terça-feira, 31 de julho de 2012

O estorvo e o carinho

Quartier Latin


Edmilson Siqueira

Fim de verão por aqui, as águas de março já cessaram e começa aquela mudança de tempo anunciando o outono e já não dá mais pra dormir sem pelo menos uma colcha. O terracinho que Zezé e eu tanto freqüentamos nas “happy hours”, ajudados pela hora atrasada no relógio que faz o pôr do sol acontecer lá pelas sete e meia, já começa a ficar mais distante. Nem a hora atrasada existe mais. Um vento frio – moramos no 12º andar de um prédio construído quase no topo de uma colina que liga o Cambuí ao Taquaral – já começa a dar o ar de sua graça sem graça, provocando o fechamento da janela para que apenas o sol entre na sala.

Tem gente que gosta mais do frio que do calor. Nós não e nisso combinamos bem. Para um casal em que a mulher é vegetariana e o homem é carnívoro, ambos gostarmos do calor e não do frio é um grande avanço para a cordialidade das relações. Mas claro que a gente se ama. E como a comprovar esse amor, o outono nos provoca sentimentos semelhantes.

Dia desses, um domingo de manhã, Zezé achou que deveria comprar roupas para o Yoga que ela tanto curte. E tinha de ser na Decathlon. Um domingo lindo, sem aquele calorão delicioso, mas lindo assim mesmo, e lá fomos nós até lá pelas bandas do Leroy Merlin. Ao descer no estacionamento, olhei para o céu azul, sem nuvens, e vi um avião, um jato grande, voando alto de não se escutar suas turbinas, com o nariz apontado para o Nordeste. Falei pra Zezé apontando o avião: “Tá com jeito de que vai atravessar o Atlântico”. Zezé respondeu antes que eu sugerisse o destino: “Paris”.

Era, claro, o que eu ia falar. Não que ambos soubéssemos para onde o jato ia. Não sabíamos sequer com precisão para onde o nariz do bicho apontava, nem se era de passageiros ou de carga. Mas, para nós, era Paris que esperava, generosa como sempre, do outro lado do Atlântico.

La Maison de La Radio às margens do Sena


Na verdade, eu acho que Paris me espera desde aquele início de setembro de 2002, quando a olhei do alto pela última vez, a bordo de um jato da Air France com destino a Cumbica. Daqui a poucos meses serão dez anos. Parece que foi ontem. Parece que foi há um século. Quando revejo as fotos – há dois álbuns enormes, pois o mundo virtual ainda não nos tinha alcançado  – folheando aquele tempo, tenho a impressão de que nada mudou, que está tudo em ordem, tudo certo e que rapidinho a gente estará aprontando as malas.

Já o avião no céu em direção a Paris, visto do estacionamento, provoca um banzo de uma terra que nunca foi minha, de uma cidade que conheço pouco, onde sou mais um estranho turista a ficar de boca aberta com aquelas paisagens, aquelas pontes, aqueles cafés todos, aquelas telas todas, todos aqueles parisienses que nem desconfiam que moram onde eu queria morar, que nasceram onde eu queria ter nascido e que vão morrer onde eu gostaria de respirar pela última vez.

Um amigo do Norte (Norte do Brasil, Belém do Pará, mais precisamente) me mandou um e-mail de uma mulher (não sei se amiga dele, ele tem tantas) que confessava seu amor por Budapeste num PPS enorme, cheio de fotos panorâmicas da capital húngara, paisagens deslumbrantes com música clássica ao fundo. No texto, ela declara que a viagem fez mudar seu ranking de cidades favoritas e, agora, Budapeste ocupa o topo.

Em 2007, estivemos em Lisboa. Linda, clara, limpa e preservada, um povo falando a mesma língua que a gente (bem, às vezes parecia outra língua), vida bem mais barata que Paris, Londres, Roma ou Campinas. Temos umas mil fotos de lá e juramos de pé junto que, assim que der, a gente volta. E até ficaríamos por lá mesmo, numa aposentadoria de sonhos. Mas meu ranking, não mudou. Nem o da Zezé. Paris é o topo e assim será para todo o sempre.  Lisboa tem tudo, mas falta algo que talvez eu nem saiba precisar. Talvez Lisboa nos inspire o passado, a ancestralidade que carregamos, o Gil da Zezé e o meu Siqueira que vêm lá da terrinha e a gente a vê como um quintal iluminado do Brasil, ou talvez seu terraço mostrando o que poderíamos ainda ser, tivéssemos preservado nossas cidades. Lisboa é nossa, nos sentimos em casa como jamais nos sentiremos em Paris. Porque Paris é o amor impossível que incomoda e encanta. Paris é praia e o deserto, é a música e o silêncio, é a poesia e o grafite. Paris é o estorvo e o carinho. 

Lisboa é sim um encanto, Budapeste deve ser também. Mas a magia, onde está a magia?

Não, não é a magia da Tour Eiffel, das pontes do Sena, do Louvre ou da Notre Dame. É a magia daquele beco que não dá em nada, daquele café sob a chuva, daquela Shakespeare And Company onde não entrei, da Allée da Rue Oudinot que, não fosse a amiga do Du que publicou as fotos dela no Viver Paris eu talvez jamais conhecesse (e, por enquanto, só por fotos), daquela casa de jazz chamada Le Petit Journal, das ruas de Montmartre onde ainda não andei, da meia-noite que Woody Allen descobriu que enfeitiça. Enfim, a magia de Paris está solta no ar e quem a absorve está condenado a amá-la sobre todas as coisas, por todos e quaisquer motivos.

A livraria símbolo de Paris


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Explicação necessária (acho eu): essa crônica que você acabou de ler eu havia escrito em março deste ano para o blog Viver Paris, com o qual andei colaborando e acho que vou colaborar ainda. Por motivos que devem ser mais que justificados, meu amigo Jackson Martins, o Du, que cito na crônica, não está conseguindo postar com a frequência que costumava fazê-lo. Então resolvi publicar essa minha declaração de amor (mais uma) a Paris aqui mesmo, quebrando uma promessa que fiz ao iniciar o blog – a de não escrever aqui sobre Paris. Mas quem pode brigar com uma paixão?

3 comentários:

  1. De fato, o cronista tem razão, pois conheci o personagem amazônico que lhe enviou as fotos de Budapeste. Acompanhei o drama do cara, jornalista como nós, pois a moça citada "en passant" se apaixonou não só pela cidade do Leste Europeu, como também por um nativo que lá conheceu e não a deixou voltar pro Brasil. O abandonado me contou, em mesa de bar, que, quando era repórter, faz muitos anos, foi destacado para cobrir a repercussão do primeiro livro de Guimarães Rosa. Entre os críticos que entrevistou estava o cáustico Agripino Grieco, estrela da sua época. Indagado sobre a obra do autor mineiro, disse: "Olha, esse moço é muito talentoso; mas ele escreve em húngaro"...Vê-se, assim, que Budapeste sempre o rondou. Eu ganhei de presente o livro do Chico Buarque que tem o nome da bela capital. Comecei a ler durante um vôo entre Belém e Campinas. Ao chegar à página 20 flutuava a 34.000 pés acima do nível do mar. O que me impediu de atirar pela janela a chatíssima brochura...

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  2. Muito linda essa sua crônica, entendo bem essa sua paixão por Paris. Eu tenho por ela o mesmo sentimento, embora nunca tenha ido lá.

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