quarta-feira, 31 de outubro de 2012

JT: *04/01/1966 - + 31/10/2012





Edmilson Siqueira
É bem provável que, em 4 de janeiro de 1966, eu tenha comprado o primeiro exemplar do Jornal da Tarde. Eu morava na Vila Itália, um trecho delimitado por duas linhas de trem entre o Bonfim e a Vila Teixeira. É bem provável porque eu já o lia antes, não como JT, claro, mas como a Edição de Esportes do Estadão, apelidada de Estadinho, que circulava às segundas-feiras e era vendida separadamente.  Eu gostava da modernidade de sua diagramação (nem conhecia essa palavra, acho eu), das grandes fotos e, principalmente, do texto moderno. Não sabia que aquele jornal sobre futebol era o laboratório onde estava sendo urdido o Jornal da Tarde.

Em 1966 aconteceram grandes coisas. No meio do ano, por exemplo, fui passar as férias de julho em Rio Preto e foi lá que eu ouvi a seleção de futebol ganhar o primeiro jogo na Copa do Mundo da Inglaterra, por dois a zero da Bulgária. E perder os outros dois, voltando pra casa naquela que foi talvez a pior passagem do Brasil nesse torneio. E estavam lá Tostão, Jairzinho, Gerson, Garrincha e Pelé.

Mas o JT seguia primoroso: uma grande equipe, talentos esbanjando textos e fotos, criatividade a cada nova capa, a cada nova edição. Eu adorava ler algo daquele jeito, moderno, antenado com a nova realidade brasileira.
Nova realidade brasileira? Peraí. Há dois anos um governo eleito – era o vice que estava no poder porque o titular, entre uma talagada e muitas outras de uísque escocês, renunciara – havia sido deposto pelos militares e estávamos caminhando para uma ditadura. Que só iria se confirmar mesmo, dois anos depois, em 68, quando um Ato Institucional (o tristemente famoso AI 5) acabou com o que restava de liberdade política e social no Brasil.
Com a censura comendo pelas tabelas, o JT, na melhor tradição dos Mesquitas, não se entregou. No lugar das reportagens e artigos censurados colocava receita de bolos. No Estadão, ainda sisudo, mas também disposto a enfrentar o mau humor militar, trechos de Os Lusíadas e de sonetos do grande poeta português. No dia em que o AI 5 foi enfiado goela abaixo dos brasileiros, os milicos proibiram até de dar a notícia. No lugar dela, o JT inovou mais ainda: ao invés da receita de bolo, botou um anúncio de um programa que estreava na Rádio Eldorado, do mesmo grupo: “Agora é Samba!”, estampava o jornal em letras bem grandes na primeira página.
Pelo JT – e depois pelo Pasquim – foi que  acabei adquirindo o gosto pelo jornalismo opinativo que mais tarde iria exercer. Livre das amarraras do texto empolado, do tal do português casto, podíamos escrever mais à vontade, retratar a realidade sem retoques e exercer o fascinante jogo de se exprimir com liberdade. Pena que a ditadura atrapalhava, mas a semente estava ali no JT e iria frutificar. Enquanto o Pasquim inovava no atrevimento e no texto de grandes cabeças – Ivan Lessa, Millôr Fernandes, Paulo Francis, Tarso de Castro – e no traço de humoristas geniais (pelo menos à época) – Jaguar, Ziraldo, Henfil, Fortuna – o JT nos ensinava a ver a realidade como ela era, em textos primorosos, em reportagens sensacionais e em fotografias que ultrapassavam o limite da simples reportagem.Comprei o  em todas as bancas possíveis e quando o dinheiro dava – eram outros tempos, vivia, até 18 anos, da parca mesada. Depois, trabalhando, já podia me dar ao luxo de adquirir diariamente meu exemplado do JT, menos aos domingos, que era, aliás, outra inovação: no dia de maior leitura, não havia JT. Mas ele imperava nas bancas de segunda-feira, numa época em que não havia jornais nesse dia. E mesmo depois, quando houve, o JT continuou imbatível por um bom tempo.
Acho que li o JT até fins dos anos 70, não me lembro bem. Tornei-me jornalista em 1977, lá no Diário do Povo da César Bierrembach e, tenho certeza, muito do que pude escrever veio do que guardei do grande “vespertino” que hoje – dia 31 de outubro de 2012 – desaparece, engolido pela tecnologia que vai engolir, em pouco tempo, todos os outros jornais. Num mundo de tablets e celulares que levam a informação instantânea – o tal do “tempo real” – para você em qualquer lugar do mundo e na língua que você escolher – não haverá mais mercado para jornais de papel feitos de árvores.  Mas ficará a lição que o JT deixou nos seus 46 anos de vida: há sempre lugar para a inovação, para a ousadia e para a inteligência.

Um comentário:

  1. Em 1977, quando você se tornou jornalista, eu já tinha entrado e saído do JT, onde trabalhei durante 3 anos no começo da citada década. Eu era copy, nesse tempo o jornal ainda permanecia criativo, mas depois foi se padronizando. Não sei se o fim da publicação está sendo determinado pelo avanço da tecnologia. É que, na verdade, mesmo na época do vespertino formidável, já dava prejuizo. Dizem que os Mesquitas só o mantinham por uma questão de honrar o nome da família, ainda mais que quem mandava no JT era o Ruy, seríssimo, e o Carlão, tremendo boa praça. Este, morreu de uísque; o outro, idoso, tá lá até hoje. O que acontece é que o grupo Estadão não é mais da estirpe de grandes jornalistas. Quem comanda é uma troupe de executivos mais frios que focinhos de renas: deu prejuizo tem mais é que fechar. Até acho que demorou muito. No meu tempo chegamos a sofrer alguns atrasos de pagamento. E olha que isso faz tempo. Era a época em que o censor tinha mesa na redação...

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