A Escritora
Antonio Contente
Uma coisa absolutamente óbvia, porém pouco observada, é que
o todo de nossas existências é formado por pequenas vidas que nos envolvem.
Acho que seria certo dizer que da maternidade ao final, somos personagens de um
grande painel feito de acontecimentos autônomos a formatar a história completa.
Quem já não se descobriu a fazer comentário como esse: “Ah,
experimentei bela emoção; valeu por uma vida”. Meus primeiros tempos de
Campinas, por exemplo, começaram quando eu mal entrara na casa dos 20 anos. E
hoje, tantos anos passados, vejo que foi algo com princípio meio e fim; embora
o derradeiro, o geral fechar de cortinas ainda não tenha chegado.
Dos iniciais tempos campineiros, o que lembro? Muitas
coisas. Emocionantes algumas, ternas outras, terceiras nem tanto, porém todas
pintadas de forma que vale a pena recordar. Uma das mais marcantes, certamente,
foi ter conhecido a escritora.
Ocorreu assim: como eu era amigo de sua filha, de vez em quando
aparecia pro cafezinho num simpático sobrado na Rua Guilherme da Silva, Cambuí.
Certa manhã, sentado na sala, escutei um “plec, plec, plec” a bater; reconheci
imediatamente que se tratava de máquina de datilografia com as quais, como
estudante de jornalismo na Cásper Líbero, começava a ter intimidades. Perguntei à amiga quem é que batucava. “Minha mãe”, ela
respondeu. “E escreve o quê?”, segui, curioso. “Um livro”, foi a resposta.
“Livro?” Levantei as sobrancelhas. “Romance”, fechou a informação.
Daí em diante ouvindo o “plec plec” sempre que aparecia para
visitas, soube que a escritora todos os dias, às cinco da manhã, já estava na
sua maquininha. Daí seguia com os dedos nas teclas até pouco antes do almoço;
uma vez que, após o meio-dia, precisava sair para cumprir atividade como
funcionária pública. Minha curiosidade sobre o que redigia foi natural.
Todavia, mesmo tendo visto de perto várias vezes a autora, certamente tolhido
pela diferença de idades que antigamente tinha certa força, nunca perguntei nada.
Só a olhava, com secreta admiração.
Depois desse período de mais ou menos um ano a frequentar
Campinas, cidade pela qual me apaixonei, tendo terminado o curso de jornalismo
em São Paulo precisei começar a batalhar.
Primeiro andei pelo Rio, depois tornei à Capital paulista e
os anos foram correndo. Um dia eu estava fora do país a trabalho quando recebo
um pacote, pelo Correio. Era um livro, com o seguinte bilhete: “Aí segue o
resultado do ‘plec plec plec’ que você ouvia em minha casa, em 1959”. Quem assinava
era a minha amiga, filha da escritora. Assim foi que, sofregamente, li o
romance Natal Solitário, esplêndido, história emocionante, maravilhosa; aliás,
premiado pela Academia Brasileira de Letras.
Mais algum tempo e volto a frequentar Campinas; a casa da
amiga, agora, era um enorme apartamento. Em certa manhã, lá escuto outra vez o
“plec plec plec”. A informação veio em cima, antes mesmo que eu perguntasse:
“É, minha mãe já está batucando outro”. E ainda mais adiante no tempo, agora
novamente numa grande casa, o barulhinho da máquina de datilografar acabou
sendo a canção que ouvia curioso e atento, em dias de visita.
Assim, de “plec plec” em “plec plec”, saíram vários
romances, além do que cito acima. Lembro neste instante de pelo menos mais
três: "Céu Escuro", "Ana e O Órfão" e a "Mulata",
todos ótimos, premiados. Enquanto isso, a autora se tornou a primeira mulher e
entrar para a Academia Campinense de Letras (ACL) e a primeira campineira a ser
premiada pela Academia Brasileira de Letras (ABL).
Na administração municipal sempre ocupou cargos inseridos no
universo próximo às suas atividades de intelectual, como diretora de Cultura da
Prefeitura e diretora do Teatro Municipal.
Mas o pano do último ato da bela e longa vida da escritora e
poeta só se fechou no último dia 19 de junho, quando faleceu. Tinha 102 anos,
cujas muitas vivências transformou em livros não só de prosa, mas também
poesias.
Foi filha de fazendeiro de café dos velhos tempos e o que
observou entre terreiros e plantações está nas obras que deixou. Quando jovem,
tocava piano, todavia, aos poucos, substituiu as "Valsas" e
"Noturnos" de Chopin, que gostava de dedilhar, pelo “plec plec” das
máquinas de escrever. Felizmente, é claro.
No dia 20 deste junho que finda, manhã fria porém
luminosamente bonita, vi a personagem desta crônica ser sepultada, no Cemitério
da Saudade. Lá estavam Zezinha, a filha, minha amiga de tantos anos, mais
Clirian e Spencer, seus irmãos. E muitos parentes e admiradores.
Quando certas pessoas especiais como foi a escritora e poeta
Maria José de Moraes Pupo Nogueira morrem, diziam antigamente, começam a subir.
E sobem, e sobem, e sobem... Por fim, se transformam em estrelas.
Voltaram bem! Agora preciso correr atrás desses livros! Vou ler e lembrar dessa crônica! Abraços!!!
ResponderExcluirMarcos Guilherme
Caro Marcos: os livros da Zeza estão esgotados. Mas como acho importante que você pudesse lê-los, entre em contato com a Zezinha, simpática figura, filha da escritora. O e-mail dela é zezanog@gmail.com. Abraços.
ExcluirMuito bom!!!
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