sexta-feira, 6 de julho de 2012

Dona Mazinha, o gavião e o bem-te-vi aleijadinho




Alberto Dini

Vi no portal da Prefeitura a bonita e bem escrita matéria que o Carlãozinho Lemes fez em cima das não menos bem feitas fotos que o Carlos Bassan fez do casal de gaviões que resolveu ninhar nas árvores do Palácio dos Jequitibás.

Pra falar a verdade, esse casal deve ser o mesmo que morava em um flamboyant muito bonito que havia em um estacionamento defronte à minha janela de quinto andar, perto da PUCC Letras. Há uns dois anos, o flamboyant foi vil e covardemente cortado pelo dono do estacionamento, que aproveitou o feriado prolongado do carnaval para cometer o crime.

Claro que todos os moradores do prédio ficaram putos com toda a razão do mundo com o cara que cortou a árvore. Todos menos uma: a dona Mazinha, que à época era minha vizinha do 42. Ela festejou sem pudor a derrubada do lindo flamboyant que servia de morada ao casal de gaviões que o Bassan agora flagrou construindo um novo ninho na Prefeitura.

Num destempero verbal meio incompatível para quem não perdia uma novena na Igreja do Carmo, Dona Mazinha fulminou para quem quisesse ouvir: “Já vão tarde esses filhos da puta”. A frase foi repetida várias vezes em alto e bom som nos corredores, nos elevadores e até na portaria do prédio, quando ela ia todas as tardes levar café com leite e pão com manteiga para o porteiro que estava em serviço. Mas ninguém ficou chateado com Dona Mazinha não, e vocês vão saber porque.

Há uns três ou quatro anos, resolvi tirar uma rede que enfeitava a minúscula sacada de meu apartamento e a substituí por alguns vasos com plantas ornamentais. Para minha surpresa, constatei que alguns passarinhos começaram a rondar a sacada. Aí comprei dois bebedouros para colibris e comecei a colocar bananas e mamões junto com algumas vasilhas de água fresca. Resultado: minha sacada passou a ser frequentada por beija-flores, corruíras, sanhaços, sabiás e até um passarinho amarelo escuro das asas rajadas do qual não sei o nome até hoje, e olha que já fui passarinheiro.

Resultado: minha vizinha do 43 resolveu, no mês seguinte, fazer a mesma coisa e enfeitou a sacada com plantas e comida para atrair os passarinhos. Outros dois vizinhos fizeram a mesma coisa e passamos a ser os felizes moradores que têm o privilégio de criar passarinhos soltos. Aí começou a juntar passarinho adoidado no nosso prédio, o que deixou o ambiente mais bonito, apesar do incremento na quantidade de cocô de passarinho nos apartamentos do primeiro andar, que contam com uma sacada maior. Mas, para falar a verdade, ninguém reclamou, até porque poder apreciar de perto a boniteza dos bichinhos compensa qualquer dano. Depois, vamos combinar que limpar titica de passarinho não dá trabalho algum. Se fosse de galinha, vá lá. Mas de passarinho, não.

Eu só percebi a existência do casal de gaviões num sábado cedo, quando fui trocar a água das vasilhas e um sanhaço não arredou asa da sacada mesmo com minha chegada. Para trocar a água tive que chegar a menos de um metro do sanhaço e nada do bicho ir embora, e olha que sanhaço é passarinho arisco e assustado.

Foi quando vi a sombra de um dos gaviões passando a uns dez metros da minha sacada. Certamente estava caçando, para desespero dos nossos hóspedes. Confesso que não me agradou a ideia dos “meus” passarinhos virarem janta de gavião, mas relevei: afinal, gavião não chega a ser gente (como o cachorro do ex-ministro Magri, do governo Collor), mas tem todo o direito de sobreviver. Se a cadeia alimentar determinou que sua comida preferida na cidade fossem sanhaços, corruíras e sabiás, paciência. Mais tarde, com o auxílio de uma luneta, pude localizar o ninho dos gaviões no flamboyant.

Bom, foi bem aí que Dona Mazinha entrou na história. Quem entende um pouco de passarinho sabe que bem-te-vi adora fazer ninho em transformadores de energia, de preferência naquelas abraçadeiras que prendem o equipamento nos postes, a uns seis ou sete metros de altura.

Pois bem: um casal de bem-te-vi resolveu fazer ninho no transformador que dava bem de frente para a janela do apartamento da Dona Mazinha. Porém, por infelicidade, um dos filhotes caiu do ninho e se arrebentou todo, tendo quebrado uma das asas, sendo resgatado por Dona Mazinha e o Zezé, empregado do estacionamento.

Cuidadosa, Dona Mazinha levou o filhote de bem-te-vi ao veterinário e ficou sabendo, consternada, que o pobre animalzinho jamais poderia voar. Quando o filhote ficou bom, o Laércio porteiro, que é jeitoso com madeira e ferramentas, fez uma espécie de caixinha coberta, muito bonita, inclusive com um poleirinho para facilitar a entrada e saída do bentevi aleijadinho de seu novo lar.

A caixinha foi colocada num cantinho estratégico no telhado do estacionamento, ao abrigo do vento e da chuva. E era a coisa mais bonita ver como, todas as manhãs, por volta das sete horas, depois do café, Dona Mazinha levava as frutas que o Zezé colocava em cima do telhado para o aleijadinho comer. Assim se passaram semanas, o bem-te-vi cada vez mais bonito e bem alimentado, e Dona Mazinha e o Zezé do estacionamento cada vez mais orgulhosos do passarinho que salvaram da morte depois da queda do ninho.

Até que um belo domingo de manhã, quando o bem-te-vi aleijadinho traçava uma banana na porta da casinha, foi capturado por um dos gaviões. Ali mesmo foi devorado vivo, enquanto piava desesperadamente para desespero ainda maior da Dona Mazinha que gritava da janela enquanto o Zezé procurava uma escada para subir no telhado e espantar o gavião. Quando o Zezé conseguiu subir, o gavião simplesmente saiu voando com o bem-te-vi aleijadinho preso nas garras e foi terminar a refeição em uma viçosa sibipiruna do jardim da PUCC Letras.

Zezé percebeu que não havia mais nada o que fazer. Mas Dona Mazinha não se conformou. Desceu e queria porque queria pular o muro da PUCC para resgatar seu animalzinho de estimação. Não conseguiu, pois para uma senhora de 65 anos pular muro é muito difícil. Ainda tentou convencer o Zezé e o Laércio, mas eles ponderaram que àquela altura o bem-te-vi já estava sendo digerido.

Dona Mazinha ficou inconsolável. Segundo o Zezé do estacionamento, ela teve até febre de tanta tristeza. Mais tarde, rolou uma conversa no prédio que Dona Mazinha havia sido vista em uma loja tentando comprar uma espingardinha de pressão (houve uma outra versão, segundo a qual não era espingarda de pressão, mas sim um estilingue e um saco de bolinhas de gude).

Há cerca de seis meses, Dona Mazinha mudou-se para Ribeirão Preto, para ir morar com a filha, que acabara de enviuvar. Com toda solidariedade pelo passamento do genro, acho que foi melhor assim. Se a Dona Mazinha ainda estivesse morando em Campinas e visse essas fotos do Bassan e o texto do Carlãozinho, acho que os gaviões não estariam seguros no jardim do Paço. Ainda mais com Dona Mazinha armada com uma espingardinha de pressão. Ou, pior ainda, com um estilingue e um saco de bolinhas de gude.

2 comentários:

  1. Ô, Dini, o Ed precisou inaugurar um novo blog pra vc se revelar em toda sua veia literária e poética! E eu que não sabia desses dons! Mas agora já sei, e estou ansiosa pela sua próxima participação.
    Monica

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  2. Boa Dini! Que venham outras.

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