Edmilson Siqueira
Meu amigo Antonio Contente contou sua história de ladrões de
galinha, depois revelou o galo que tanto o entristeceu na adolescência e eu – continuando
a saga galinácea do blog – vou contar a história da galinha que tivemos, ainda
na Vila Industrial, lá pelos idos dos anos 50. Nada combinado, claro, mas a
vida é assim mesmo.
Morávamos numa casa com um quintal que seria considerado
generoso para os dias de hoje: caberia outra casa nele e ainda tinha, lá nos
fundos, mais uma casa de três cômodos onde morava uma família também.
O quintal tinha grama – o quarador da dona Carminha – tinha varais,
um pé de aloma, um de cana e uma outra arvorezinha que foi ficando menor à
medida que crescíamos, mas, na minha infância, era enorme.
O pé de cana e o de aloma ficavam num canto, perto do muro
que nos separava do vizinho do lado e entre eles foi construído um cercadinho,
quase um galinheiro, para abrigar a penosa que seu Jamil comprou de um homem
que passou na rua. Seu Jamil era assim: não podia passar alguém vendendo algo
que ele comprava, para desespero da dona Carminha: “O que vamos fazer com essa
galinha?” Ao que Jamil respondeu: “Uma canja, ué?”
- Mas quem mata a coitadinha?, perguntou, aflita, Carminha.
-Sei lá, é só cortar a cabeça dela.
Não me lembro bem se o diálogo foi esse, mas deve ter sido
parecido. O fato é que meu pai e eu nos enveredamos pela construção do abrigo
para a penosa e, com uma tela de arame e umas estacas ele ficou pronto.
Pequeno, pois a ideia era abrigar a galinha somente à noite. Dentro dele, uma
caixa de madeira, grande o suficiente para ela se abrigar das intempéries. Durante o dia ela teria o quintal inteiro para
ciscar.
E assim foi. A galinha ainda não tinha atingido sua,
digamos, idade adulta. Bem alimentada – além dos bichinhos do quintal todo,
dávamos milho a ela – cresceu e começou a botar um ovo por dia, cuja tarefa de
verificar no ninho se o produto já estava lá, me foi dada e eu a realizava com
a maior seriedade.
Acho que já fazia um mês que a galinha vivia por ali. Era
comum vê-la beirando o tanque, bicando farelos de pão no chão da cozinha e até
fazendo pequenas incursões pela sala, onde era recebida com “olás” pela
família.
Até que um dia meu pai chegou do trabalho e, como estava de
folga no dia seguinte, foi logo ordenando para dona Carminha: “Amanhã quero
comer uma canja de galinha”. Isso significava simplesmente que minha mãe teria
de fazer a canja. E significava também que o reinado da galinha que passeava
pela casa toda e anunciava com altos cacarejos cada vez que cometia um ovo,
tinha chegado ao fim.
Quando minhas irmãs chegaram da escola, à tardinha, minha
mãe contou pra todo mundo: “Seu pai quer comer uma canja amanhã. Vamos ter de matar
a galinha”.
As frases caíram com se ela tivesse anunciado a sentença de morte
de um membro da família. Minhas irmãs fizeram cara de choro e eu não fiquei só
na cara: chorei mesmo, do alto dos meus seis ou sete anos. “A gente não pode
comprar uma galinha já morta?” Não, não podia, mesmo porque naqueles tempos de
parcos ganhos, gastar dinheiro com uma coisa que a gente já tinha em casa era
impensável.
Mas quem ia matar a galinha? Minha mãe já havia dito que não
sabia. A sugestão do meu pai de simplesmente cortar-lhe a cabeça era inviável,
já que, diziam, o sangue se perde, a carne fica ruim ou sei lá o quê.
A solução foi recorrermos à sábia dona Noêmia, a vizinha,
cuja idade era um mistério para todos. Diziam que ela era filha de escravos e
até que ela própria só não foi escrava porque nasceu quando já vigorava a Lei
do Ventre Livre, antes de 1888. Filha de escravos ou não, o fato é que dona
Noêmia era prática nessas coisas de quintal e galinhas. Pegava a bruta num
segundo, com uma agilidade surpreendente para seu corpo já arquejado e grande,
colocava-a no colo e, num átimo, dava uma espécie de nó no pescoço da penosa que, imediatamente,
tombava a cabeça, inerte, sem um estrebucho sequer.
Assim deve ter sido com a nossa galinha que foi entregue,
quase às lágrimas, por dona Carminha para dona Noêmia. No jantar daquele dia
foi servida uma majestosa canja que fez seu Jamil repetir o prato três vezes. Dona
Carminha comeu pouco – ela não era de comer muito mesmo – mas eu e minhas irmãs,
ao nos deparamos com aquele caldo e aqueles pedaços de carne branca, não
conseguimos nem experimentar.
O final da história eu nem me lembrava mais. Mas eu lembro dos ovos. Foi bom recordar.
ResponderExcluirCom carinho Rudi
Pra se lembrar dos ovos, Rudi só poderia ser personagem da crônica que escrevi. E é mesmo: é minha irmã e estava lá, como testemunha ocular da história.
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