Alberto Dini
Vi no portal da Prefeitura a bonita e bem escrita matéria que o
Carlãozinho Lemes fez em cima das não menos bem feitas fotos que o Carlos
Bassan fez do casal de gaviões que resolveu ninhar nas árvores do Palácio dos
Jequitibás.
Pra falar a verdade, esse casal deve ser o mesmo que morava em um
flamboyant muito bonito que havia em um estacionamento defronte à minha janela
de quinto andar, perto da PUCC Letras. Há uns dois anos, o flamboyant foi vil e
covardemente cortado pelo dono do estacionamento, que aproveitou o feriado
prolongado do carnaval para cometer o crime.
Claro que todos os moradores do prédio ficaram putos com toda a
razão do mundo com o cara que cortou a árvore. Todos menos uma: a dona Mazinha,
que à época era minha vizinha do 42. Ela festejou sem pudor a derrubada do
lindo flamboyant que servia de morada ao casal de gaviões que o Bassan agora
flagrou construindo um novo ninho na Prefeitura.
Num destempero verbal meio incompatível para quem não perdia uma
novena na Igreja do Carmo, Dona Mazinha fulminou para quem quisesse ouvir: “Já
vão tarde esses filhos da puta”. A frase foi repetida várias vezes em alto e
bom som nos corredores, nos elevadores e até na portaria do prédio, quando ela
ia todas as tardes levar café com leite e pão com manteiga para o porteiro que
estava em serviço. Mas ninguém ficou chateado com Dona Mazinha não, e vocês vão
saber porque.
Há uns três ou quatro anos, resolvi tirar uma rede que enfeitava a
minúscula sacada de meu apartamento e a substituí por alguns vasos com plantas
ornamentais. Para minha surpresa, constatei que alguns passarinhos começaram a
rondar a sacada. Aí comprei dois bebedouros para colibris e comecei a colocar
bananas e mamões junto com algumas vasilhas de água fresca. Resultado: minha
sacada passou a ser frequentada por beija-flores, corruíras, sanhaços, sabiás e
até um passarinho amarelo escuro das asas rajadas do qual não sei o nome até
hoje, e olha que já fui passarinheiro.
Resultado: minha vizinha do 43 resolveu, no mês seguinte, fazer a
mesma coisa e enfeitou a sacada com plantas e comida para atrair os
passarinhos. Outros dois vizinhos fizeram a mesma coisa e passamos a ser os
felizes moradores que têm o privilégio de criar passarinhos soltos. Aí começou
a juntar passarinho adoidado no nosso prédio, o que deixou o ambiente mais
bonito, apesar do incremento na quantidade de cocô de passarinho nos
apartamentos do primeiro andar, que contam com uma sacada maior. Mas, para
falar a verdade, ninguém reclamou, até porque poder apreciar de perto a
boniteza dos bichinhos compensa qualquer dano. Depois, vamos combinar que
limpar titica de passarinho não dá trabalho algum. Se fosse de galinha, vá lá.
Mas de passarinho, não.
Eu só percebi a existência do casal de gaviões num sábado cedo,
quando fui trocar a água das vasilhas e um sanhaço não arredou asa da sacada
mesmo com minha chegada. Para trocar a água tive que chegar a menos de um metro
do sanhaço e nada do bicho ir embora, e olha que sanhaço é passarinho arisco e
assustado.
Foi quando vi a sombra de um dos gaviões passando a uns dez metros
da minha sacada. Certamente estava caçando, para desespero dos nossos hóspedes.
Confesso que não me agradou a ideia dos “meus” passarinhos virarem janta de
gavião, mas relevei: afinal, gavião não chega a ser gente (como o cachorro do
ex-ministro Magri, do governo Collor), mas tem todo o direito de sobreviver. Se
a cadeia alimentar determinou que sua comida preferida na cidade fossem
sanhaços, corruíras e sabiás, paciência. Mais tarde, com o auxílio de uma
luneta, pude localizar o ninho dos gaviões no flamboyant.
Bom, foi bem aí que Dona Mazinha entrou na história. Quem entende
um pouco de passarinho sabe que bem-te-vi adora fazer ninho em transformadores
de energia, de preferência naquelas abraçadeiras que prendem o equipamento nos
postes, a uns seis ou sete metros de altura.
Pois bem: um casal de bem-te-vi resolveu fazer ninho no
transformador que dava bem de frente para a janela do apartamento da Dona
Mazinha. Porém, por infelicidade, um dos filhotes caiu do ninho e se arrebentou
todo, tendo quebrado uma das asas, sendo resgatado por Dona Mazinha e o Zezé,
empregado do estacionamento.
Cuidadosa, Dona Mazinha levou o filhote de bem-te-vi ao
veterinário e ficou sabendo, consternada, que o pobre animalzinho jamais
poderia voar. Quando o filhote ficou bom, o Laércio porteiro, que é jeitoso com
madeira e ferramentas, fez uma espécie de caixinha coberta, muito bonita,
inclusive com um poleirinho para facilitar a entrada e saída do bentevi
aleijadinho de seu novo lar.
A caixinha foi colocada num cantinho estratégico no telhado do
estacionamento, ao abrigo do vento e da chuva. E era a coisa mais bonita ver
como, todas as manhãs, por volta das sete horas, depois do café, Dona Mazinha
levava as frutas que o Zezé colocava em cima do telhado para o aleijadinho
comer. Assim se passaram semanas, o bem-te-vi cada vez mais bonito e bem alimentado,
e Dona Mazinha e o Zezé do estacionamento cada vez mais orgulhosos do
passarinho que salvaram da morte depois da queda do ninho.
Até que um belo domingo de manhã, quando o bem-te-vi aleijadinho
traçava uma banana na porta da casinha, foi capturado por um dos gaviões. Ali
mesmo foi devorado vivo, enquanto piava desesperadamente para desespero ainda
maior da Dona Mazinha que gritava da janela enquanto o Zezé procurava uma
escada para subir no telhado e espantar o gavião. Quando o Zezé conseguiu
subir, o gavião simplesmente saiu voando com o bem-te-vi aleijadinho preso nas
garras e foi terminar a refeição em uma viçosa sibipiruna do jardim da PUCC
Letras.
Zezé percebeu que não havia mais nada o que fazer. Mas Dona
Mazinha não se conformou. Desceu e queria porque queria pular o muro da PUCC
para resgatar seu animalzinho de estimação. Não conseguiu, pois para uma
senhora de 65 anos pular muro é muito difícil. Ainda tentou convencer o Zezé e
o Laércio, mas eles ponderaram que àquela altura o bem-te-vi já estava sendo
digerido.
Dona Mazinha ficou inconsolável. Segundo o Zezé do estacionamento,
ela teve até febre de tanta tristeza. Mais tarde, rolou uma conversa no prédio
que Dona Mazinha havia sido vista em uma loja tentando comprar uma espingardinha
de pressão (houve uma outra versão, segundo a qual não era espingarda de
pressão, mas sim um estilingue e um saco de bolinhas de gude).
Há cerca de seis meses, Dona Mazinha mudou-se para Ribeirão Preto,
para ir morar com a filha, que acabara de enviuvar. Com toda solidariedade pelo
passamento do genro, acho que foi melhor assim. Se a Dona Mazinha ainda
estivesse morando em Campinas e visse essas fotos do Bassan e o texto do
Carlãozinho, acho que os gaviões não estariam seguros no jardim do Paço. Ainda
mais com Dona Mazinha armada com uma espingardinha de pressão. Ou, pior ainda,
com um estilingue e um saco de bolinhas de gude.
Ô, Dini, o Ed precisou inaugurar um novo blog pra vc se revelar em toda sua veia literária e poética! E eu que não sabia desses dons! Mas agora já sei, e estou ansiosa pela sua próxima participação.
ResponderExcluirMonica
Boa Dini! Que venham outras.
ResponderExcluir