segunda-feira, 2 de julho de 2012

2001 e 2 e 3...


A gente nem percebe. Chego em casa do trabalho, perto das oito da noite, e Zezé está dando aula para um aluno na sala. Nem ligo para a cena que, durante a maior parte da minha vida, nem imaginei que fosse presenciar. Zezé conversa em inglês com o aluno que responde e, em seguida, a aula é interrompida pela chegada de uma criança, com menos de dois anos. É a filha dele. Ele a pega no colo, aponta para a Zezé e diz o nome dela, a criança olha, sorri, Zezé diz, carinhosa, “she’s so beautiful” e, depois, “she’s so big”, a menina acena, vai embora e a aula continua. Enquanto o diálogo acontecia, eu estava trocando de roupa no quarto, trocando, não, tirando a roupa para ir para um gostoso banho depois de uma segunda-feira normal, ou seja, estafante. Passei pela aula só de cueca, entrei no banheiro e, quando saí, eles já estavam nas despedidas, bye, bye, see you next week, thank you.
O aluno e a filha estavam a vários quilômetros dali, a aula é dada através de um desses programas de computador que juntam voz e imagem e transmitem, feito uma televisão ao vivo, para qualquer ponto do planeta onde haja sinal disponível. Não, ninguém que está lendo essas mal traçadas está surpreso, claro. Falar daqui com alguém olhando nos seus olhos via internet, no Japão ou na Austrália, é corriqueiro para quem tem um micro ligado na rede mundial. Mas não era assim.

No meio da década de 1970 eu trabalhava na Unicamp. Almoxarifado Central. Além de estocar mercadorias – o que todo bom almoxarifado faz – éramos encarregados de recebê-las e, antes, de cobrar a entrega aos fornecedores. Alguns desses fornecedores eram de São Paulo. E eu era encarregado de cobrá-los. Durante alguns dias, eu juntava as cobranças e quando já tinha umas três ou quatro, ligava, logo que chegava ao trabalho, para a telefonista e lhe passava todos os números dos locais onde precisava falar em São Paulo. Se tivesse sorte, até lá pelas 16h, ela me retornava com uma das ligações pedidas. As outras, só no outro dia.

Havia outra solução, arranjada com o sofisticado setor de importações da Unicamp. Sofisticado porque eles tinham um telefone que tinha linha direta com São Paulo!!! E era fácil: você pegava o bruto, discava (sim discava) o número 7 e esperava o sinal. Se fosse sinal de linha e não de ocupado, parabéns, você tinha conseguido. Aí era só discar rapidamente o número de São Paulo. Com sorte, a ligação saía audível e você fazia a cobrança da mercadoria que a universidade tinha comprado e cuja entrega já estava atrasada. Isso quando a linha não caía no meio da ligação.

Antes ainda, eu morava na Vila e, ali por 1960, meu pai apareceu em casa com um radinho portátil Sharp. Japonês, num estojinho de couro que brilhava e que meu pai mantinha sobre uma cômoda no quarto dele, coberto por uma flanela amarela. Eu nunca tinha visto um treco daquele. Na sala havia um Zilomag, rádio-vitrola, 3 rotações, 3 faixas de onda, elétrico. Claro, a som vinha pelo fio e estava tudo explicado. Mas e o radinho que não tinha fio? Não lembro de ninguém me explicando como se dava o “milagre”.
Lembro-me, sim, de, em algumas raras vezes, alguém chamar meu pai ou minha mãe para atender ao telefone lá no bar do Reinaldo, que ficava na esquina da Carlos de Campos com a Coronel Antonio Lemos, a dois quarteirões de casa. Era o único do pedaço e servia a todo mundo.

Mais recentemente, anos 1980, ainda no primeiro casamento, a então sogra foi trabalhar em Angola. Pra conversar com ela, ligávamos para Portugal que, de lá, fazia a ligação, via rádio, com Angola, recém-saída do colonialismo. Era como falar no Nextel de agora, só que sem aquele botãozinho pra apertar: um de cada vez, sem interromper o que o outro estava falando, senão embaralhava tudo e a ligação bau-bau. E custava uma nota.
Agora a gente nem percebe: a mulher dando uma aula na sala em frente a um laptop. Do outro lado, a quilômetros de distância (e poderia ser a milhares de quilômetros que nada mudaria) o aluno, também em frente a um laptop, falando em inglês e ambos se olhando como se estivessem sentados à mesa. Eu não me espanto, claro, mas para quem pedia ligações para São Paulo que demoravam um dia inteiro para se completar, para quem achava um mistério o radinho de pilha não ter fio e assim mesmo ter som, para quem viu a “modernidade” de um telefone – e apenas um na Unicamp inteira – liberar uma linha direta pra São Paulo, para quem viu o telefone de um bar servir a uns dois ou três quarteirões quadrados de casas lá na Vila, a aula à distância da Zezé me levou diretamente àquela cena inicial de 2001, quando um osso, jogado por uma macaco que o havia descoberto como arma, sobe pela tela em slow motion e, ao som dos acordes iniciais de Danúbio Azul, se transforma numa nave viajando pelo espaço.

5 comentários:

  1. Além da delícia do texto, sua crônica me confortou por lembrar que fatos aparentemente tão distantes e anacrônicos, como a torcida pra conseguir completar um interurbano, cabem não só na minha, mas na sua vida e, claro, na de muita gente. Isso pq, há pouco, eu mandava um e-mail para um colega jornalista em que lamentava a linguagem (??) da internet de hoje, em que abreviações e símbolos quase cifrados ficaram normais nos torpedos da vida, tornando obsoletos - eu temo - cuidados com pontuação, concordância e afins. E me sentia muito velha enquanto escrevia isso. Agora, estou concluindo que não fomos nós que envelhecemos depressa, o mundo é que está andando muito rápido.

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  2. Adorei seu texto, mas não posso deixar de perguntar .... em que século você nasceu meu querido? Hoje me faz rir a admiração que senti pela primeira IBM electrónica (aquela com daisy wheel). Hoje na bolsa, meu ebook, IPad e Android tem mais capacidade que uma dúzia delas. E haja energia e tempo to keep up com tanto avanço tecnológico.

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    1. Carmencita querida, nascemos no mesmo século, o passado, eu um pouco antes que você. A IBM eletrônica que conheci, tinha esferas. Quem tinha margaridas era a Olivetti. Ambas foram engolidas pela era da informática. E nós teimamos em não ser engolidos pelo tempo. Bjs.

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  3. O Vicente era o doidinho da nossa Vila Hortência, lá em Sorocaba, no começo dos 60, quando eu era feliz e ninguem estava morto (essa é do Fernando em Pessoa).
    Ele morria de medo de morrer, por isso não saia da sacristia da igreja do Bom Jesus, colecionando santinhos, pedindo benção aos franciscanos uma 67 vezes por dia, queimando uma vela atrás da outra e rezando ajoelhado até que as calças se decompusessem.
    Quando o Vicente saia da igreja, de tardinha, a gente ia atrás gritando: "Vicente, vai acabar o mundo!!!".
    Pra que? O beato dava lugar ao combatente. Tacava pedra, xingava da mãe, corria atrás, e a gente desaparecia rindo.
    É... a gente tinha tempo pra ir na matinê do Eldorado (dois filmes de cada vez), assistir canal 100, ver o repórter esso, assistir desenho do picapau, plic, ploc e chuvisco, comer bauru uma vez por semana, ir na praia de trem uma vez por ano, comer frango no domingo, peixe na sexta-feira e de noite tinha aquelas rodas intermináveis de dez, vinte moleques na rua brincando de unha na mula ou qualquer outra brincadeira.
    Ai um dia, eu não sei o que aconteceu direito, mas eu tinha uns onze anos. Fechei os olhos e quando os abri de novo estava com 55.
    E aquele mundo tinha acabado.
    Vai ver, foi praga do Vicente.

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    1. Dini, seu comentário é outra crônica, pequena no tamanho mas grande na inspiração. Meu blog ficou muito mais bonito com ela. Valeu!

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