segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Conto de Natal


Antônio Contente

Por uma dessas insondáveis circunstâncias do amor ele foi morar, pouco antes do último Natal do século passado, num agradável recanto longe deste insensato mundo, num então agradabilíssimo subúrbio do Rio de Janeiro.

É que no distante bairro, com a palavra Vila antes do nome, a namorada possuía imóvel, abrigo certo para o sentimento nascente, em solidificação. Durante alguns meses lá ficaram ao sabor dos bons instantes.

E o pedaço no qual se instalaram tinha belo verde por perto, além de pequena baixada pela qual corria cristalino filete d’água; que se não era suficiente para atrair garças, dele vinha, nas noites de Verão, o coaxar de rãs que serviam de fundo musical para o cenário de campos do interior, como os de antigamente.

Por ali os pequenos instantes que levam à felicidade brotavam das coisas simples. Ele gostava, por exemplo, nas manhãs frescas dos sábados, de colar barriga à pia da cozinha para lavar folhas de rúcula.

Isso enquanto, no som, um velho elepê de Nat King Cole espalhava a suave melodia do The Very Tought of You, a dizer: “Pensando em ti/ Me esqueço de fazer/As pequenas coisas normais/ Que cada um deve fazer./ Estou num sonho/ Estou feliz como um rei”...

E então lá vinha Sílvia, cabelos curtos e riso alvo. Para, subitamente, aos espantos de ninguém, saírem a dançar pela sala.

Que se alongava em pequena sacada sobre a qual as pétalas das margaridas batiam na grade térrea.
Convite a que Narieldo, soltando a moça, pulasse para fora; colhido o raminho, entregava a afirmar que continha, também, essências dos cantos dos passarinhos que moravam no bairro sem nunca dele sair.

Em muitas manhãs Narieldo entregava-se a um barroco gesto. Ao acordar, lusco fusco no quarto, Sílvia a ressonar, ele se ajoelhava no chão, ao lado dela. Na primeira vez em que percebeu, a moça soltou um espantado “o que é isso”?

— Rezo — ouviu a resposta.

— Reza?

— Para agradecer aos deuses a glória de ter acordado ao teu lado...

Já na morada fazia quase um mês, certa madrugada Narieldo escutou som que parecia chegar de muito longe. Era um apito, prolongado. Que, ao concluir o rapaz vir de algum trem, passou a acreditar ser pranto das velhas estradas de ferro sendo destruídas. E tal gemido, lamentoso, se repetiu em outras madrugadas.

Até que na véspera do Natal, noite de chuva e até algum frio no verão carioca, o moço despertou com o som.

Como sabia que os trilhos da estrada de ferro que tivera dias de glória não passavam muito longe, deixou a cama com jeito, agasalhou-se e, silenciosamente, saiu. Queria, a todo custo, ver, com os próprios olhos, o trem moribundo.

Só que, pouco depois, Sílvia também acorda, não vê o marido e o chama. Sem resposta, levantou; apavorada, descobriu que o fulano não estava no apartamento. Enrolada em agasalhos, sentou na sala. 
O coração pulsava forte enquanto, apesar do dezembro, a sensação de frio aumentava.

Faltava pouco para amanhecer, alguém enfia chave na porta. Vendo Narieldo entrar, ensopado, ela salta:

— O que foi? Onde você estava?

Antes de responder, ele puxa cadeira e senta. Arfa, a voz cansada:

— Escutei, no nosso quarto, o apito do trem que passa quase toda madrugada naquela linha lá embaixo. Como isso sempre chegou aos meus ouvidos como um suspiro de lamento das locomotivas que estão morrendo, saí; queria ver a composição passar.

— E viu?

— Sim, claro, vi.

— Mas, Narieldo, você não pode ter visto. Não passa um trem por aquela linha faz mais de dois anos!

— Impossível. Pois ele chispou ao meu lado, senti até o vento de sua carreira bater no meu rosto...
Ficaram calados. Súbito, o rapaz levanta:

— Espera, acho que você tem razão, pois o trem correu diante de mim sem fazer barulho; parecia flutuar no espaço... Vai ver tudo isso é apenas efeito do nosso primeiro Natal aqui...
Novo silêncio; Narieldo senta, a dizer:

— Mas, na hora em que virei as costas para voltar pra casa ouvi, nitidamente, o apito; como um lamento... Sem dúvida, é coisa de Papai Noel...
Naquela mesma manhã o assunto entre os dois esgotou-se, nele não falaram mais. E tempos depois, com o caso d’amor terminado, nosso herói contou a história para um amigo. Que indagou:

— E o som da ferrovia? Depois que você saiu daquele bairro morreu para sempre?

— Não, às vezes eu o escuto, aqui mesmo à beira mar, em Ipanema.
Pegou a taça de vinho, deu um gole. Para concluir:

— Afinal, meu caro, os amores eternos são os que duram apenas o tempo de um apito de trem; que, contudo, não deixe de soar. Estou a ouvi-lo sempre nesta época de fim de ano quando, em insônias, nas madrugadas, sinto baita saudade daquele Natal; e dos braços de Silvinha...

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