quintal de um casarão no bairro da Bela Vista ao tentar roubar umas galinhas.

- Mas por quê? – indaguei.

- Para fazer uma canja – ele respondeu – tenho uma filha doente em casa.

Imediatamente todos os repórteres que ali estavam se mobilizaram junto ao delegado de plantão; não apenas conseguimos libertar o meliante, como até o levamos ao mercadão da Baixada do Glicério. Onde compramos duas robustas penosas, para a tal canja.

De lá para cá os ladrões de galinhas, estes símbolos da pureza, foram sumindo. A própria palavra “ladrão” que, acoplada a eles possuía um sentido vocabular meigo, se tornou áspero com o passar dos anos. Hoje os ladrões podem ser senadores, ex-senadores, deputados, governadores e ex-governadores, presidentes e ex-presidentes, isso sem falar em juízes e variados lalaus. Os ladrões de galinhas viraram, pela modernidade dos assaltos aos bolsos dos contribuintes, os São Francisco de Assis dos alabastrinos pecados.

Sim, mas eu falava do romântico galo que canta perto da minha casa, num bairro onde resistem os quintais. Eu mesmo tenho um, pequeno, é verdade, porém suficiente para os movimentos e os gestos. Com a súbita saudade que senti dos afanadores de penosas, penso em colocar umas duas nos meus parcos metros quadrados. Vou cevá-las e esperar. Que em alguma noite de lua eu seja benzido pela presença, entre os muros, de um romântico ladrão de galinhas. E se, afinal, tiver a sorte de pegá-lo com a boca na botija, quero não apenas cumprimentá-lo. Quero doar a ele as aves que, certamente, estarão gordas, e agradecer por sua presença. Meu Deus, abençoe a meiga e doce honestidade de um pequeno, romântico meliante de colarinho sujo, negro. Talvez até me ajoelhe aos pés do visitante esperado. Quero beijar suas mãos calejas pelo trabalho árduo e, em lágrimas, lhe dizer:

- Perdão por não conseguir penosas melhores, meu amigo. Bendito era este país na época em que ladrão, por aqui, só os que afanavam galinhas... Deus o abençoe. Que Deus, na sua infinita bondade, o abençoe, meu honesto homem, meu maravilhoso compatriota. Acredite, sinto um enorme orgulho de tê-lo aqui, diante de mim...

2 comentários:

  1. Realmente dá saudade desses tempos românticos e heroicos. Ladrão de galinha passa a ser nosso colega. Quando vemos na TV que a Quadrilha do José Dirceu roubou/desviou R$ 150.000.000,00 ladrão de galinha vira uma espécie de Robin Hood, não o que tira dos ricos para dar aos pobres, mas tira da classe média para dar de comer aos filhos. Pensando bem, é mais fácil de receber o bolsa família do que ter o trabalho de pular muro e roubar galinhoa, depois vai ter que limpar,...

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    1. Antonio Contente responde:

      Pois é, Marisilda, os afanadores de penosas acabaram sumindo na medida em que foram sumindo os quintais. E sempre que some um quintal, você sabe, surgem prédios com salas, salões, auditórios. Lugares esses onde proliferam os colarinhos brancos Percebe a reação em cadeia? Quanto tempo faz que você não vê um pintassilgo? Eram típicos passarinhos dos espaços com árvores nos fundos das casas. Também sumiram, para o cantar de dirceus e genoinos. Tamos maus...

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