Antonio Contente
Nos velhos tempos em que se acordava com o canto deles, eu tive um galo. Foi em Mocajuba, cidadezinha em beira de rio no âmago da Amazônia pré-destruição, anos antes da minha adolescência. Karen Blixen, aliás Isak Dinesen, começa seu famoso “Out of Africa”, que deu belo filme com Robert Redford e Meryl Streep, afirmando: “Eu tive uma fazenda africana”. Pois eu, mais modesto, se um dia contar algo longo sobre a meninice, começarei dizendo que, um dia, tive um galo. Pois só assim, repetindo a autora dinamarquesa, poderei descobrir que todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas.
Ora,
amigos, vamos falar a verdade, poucas coisas podem alegrar tanto a vida de um
menino como, de repente, ser presenteado com um galo. Quando o peguei, ofertado
por um tio, nem queria acreditar. Era uma ave robusta, de penas avermelhadas
que soltavam faíscas ao bater do sol. De quebra exibia crista que caia para o
lado; ao ciscar a terra em busca de bichinhos, os colhia com bicadas certeiras,
plenas de lampejos e cintilar de raios.
Assim,
naquele mês de férias de fim de ano na cidadezinha, tudo, pra mim, girou em
torno do galo. Pessoalmente ia à vendinha pegar o melhor milho e
invariavelmente, nos cafés da manhã, enfiava no bolso um naco de pão que
triturava depois para o meu amigo, batizado como “Gigante”.
O
dramático, no período, foi a madrugada em que acordei com o trovão de uma das
imensas chuvas no chamado inverno amazônico. Não tive a menor dúvida em
escapulir da rede e, munido de potente lanterna que sempre ficava na mesa da
cozinha, me enfiei no quintal para verificar se a linda ave mantinha-se segura
no barracão que servia de galinheiro. Acabei todo molhado, mas constatei que
“Gigante” permanecia sequíssimo.
O
que passou a me preocupar, mais adiante, acabou por ser o óbvio: no fim das
férias, o que fazer com meu faiscante companheiro? Que barreiras teria que
enfrentar para levá-lo comigo pra Belém, a fim de continuar a tê-lo no quintal
da casa paterna? Resolvi que pensaria melhor no assunto quando chegasse a hora.
E
ela, naturalmente, chegou. Com surpreendentes lances, aliás, pois a única
aparente dificuldade foi o como, digamos, embalaria “Gigante“ para
transportá-lo no barco que fazia a viagem de dois dias até a Capital. De resto
quem resolveu tudo fui eu mesmo. Peguei um par de grandes paneiros e os
coloquei com as aberturas uma contra a outra. Amarraria com bom barbante e
pronto, dentro iria o lindo galo que guardava, pra mim, a beleza de todas as
auroras que anunciava com seu canto.
O
nosso barco era o “Capitânea”, imponente nome para um flutuante de modestas
dimensões. Apenas uma cabine de passageiros, motor barulhento e comprido leme
atrás, empurrado para um lado e outro na busca da direção certa. No dia do
embarque instalei “Gigante” na proa, junto aos pesados tambores de combustível.
Partimos.
Mas,
como disse, era inverno na Amazônia, a exageradamente líquida estação das
chuvas, que costuma conduzir no âmago impressionantes temporais. Um dos quais, à
noite, nos pegou na travessia da Baía do Muritipucu. Mar de água doce com ondas
de mar salgado, a açoitar com violência. Desesperado, tentei sair para trazer o
galo pra a cabine, porém fui contido. Por fim, de madrugada, na calmaria normal
após as tempestades, saí de mansinho para verificar, com o coração em
frangalhos, que a armadura de talas armada para levar “Gigante” tinha sido arrastada
pelas ondas. Derramava-se então sobre a superfície líquida imensa, sem terra à
vista, esparramado luar de absolutamente prateadas cintilações. Um tripulante
do barco veio e, solidário, pousou a mão no meu ombro. Contendo algumas
lágrimas, disse ao moço:
-
Nunca mais, na vida, vou ter um galo...
As
estrelas que nos cobriam testemunharam. De todas as previsões que fiz sobre mim
mesmo, aquela foi a única que não errei.
Acabou de cantar um galo, o do vizinho, enquanto eu lia essa crônica. Só não choveu a chuva amazônica no quintal. Muito bom!
ResponderExcluirTambém tive galo na minha infância. Entendo sua perda. Os galos são uma alegria com seu anunciar da alvorada, seu jeito todo pomposo de buscar bichinhos na terra e mesmo de jogar charme para as galinhas. Depois de adulta não tive mais galos e galinhas. Minha empregada quer me dar um casal. Acho que não vai dar. Temos cachorra que late, gatos que levantam de madrugada para passear. Eu e Vicente vamos acabar tendo uma vida noturna muito movimentada. Acho que não estamos preparados para isso. Adorei a crônica. Parabéns.
ResponderExcluirAntonio Contente responde:
Excluir"Faz muitos e muitos anos o artífice deste blog morou no Conjunto Sisalpínea, na Chácara da Barra, em frente a uma bela área verde. Séculos depois, quando Edmilson já tinha partido para outros rumos certos e sabidos, formosa moça que me achou ao léu ofereceu-me pousada na rua Piedade, nas imediações do lugar que cito acima. Lá, de madrugada, sempre escutava, como se viesse do infinito, o canto de um galo. Que identifiquei, pela estridência, como sendo garnizé. Porém só me certifiquei disso tempos depois quando, num domingo, saí para apanhar jornal na Jesuino e vi a linda ave a ciscar num gramado em frente ao prédio em que Siqueira morou. Passados mais alguns meses, quando a maravilhosa criatura que me abrigou aplicou-me o "coupe de grâce" , acordei em outras madrugadas em busca do canto do galo. Talvez alguma artimanha do destino para que eu recordasse, também, da moça. É por esses e por outros sortilégios que tal ave emite, minha cara Marisilda, que você deve aceitar o galo que lhe querem dar. Valerá a pena. Abraços".