Em setembro vai fazer oito anos que o amigo Jota Toledo
morreu. Lembrei dele hoje de manhã, lembro sempre, todas as manhãs em que tomo
café em casa. O motivo é a história que segue abaixo, real, vivida, como diria
Caetano, “na minha ‘adolescidade’, idade de pedra e paz”.
Foi numa daquelas noites regadas a uísque, cerveja e alguns
queijos, na Maison Toledo, lá em Sousas, que tudo aconteceu. Jotinha ou J.
Toledo como ele assinava suas obras, comandava os colóquios linguísticos ou,
como gostava de dizer, as “tertúlias” que varavam a madrugada e terminavam
quando o sol já dava suas caras lá pelas bandas da Rodovia Heitor Penteado.
Éramos uns cinco ou seis notívagos, provavelmente numa noite
de sábado, a favorita de Jota para reunir amigos, falando de tudo e de todos,
metendo a boca no governo – qualquer governo – elogiando alguns artistas e
girando a tábua de queijos que Diane preparava.
Lá pelas quatro da manhã, Jota resolveu tomar café. Ele
gostava de contrastar o gosto do uísque com um café quase sem açúcar. Eu achava
estranho, mas não é que outros amigos acompanhavam-no nessa, pra mim, exótica
aventura etílico-gastronômica?
Como só eu não quis café, foram distribuídas umas quatro ou
cinco xícaras pela mesinha de centro, mas descobriu-se, em seguida, que não
havia colherinhas. Jota virou-se para mim e pediu:
- Ed, como você não vai tomar café, desce lá na sala, tem
uma cristaleira e, na gaveta de baixo, você abre e encontrará colherinhas de
café. Pega umas lá pra gente. Aproveita e traz uma bandeja que está em cima da
mesa.
E lá fui eu, descendo a estreita escada com muito cuidado,
para que o efeito do álcool não vencesse a disputa entre minhas pernas e os
degraus. Abri a gaveta e peguei um punhado de colherinhas. A bandeja na mesa
era mais pesada do que eu pensava e para evitar qualquer problema, pus as
colherinhas no bolso do paletó que usava, que, aliás, fora presenteado pelo próprio
Jota. Subi com mais cuidado ainda, botei a bandeja na mesinha de centro e distribuí as
colherinhas.
E a noite prosseguiu até chegar a manhã e todos irmos
embora, sob os protestos do Jota que bem ficaria mais algumas horas papeando. “Vai
todo mundo embora? É um complô?”, sempre dizia ele diante da debandada
sonolenta da turma.
Uns três anos depois, com todos seus amigos já sofrendo a
perda do Jota, que decidiu não sofrer mais por conta de uma terrível doença,
peguei o paletó no guarda roupa para doá-lo, pois eu havia engordado e não me
servia mais. Aliás, foi esse o motivo também do Jota ter me dado o dito cujo. Era
de um tecido meio acamurçado, verde escuro, bonito, mas, depois daquela noite, nunca
mais o usei. Ao dobrar para colocá-lo num saco plástico, caiu, de um dos bolsos,
uma colherinha, igual às outras que eu havia pegado na gaveta da cristaleira.
Ela havia sobrado e eu não percebera. É uma colherinha de prata, provavelmente de algum faqueiro
elegante já com suas peças dispersas.
Jota tinha morrido há pouco tempo e eu
fiquei olhando pra colherinha e lembrando da noite do café e de todas as noites
que passamos naquele enorme sótão que ele transformou em estúdio ou nas
noitadas em bares diversos, desde a Barão Velha do Centro à Adega Florence na Vila Nova, do Alfredo’s do
Cambuí à Adega dos Arcos do Passarinho no balão do Centro de Convivência, do
Água Furtada ao 88 na Vila, do City Bar ao Paulistinha, do Clube XV ao Bati
Papo e muito outros que vimos nascer e morrer, em intermináveis noitadas por
essas Campinas. Foi difícil conter algumas lágrimas.
A colherinha, a única de prata que tenho, tem me acompanhado
em todos os cafés da manhã que preparo em casa desde que ela caiu do bolso do
paletó. É lavada com todo carinho e volta para a gaveta das colheres.
A querida Diane que me perdoe, mas jamais a devolverei.
Gostei muito de ler “A lembrança de J. Toledo”.
ResponderExcluirNão o conheci, mas com certeza foi um bom sujeito pois deixou lembranças e fez a diferença na vida de muitas pessoas.
Ed querido,
ResponderExcluirA sua crônica maravilhosa foi a primeira coisa que li esta manhã. Fez meu dia. Adorei a história.Tenho muitas saudades das 'tertúlias' e só de saber que Jota é lembrado com tanto carinho me emociona.
Não se preocupa com a colher. Não poderia estar em mãos melhores !!
Beijo
Eu também não devolveria a colherinha de café. Bela história.
ResponderExcluirValeu a lembrança do J Toledo que realizava a vida surrealizando arte e textos... plagiando apresentador de TV, afirmo e confirmo que Toledo partiu antes do combinado, pq ainda tinha muito a fazer e outro tanto a oferecer.
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