sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Saga galinácea


Edmilson Siqueira

Meu amigo Antonio Contente contou sua história de ladrões de galinha, depois revelou o galo que tanto o entristeceu na adolescência e eu – continuando a saga galinácea do blog – vou contar a história da galinha que tivemos, ainda na Vila Industrial, lá pelos idos dos anos 50. Nada combinado, claro, mas a vida é assim mesmo.
Morávamos numa casa com um quintal que seria considerado generoso para os dias de hoje: caberia outra casa nele e ainda tinha, lá nos fundos, mais uma casa de três cômodos onde morava uma família também.  

O quintal tinha grama – o quarador da dona Carminha – tinha varais, um pé de aloma, um de cana e uma outra arvorezinha que foi ficando menor à medida que crescíamos, mas, na minha infância, era enorme.  
O pé de cana e o de aloma ficavam num canto, perto do muro que nos separava do vizinho do lado e entre eles foi construído um cercadinho, quase um galinheiro, para abrigar a penosa que seu Jamil comprou de um homem que passou na rua. Seu Jamil era assim: não podia passar alguém vendendo algo que ele comprava, para desespero da dona Carminha: “O que vamos fazer com essa galinha?” Ao que Jamil respondeu: “Uma canja, ué?”

- Mas quem mata a coitadinha?, perguntou, aflita, Carminha.    
-Sei lá, é só cortar a cabeça dela.

Não me lembro bem se o diálogo foi esse, mas deve ter sido parecido. O fato é que meu pai e eu nos enveredamos pela construção do abrigo para a penosa e, com uma tela de arame e umas estacas ele ficou pronto. Pequeno, pois a ideia era abrigar a galinha somente à noite. Dentro dele, uma caixa de madeira, grande o suficiente para ela se abrigar das intempéries.  Durante o dia ela teria o quintal inteiro para ciscar.
E assim foi. A galinha ainda não tinha atingido sua, digamos, idade adulta. Bem alimentada – além dos bichinhos do quintal todo, dávamos milho a ela – cresceu e começou a botar um ovo por dia, cuja tarefa de verificar no ninho se o produto já estava lá, me foi dada e eu a realizava com a maior seriedade.

Acho que já fazia um mês que a galinha vivia por ali. Era comum vê-la beirando o tanque, bicando farelos de pão no chão da cozinha e até fazendo pequenas incursões pela sala, onde era recebida com “olás” pela família.
Até que um dia meu pai chegou do trabalho e, como estava de folga no dia seguinte, foi logo ordenando para dona Carminha: “Amanhã quero comer uma canja de galinha”. Isso significava simplesmente que minha mãe teria de fazer a canja. E significava também que o reinado da galinha que passeava pela casa toda e anunciava com altos cacarejos cada vez que cometia um ovo, tinha chegado ao fim.

Quando minhas irmãs chegaram da escola, à tardinha, minha mãe contou pra todo mundo: “Seu pai quer comer uma canja amanhã. Vamos ter de matar a galinha”.
As frases caíram com se ela tivesse anunciado a sentença de morte de um membro da família. Minhas irmãs fizeram cara de choro e eu não fiquei só na cara: chorei mesmo, do alto dos meus seis ou sete anos. “A gente não pode comprar uma galinha já morta?” Não, não podia, mesmo porque naqueles tempos de parcos ganhos, gastar dinheiro com uma coisa que a gente já tinha em casa era impensável.

Mas quem ia matar a galinha? Minha mãe já havia dito que não sabia. A sugestão do meu pai de simplesmente cortar-lhe a cabeça era inviável, já que, diziam, o sangue se perde, a carne fica ruim ou sei lá o quê.
A solução foi recorrermos à sábia dona Noêmia, a vizinha, cuja idade era um mistério para todos. Diziam que ela era filha de escravos e até que ela própria só não foi escrava porque nasceu quando já vigorava a Lei do Ventre Livre, antes de 1888. Filha de escravos ou não, o fato é que dona Noêmia era prática nessas coisas de quintal e galinhas. Pegava a bruta num segundo, com uma agilidade surpreendente para seu corpo já arquejado e grande, colocava-a no colo e, num átimo, dava uma espécie de nó no pescoço da penosa que, imediatamente, tombava a cabeça, inerte, sem um estrebucho sequer.

Assim deve ter sido com a nossa galinha que foi entregue, quase às lágrimas, por dona Carminha para dona Noêmia. No jantar daquele dia foi servida uma majestosa canja que fez seu Jamil repetir o prato três vezes. Dona Carminha comeu pouco – ela não era de comer muito mesmo – mas eu e minhas irmãs, ao nos deparamos com aquele caldo e aqueles pedaços de carne branca, não conseguimos nem experimentar.

2 comentários:

  1. O final da história eu nem me lembrava mais. Mas eu lembro dos ovos. Foi bom recordar.
    Com carinho Rudi

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pra se lembrar dos ovos, Rudi só poderia ser personagem da crônica que escrevi. E é mesmo: é minha irmã e estava lá, como testemunha ocular da história.

      Excluir