Edmilson Siqueira
Eu tinha 12 anos, estava na segunda série B do ginásio no
Colégio Estadual Culto à Ciência. Ali pelos dias de fim de março ou começo de
abril, cheguei à escola com uma vaga esperança de que não haveria aula. Antes
de sair de casa, tinha ouvido no rádio que estava acontecendo uma revolução (no
rádio não se falava em golpe) e que havia movimentação de tropas do Exército
pra cá e pra lá.
Minha mãe não me recomendou nada além dos conselhos normais,
cuidado no ônibus, presta atenção nas aulas etc., ela mesma totalmente alheia
aos acontecimentos. Aliás, o rádio ficava ligado para nos informar a hora a
todo momento – era o programa A Hora do Trabalhador, “uma hora de alegria pra
quem sua todo dia”, que começava às 7 da
manhã, meia hora depois de eu sair da
cama, morrendo de sono, como sempre.
Naquele dia o rádio deu notícias mais vetustas, o locutor falando com a
voz mais encorpada e eu percebi que havia alguma coisa diferente.
“Dona Celina, vai ter aula hoje?”
“Claro que vai, menino. A confusão é lá no Rio Grande do
Sul, aqui tá tudo bem”.
Esse foi o diálogo que mantive com a inspetora de alunos, dona
Celina Mesquita, e que acabou com a minha esperança de folga naquele dia.
Os dias seguintes foram normais. Ficamos sabendo que o
presidente Jango havia sido deposto e que os militares estavam governando o
país.
Em casa não me lembro de ouvir qualquer coisa sobre o golpe.
Nem percebi que minha mãe e minha irmã mais velha pegaram vários papéis que meu
pai mantinha dentro do guarda-roupa e fizeram uma fogueirinha no quintal.
Perguntei a elas o que era e não me lembro da resposta exata. Mas fiquei
sabendo depois que eram folhetos de propaganda comunista. Meu pai era amigo de
alguns comunistas em Campinas e, às vezes, levava, em suas viagens para
Marília, Bauru, Rio Preto, Bebedouro e Barretos - as cinco cidades às quais ele
ia a trabalho, comandando um carro dormitório da Companhia Paulista de Estrada
de Ferro - encomendas que eram entregues a um emissário na estação de destino. Alguns
exemplares dos folhetos ele guardava em casa. Viraram cinzas provocadas pelo
temor de que a repressão baixasse por ali, o que jamais ocorreu.
Quando o governo militar já estava instalado e os partidos proibidos
de existir, meu pai me mostrou a carteirinha do sindicato. Nela havia uns
rabiscos meio estranhos sobre os dados oficiais. O velho explicou: “Um dia,
antes de 64, o Luiz Carlos Prestes viajou no trem e eu pedi um autógrafo pra
ele na carteirinha do sindicato. Depois da revolução, eu disfarcei a assinatura
dele, fazendo mais uns rabiscos por cima”.
Os festivais de música, que começaram em 65, me informaram
que alguma coisa estava errada no país. Eu já amava os Beatles e iria amar os
Stones muito em breve, mas gostava daquele pessoal que cantava na tevê músicas
que falavam mais dos nossos problemas e das nossas esperanças. Os festivais
desvendaram um novo mundo, em que ser contra o governo era a regra e na escola,
a proibição de estudante ir a passeata com o uniforme era um sinal de que nós,
jovens, estávamos tentando fazer alguma coisa.
Em 1968, eu já lia o Pasquim e o Jornal da Tarde. No
primeiro, me divertia e aprendia com mestres do humor e do desenho e com os
finos textos de Millôr, Sérgio Augusto e Paulo Francis entre outros. No
segundo, passeava na ágil e moderna diagramação, preenchida com ótimas
reportagens de uma seleção notável de jornalistas. E já entendia, aos 16/17
anos o que as receitas de bolos que surgiam de repente no meio do jornal
queriam dizer.
Foi em dezembro de 68, o famoso "ano que não terminou" que a ditadura começou realmente,
com o Ato Institucional nº 5 que deu poderes totais aos donos do poder e acabou
com a vida parlamentar por um bom tempo. Foi aí que eu percebi que a liberdade
era o bem maior que a gente teria que defender e a democracia era parte essencial dela. Foi aí que eu passei a
pertencer a uma minoria que queria o fim da ditadura. Minoria? Sim. O povo, em
sua grande maioria, não estava nem aí: se a economia não atrapalhasse sua vida,
os políticos todos, os estudantes todos, os terroristas todos, os torturados
todos e os assassinados todos que se danassem. Parece hoje, com a diferença que
os torturados são presos comuns e os terroristas daquela época estão nos governos
junto com os corruptos. E com a diferença também que eu posso escrever tudo
isso e não ser preso. Pelo menos por enquanto.
Uma das coisas que eu lembro: em março de 64 eu já trabalhava na Gessy e uma colega tinha um irmão que era da Marinha e ficava com o radio de pilha ligado para saber ad notícias. O nervoso dela era muito grande. Era medo de que houvesse algum combate de guerra. Mas depois que ela teve notícias dele ela se a calmou.
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirOi Ed, muito boa sua crônica, como tudo que você escreve, aliás.
ResponderExcluirVoltei no tempo e senti tudo aquilo que me apavorava na época e eu não entendia bem porquê.