domingo, 30 de agosto de 2015

O prazer da leitura



Edmilson Siqueira

Comprei um ótimo livro e um problema. O livro é Queria Mais É que Chovesse do português Pedro Mexia, cheio de crônicas publicadas na imprensa lisboeta entre 2003 e 2014. O problema é que, sendo um nato escritor português, Mexia usa inúmeros vocábulos que, embora façam parte – quase todos – do nosso léxico, não são de uso corrente por aqui. Acrescentando-se a esse fato a ignorância desse cronista que jamais sonhou em ser um dicionarista ou filólogo, embora inveje o conhecimento de ambos têm de ter da língua pátria, muitas palavras são do meu total desconhecimento. Daí ter de ler o livro, de tamanho comum, menos de 200 páginas, tendo ao lado a primeira edição (de 2001) do sempre útil Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, um exemplar de vários quilos com suas 2.924 páginas, sem contar capa e contracapa.

Como não costumo ler em apenas um lugar, agora me vejo vagando pelo apartamento carregando o exemplar do Mexia em u’a mão e, na outra, o pesado Houaiss, correndo o risco de deslocar a clavícula num movimento mais rápido. E em quase todas as crônicas (em Portugal é “crónicas”) encontro, no mínimo, uma palavra cujo significa só o Houaiss pode me dar.

A primeira delas me ocorreu logo na segunda crônica do livro. Escreve Mexia: “...designação um pouco pífia que aqui repito com fins puramente facetos”. Facetos? Pois é o mesmo que chistoso, brincalhão me diz o Houaiss. E ainda ali, no mesmo parágrafo, ele tasca uma frase assim: “Numa palavra, a grunhisse abunda”. Tentei adivinhar como sendo falta de respeito ou ignorância e vou ficar sem saber. Não há registro dessa palavra no Houaiss e na rede de computadores encontrei-a em alguns textos portugueses, mas sem o significado. Ou seja, ela existe em Portugal, mas deve ter se afogado no Atlântico quando tentava chegar ao Brasil.

Logo em seguida deparo com “embiocada”. Nessa o Houaiss me salva: quer dizer “discreto” “que se esconde” e cabe certinho no texto: “Essa minoria é essencialmente formada por gente introspectiva e embiocada”. Mas a primeira definição é “envolto em bioco” e aí fui procurar o que é “bioco”, descobrindo que se trata de uma espécie de lenço que as mulheres usam para cobrir o rosto ou parte da cabeça. A palavra acabou sendo usada também para significar “discrição”.

Páginas adiante, na crônica “Nós, os Gordos”, Mexia diz que ficou “banzado” quando um amigo o colocou no rol dos mais pesados. Banzado? Tá lá no dicionário : “pasmo”, “perplexo”, “desagradavelmente surpreso”.

“E o pior é que não lobrigo soluções evidentes”. Lobrigo? Pareceu-me “percebo”, “antevejo”, mas fui lá no Houaiss conferir: o verbo lobrigar quer dizer “enxergar, com dificuldade, na escuridão ou penumbra”. Até que não fiquei muito longe do acerto.

A palavra seguinte foi “escanzelado” e descubro que se trata de alguém magro como um cão que passa fome. Jamais imaginaria.

A descoberta seguinte não teve o socorro do Houaiss e até tive certo prazer ao me deparar com tal expressão. Na minha vida noturna – hoje quase ausente, mas que já foi muito frequente – sempre estranhei o fato de um prato conter um “bife a cavalo” que se trata de um ovo sobre um bife. O nome não estaria errado? A situação não estaria invertida? Pois na crônica “O Senhor Albino”, simpático dono do Snob, o bar-restaurante preferido do autor, está lá: “...infindáveis horas de boémia mansa, de letargia melancólica, de enfado com ovo a cavalo”. Pois é, em Portugal chama-se corretamente um bife a cavalo de ovo a cavalo.

Mas volto ao dicionário para saber do que se trata “chavascal”. A crônica versa sobre tema delicado, que requer cuidados, pois comenta Mexia a vida sexual dos vizinhos do andar de cima, da qual ele é ouvinte assíduo e não por ser “todo ouvidos”. Simplesmente ouve por que as finas o teto que divide os andares não impede a passagem do som. E no meio da noite, quando ainda acordado, acaba ouvindo o que chama de “festividades” do casal vizinho. Pois “chavascal”, entre vários outros significados mais ou menos correlatos, quer dizer “falta de ordem”, “desarrumação”. Diferentemente, diga-se, do que cheguei a pensar.

Ainda estou no primeiro terço do livro e, além das palavras citadas, já encontrei várias outras que me levaram ao Houaiss. E, com certeza, muitas outras ainda estarão no meu caminho até a última crônica. Mas, quer saber? Apesar do peso e do perigo de uma distensão no braço, achei divertido andar pela casa, ao mudar de local de leitura – às vezes é a cama, outras vezes é o sofá da sala, já foi e será de novo, se o tempo ajudar, o terraço – carregando o pequeno exemplar do Pedro Mexia e o robusto e pesado Houaiss. Pois para mim, ignorante dos recônditos da língua pátria, não haveria o prazer da leitura de um sem o outro.

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