terça-feira, 10 de julho de 2012

Nós e Shakespeare



Edmilson Siqueira

Miss Fobê chegou falando em português mesmo, embora aquela fosse uma aula de inglês. Inglês do clássico que iria formar a última turma – acho que no Brasil – nesse curso. As que terminaram o ginásio no ano seguinte já não poderiam escolher entre o clássico e o científico: iriam todos para o colegial. Era assim o ensino brasileiro nos anos 60. E funcionava. Depois, quando o ensino público começou a perder verbas e mais verbas, o ensino particular ficou melhor. Não que o particular tivesse feito um grande esforço para se igualar ao público. Foi o público que piorando ano a ano, se igualou ao péssimo ensino particular que havia no Brasil à época. Estou me referindo aos oito primeiros anos de vida escolar que hoje nem sei como se chamam. Nas universidades parece que as coisas estão mais parecidas com os anos 60: as boas são as públicas.

Mas Miss Fobê, que encontrei há cerca de dois anos no Deck Sousas, almoçando com uma turma de ex-alunos, chegou e logo de cara disse que iria dar um trabalho de literatura inglesa para ser feito durante todo o ano e entregue apenas no fim do ano. E valia nota. Literatura inglesa, para um punhado de meninas e alguns poucos meninos – éramos quatro ou cinco entre mais de 35 meninas – só podia ser Shakespeare. E era mesmo. Ela escolheu umas oito peças do bardo da velha Albion e distribuiu entre grupos formados ali na hora. Não me lembro se o grupo que me escolheu foi o mesmo do Amadeu Tilli, mas me lembro muito bem que ele reuniu o grupo dele e mais outro e combinou de que ambos ficariam com a mesma peça: Otelo. A união dos dois grupos era porque o elenco da peça era grande.

Elenco? Como assim? Tilli era artista de teatro, havia participado do TEC ou TECA, sei lá, algo como Teatro Estudantil de Campinas e, ó glória! havia participado de uma novela da TV Tupi que havia sido exibida no início da tarde durante uns tempos. Ou seja, era um artista completo, pronto para ensaiar um bando de gente que jamais havia pisado um palco. E com nada menos que Willian Shakespeare, um autor que até hoje desafia os maiores atores ingleses.

Bom, estávamos no Brasil, 1969, um ano depois daquele ano que não terminou e, claro, depois do AI-5 baixado em dezembro de 1968, tudo podia acontecer. Ou não acontecer (quem viveu aquele tempo sabe do que estou falando).

Mas, com ou sem regime fechado, pra chegar lá, tivemos que aprender o bê-á-bá do teatro. Para tanto compramos uma edição de bolso de Otelo. É esse que está aí na foto que ilustra esse post. Edição de bolso que Tilli reduziu drasticamente, cortando enormes trechos para adaptar o texto – sim, mudamos Shakespeare! –às nossas, digamos, condições teatrais. Esperto, nosso diretor fez a gente ler o livrinho muitas vezes. E ia corrigindo as leituras, tentando dar aos nossos recursos vocais alguma semelhança com um fala teatral. O tempo foi passando e, de repente, eu já sabia falas inteiras do Brabâncio, pai da Desdêmona, a infeliz heroína da tragédia, traída pelo invejoso Iago que induz o mouro Otelo, marido dela, a pensar que ela era infiel.

Quando começaram os ensaios com marcação de palco e tudo o mais, Tilli arrumou um pedaço da loja de flores da família (sim, Tilli Flores) para o “elenco”, ali na Thomaz Alves, perto da Avenida Anchieta. Claro que durante o ano inteiro havia outras sete ou oito matérias que não tinham nada a ver com o inglês, mas para aquela turminha, o ano era do Otelo, o que não impediu que todos fossem aprovados em todas elas. Éramos bons alunos também.

Como Tilli era amigo da classe teatral local, não foi difícil arranjar indumentárias que foram adaptadas para parecer le dernier cri de la mode em Veneza no século 15. E como tinha muito discos clássicos, arranjou alguns para ser a trilha sonora. Faltava o palco da apresentação, pois uma peça dessas não caberia na sala nove do Culto a Ciência, a que mais se parecia com um teatro.

Sei lá quem arrumou – talvez o próprio Tilli – o teatro da Secretaria de Cultura. À época Campinas não tinha um teatro digno (alguma novidade?). O Municipal já havia sido derrubado e o Centro de Convivência acho que nem tinha começado a ser construído. E o Castro Mendes acho que ainda era o Cine Casablanca. O único teatro era um espaço para uns 400 lugares, com palco e plateia, onde hoje é a sede da Câmara de Vereadores, lá na Avenida da Saudade. Era ali que funcionava também a Secretaria de Cultura.

E lá fomos nós para alguns ensaios antes da grande apresentação. É bom que se diga que, no segundo semestre não se falava outra coisa ali no círculo do velho Culto mais chegado às letras. A classe inteira convidou familiares e amigos, a notícia correu e o resultado foi que os 400 lugares do teatrinho foram ocupados numa noite no meio da semana. Ou seja, o grupinho de alunos do primeiro clássico do Culto à Ciência tinha lotado o teatro para a única e exclusiva apresentação de um trabalho de classe. Data? 14 de outubro de 1969.

Foi a glória para todos nós. Mas a minha, em particular, quase vai por água abaixo. Eu começava a peça falando da coxia, era um pai acordado pelo barulho. Eu perguntava dos meus “aposentos” qual era o motivo do barulho lá fora. Apesar dos meus 17 anos, já tinha uma voz meio grossa e, no silêncio do teatro, ela soava mais grossa ainda. Pois aquela voz deu à platéia a perfeita noção de que entraria em cena um homem já feito, alto, bravo e bem vestido. E eis que surge esta figura, baixinho, de barba branca e vestindo uma enorme camisola que Amadeu Tilli jurava ser a veste com que dormiam os pais das heroínas no século 15. O teatro veio abaixo numa sonora gargalhada que nós jamais pensávamos fosse acontecer naquele momento. Aguentei firme nos segundo seguintes, os mais longos segundos que já vivi na vida, tentando não esquecer o texto e dar à cena a dramaticidade que Shakespeare sonhou (ele já deve ter nos perdoado).

O fato é que conseguimos ir até o fim, com todo o “elenco”se comportando como gente grande. A morte de Otelo foi assistida num silêncio sepulcral. Quando as cortinas se fecharam, a plateia irrompeu num aplauso que, sinceramente, não esperávamos. Para nós, era um trabalho de classe. Quando o “elenco” entrou todo no palco para agradecer, todos passaram a aplaudir de pé e assim permaneceram por uns dois minutos. Faz 44 anos, mas parece que foi na semana passada. Quando eu lembro ainda me dá um nó na garganta.

Há uns quatro ou cinco anos, mais ou menos, Zezé – que foi aluna de Miss Fobê no curso de letras da PUCC – assistiu a uma palestra dela no Royal Palm Plaza. No meio da palestra, ao citar exemplos de dedicação, superação e crença na possibilidade de cada um e de todos, ela citou seus alunos de 1969 que, do nada, do nada, levaram uma peça de Shakespeare no teatro e foram aplaudidos de pé. É mole?

5 comentários:

  1. Você tem razão, parece que acabou de acontecer! Que delícia relembrar de momentos tão marcantes de minha vida! Sua memória é excelente, vc se lembra de detalhes que eu já tinha esquecido. Parabéns mais uma vez Ed.

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  2. Ah, delícia de história, ainda mais pq leva todo o jeito de ser verdade, imaginem só. Alguns parágrafos, nem tantas linhas assim, e eu fui do riso à emoção quase piegas, terminando com aquele sorriso de quem acha que, afinal, a humanidade pode ter salvação.
    Monica

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  3. Apesar de já ter ouvido essa história, adoro imaginar você baixinho entrando no palco com aquele vozeirão...

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  4. Imagino a emoção. O teatro é fabuloso, no palco a gente se transforma. Parabéns pelo sangue frio, uma situação incômoda que você superou plenamente tanto que fez a plateia esquecer as gargalhadas e ainda foi aplaudido de pé no final.

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  5. Não tenha vergonha da sua tentativa no palco. Afinal de contas, até hoje o Brasil não tem nem teve um único, um reles, um diáfano ator shakeaspeariano que prestasse... Quem sabe, se você tivesse continuado

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