segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Menino, galo e tempestade






Antonio Contente

Nos velhos tempos em que se acordava com o canto deles, eu tive um galo. Foi em Mocajuba, cidadezinha em beira de rio no âmago da Amazônia pré-destruição, anos antes da minha adolescência. Karen Blixen, aliás Isak Dinesen, começa seu famoso “Out of Africa”, que deu belo filme com Robert Redford e Meryl Streep, afirmando: “Eu tive uma fazenda africana”. Pois eu, mais modesto, se um dia contar algo longo sobre a meninice, começarei dizendo que, um dia, tive um galo. Pois só assim, repetindo a autora dinamarquesa, poderei descobrir que todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas. 

Ora, amigos, vamos falar a verdade, poucas coisas podem alegrar tanto a vida de um menino como, de repente, ser presenteado com um galo. Quando o peguei, ofertado por um tio, nem queria acreditar. Era uma ave robusta, de penas avermelhadas que soltavam faíscas ao bater do sol. De quebra exibia crista que caia para o lado; ao ciscar a terra em busca de bichinhos, os colhia com bicadas certeiras, plenas de lampejos e cintilar de raios. 

Assim, naquele mês de férias de fim de ano na cidadezinha, tudo, pra mim, girou em torno do galo. Pessoalmente ia à vendinha pegar o melhor milho e invariavelmente, nos cafés da manhã, enfiava no bolso um naco de pão que triturava depois para o meu amigo, batizado como “Gigante”. 

O dramático, no período, foi a madrugada em que acordei com o trovão de uma das imensas chuvas no chamado inverno amazônico. Não tive a menor dúvida em escapulir da rede e, munido de potente lanterna que sempre ficava na mesa da cozinha, me enfiei no quintal para verificar se a linda ave mantinha-se segura no barracão que servia de galinheiro. Acabei todo molhado, mas constatei que “Gigante” permanecia sequíssimo. 

O que passou a me preocupar, mais adiante, acabou por ser o óbvio: no fim das férias, o que fazer com meu faiscante companheiro? Que barreiras teria que enfrentar para levá-lo comigo pra Belém, a fim de continuar a tê-lo no quintal da casa paterna? Resolvi que pensaria melhor no assunto quando chegasse a hora. 

E ela, naturalmente, chegou. Com surpreendentes lances, aliás, pois a única aparente dificuldade foi o como, digamos, embalaria “Gigante“ para transportá-lo no barco que fazia a viagem de dois dias até a Capital. De resto quem resolveu tudo fui eu mesmo. Peguei um par de grandes paneiros e os coloquei com as aberturas uma contra a outra. Amarraria com bom barbante e pronto, dentro iria o lindo galo que guardava, pra mim, a beleza de todas as auroras que anunciava com seu canto. 

O nosso barco era o “Capitânea”, imponente nome para um flutuante de modestas dimensões. Apenas uma cabine de passageiros, motor barulhento e comprido leme atrás, empurrado para um lado e outro na busca da direção certa. No dia do embarque instalei “Gigante” na proa, junto aos pesados tambores de combustível. Partimos. 

Mas, como disse, era inverno na Amazônia, a exageradamente líquida estação das chuvas, que costuma conduzir no âmago impressionantes temporais. Um dos quais, à noite, nos pegou na travessia da Baía do Muritipucu. Mar de água doce com ondas de mar salgado, a açoitar com violência. Desesperado, tentei sair para trazer o galo pra a cabine, porém fui contido. Por fim, de madrugada, na calmaria normal após as tempestades, saí de mansinho para verificar, com o coração em frangalhos, que a armadura de talas armada para levar “Gigante” tinha sido arrastada pelas ondas. Derramava-se então sobre a superfície líquida imensa, sem terra à vista, esparramado luar de absolutamente prateadas cintilações. Um tripulante do barco veio e, solidário, pousou a mão no meu ombro. Contendo algumas lágrimas, disse ao moço: 

- Nunca mais, na vida, vou ter um galo...

As estrelas que nos cobriam testemunharam. De todas as previsões que fiz sobre mim mesmo, aquela foi a única que não errei.

3 comentários:

  1. Acabou de cantar um galo, o do vizinho, enquanto eu lia essa crônica. Só não choveu a chuva amazônica no quintal. Muito bom!

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  2. Também tive galo na minha infância. Entendo sua perda. Os galos são uma alegria com seu anunciar da alvorada, seu jeito todo pomposo de buscar bichinhos na terra e mesmo de jogar charme para as galinhas. Depois de adulta não tive mais galos e galinhas. Minha empregada quer me dar um casal. Acho que não vai dar. Temos cachorra que late, gatos que levantam de madrugada para passear. Eu e Vicente vamos acabar tendo uma vida noturna muito movimentada. Acho que não estamos preparados para isso. Adorei a crônica. Parabéns.

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    1. Antonio Contente responde:
      "Faz muitos e muitos anos o artífice deste blog morou no Conjunto Sisalpínea, na Chácara da Barra, em frente a uma bela área verde. Séculos depois, quando Edmilson já tinha partido para outros rumos certos e sabidos, formosa moça que me achou ao léu ofereceu-me pousada na rua Piedade, nas imediações do lugar que cito acima. Lá, de madrugada, sempre escutava, como se viesse do infinito, o canto de um galo. Que identifiquei, pela estridência, como sendo garnizé. Porém só me certifiquei disso tempos depois quando, num domingo, saí para apanhar jornal na Jesuino e vi a linda ave a ciscar num gramado em frente ao prédio em que Siqueira morou. Passados mais alguns meses, quando a maravilhosa criatura que me abrigou aplicou-me o "coupe de grâce" , acordei em outras madrugadas em busca do canto do galo. Talvez alguma artimanha do destino para que eu recordasse, também, da moça. É por esses e por outros sortilégios que tal ave emite, minha cara Marisilda, que você deve aceitar o galo que lhe querem dar. Valerá a pena. Abraços".

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